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Reflexões Finais

No documento Doença de Alzheimer e cuidado familiar (páginas 88-92)

2. O DIAGNOSTICO: REFLEXÕES ACERCA DOS ITINERÁRIOS

2.3 Reflexões Finais

A procura pelo acesso a um diagnóstico não é um percurso linear. Composto de significados complexos e de ordens diversas, o processo de busca por uma explicação biomédica para as situações que saem do que os indivíduos consideram normais ao cotidiano é imensamente labiríntico. Evidente que além dos significados biomédicos para as suas experiências, procuram-se outras explicações que dêem sentido para as aflições. Mas como o viés dessa pesquisa está claramente baseado em percursos pela biomedicina, entro em detalhes acerca dessa parte específica do processo de construção de significados. Isso não quer dizer que as explicações biomédicas excluam outras produções de sentido complementares – algumas delas também aludidas no decorrer do capítulo.

Gostaria de sublinhar que não afirmo aqui que o conhecimento biomédico não esteja baseado em evidências físicas comprovadas que explicam e dimensionam a experiência dos indivíduos em níveis bastante vívidos. Apenas sugiro que esse também se transforma em discurso e é utilizado pelos sujeitos para fazer formulações acerca de suas experiências.

O discurso biomédico, apesar de funcionar claramente como um discurso de verdade – no sentido de que possui poder de verdade enquanto discurso reconhecido e que pode fazer afirmações legítimas sobre a vida dos indivíduos (FOUCAULT, 1979) – não é, evidentemente, coeso e centrado em apenas um tipo de expertise. Pelo que se lê nesse capítulo, é possível notar que existem alguns níveis e fluxos de conhecimentos e informações acerca do Alzheimer – o que é produzido por pesquisadores é inserido na prática médica de forma pouco simétrica. Mesmo o conhecimento formulado por pesquisadores de ponta diverge entre si, e os estudos sobre demência estão longe de determinarem uma única explicação acerca da experiência fisiológica da mesma.

Falar também em termos de uma prática médica seria pouco significativo. Existe certo número divergente de práticas relativas aos campos de especialidade dos médicos procurados, e esses irão estabelecer interpretações acerca das reclamações dos indivíduos e entendê-las como sintomas a partir disso. A prática médica se define por meio de quadros

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de referência comuns, mas as elaborações particulares acerca da formulação de diagnósticos variam com a especialidade e com a experiência do médico em questão.

O CMI, por exemplo, é composto de uma equipe multidisciplinar, demorei a compreender o motivo pelo qual uma equipe formada quase somente por profissionais da saúde seria multidisciplinar, no entanto, essa referência se dá pelas diferentes constituições teóricas e práticas de cada disciplina. A relação entre esses profissionais pode ser bastante tensa. A neuropsicologia e seus testes, assim como o próprio DSM-IV não se constitui em uma unanimidade dentre os médicos. Os remédios receitados pelos médicos nem sempre são considerados muito viáveis pelos farmacêuticos, e assim por diante. No CMI ainda existe uma tentativa bastante prolífica de discutir entre áreas e pensar em conjunto, o que parece ser bem raro em outros centros de saúde.

Ademais, as importâncias atribuídas por cada profissional a determinado tipo de intervenção de cuidado e mesmo de tratamento é variável. Como exemplo, cito uma divergência que observei entre os/as profissionais da odontologia e as psicólogas. A higiene bucal pode ser uma etapa muito complexa do cuidado, ouvi relatos de reações bastante agressivas sobre as tentativas de escovar os dentes de outra pessoa – como mordidas na escova e na cuidadora. Para algumas das psicólogas, por vezes seria interessante diminuir o tempo de escovação e optar pelo enxágue bucal, mas as mesmas assumiam que qualquer dentista iria desaprovar essa ideia com veemência.

Apesar de ser muito comum que nós, cientistas sociais, coloquemos todos os profissionais da área da saúde no “mesmo saco”, ou seja, entendemos como discurso biomédico tudo que é produzido por uma área específica que chamamos “área da saúde” – que inclui fisioterapeutas, médicos, dentistas, farmacêuticos, terapeutas ocupacionais e por vezes psicólogos – existem divergências consideráveis dentre essas áreas, inclusive divergências explicativas acerca do que ocorre com o corpo. Novamente, evidente que existe uma referência comum entre os mesmos, mas não se trata de um discurso homogêneo.

Roy (2004) afirma que estaríamos vivendo em um momento de crise de expertises – talvez sempre tenhamos vivido desde que se estabeleceram campos de análise diversos para os mesmos fenômenos. Com isso o autor quer enfatizar que existe uma série de discursos de verdade/legitimidade, comprovados cientificamente, que possuem validade e podem ser utilizados como dispositivos em contextos diversos. Tais perspectivas são todas

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comprovadas a partir dos modelos científicos, mas nem sempre estão de acordo umas com as outras. Isso principalmente em se tratando de pesquisas aplicadas que tem uma maior proximidade com o estabelecimento de técnicas. Profissionais de diferentes áreas podem ter discordâncias significativas, mesmo dentro de uma mesma área as concepções são variadas. E os sujeitos “leigos” percebem esse processo.

Muitos dos sujeitos que conheci no CMI não confiam absolutamente nos médicos: são atendidos por vários especialistas, investigam o diagnóstico, conferem determinadas informações e desconfiam do que ouvem – inclusive porque sabem na prática que o conhecimento acerca da doença que possuem está longe de ser uma unanimidade e mesmo de resultar em práticas consistentes de cura e tratamento. Seu entendimento sobre a perspectiva médica é ativamente interpretado, assim como aquele advindo das informações que lêem nos jornais. Não se trata, então, de uma interação passiva com as explicações buscadas.

Ainda que a opção analítica seja por tratar do discurso biomédico como uma cosmologia que explica a nossa relação e o nosso entendimento do mundo – e acredito que esse seja um dispositivo heurístico dos mais proveitosos – me parece necessário compreender que essa cosmologia se constitui de tensões e variações discursivas. Não se trata de um todo homogêneo nem em discurso e nem em prática. Aliás, nem em nível de discurso, já que informações dessa cosmologia podem ser adquiridas diretamente de pesquisas de ponta ou da divulgação de artigos científicos em jornais, revistas e conteúdo de internet (de qualidades variadas). Assim como também a prática médica pode ser desenvolvida em níveis de qualidade infinitamente diversos. (JOLLY, 2002).

De acordo com Alves & Souza (1999), os sentidos atribuídos para os itinerários da doença dizem muito sobre a composição da experiência vivida. Sendo assim, nesse capitulo tentei discorrer um pouco sobre vários dos discursos associados ao Alzheimer e à demência, principalmente acerca daqueles que ouvi com maior frequência, compondo também o meu próprio itinerário de entendimento acerca da mesma e de reflexão sobre o que estava vendo e ouvindo das pessoas com as quais convivi no CMI.

Mas tento, também, compreender caminhos pelos quais os indivíduos interagem com as informações que acessam para explicar o que sentem em relação aos seus corpos, como elaboram suas experiências, e como estabelecem percursos de ação para interagir com o centro de saúde e com a equipe de profissionais/médicos que escolheram para o seu

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tratamento. Nesse sentido, os itinerários descritos aqui se constituem de ações específicas, que ao mesmo tempo em que são vividas produzem sentidos e são interpretadas pelos indivíduos.

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3. DINÂMICAS FAMILIARES DE ORGANIZAÇÃO DO

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