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A lesão no direito brasileiro histórico

4. MODALIDES DA LESÃO NO SISTEMA JURÍDICO BRASILEIRO

4.1. A lesão no direito brasileiro histórico

Historicamente, os primeiros documentos legislativos a organizarem a sociedade brasileira decorrem, como não poderia deixar de ser, das mesmas normas previstas na metrópole portuguesa. Assim, até mesmo após o advento da República, mantinham-se vigentes no território nacional os dispositivos legais vigentes em Portugal.

Este, por conseguinte, teve uma construção legislativa, apesar dos vários processos de unificação que redundaram na formação do atual Estado Português, basicamente fundada no direito romano, nos princípios a ele inseridos no período medieval e nas principais correntes do direito continental.

A previsão, basicamente repetindo a idéia da lesão enorme romana, fora prevista nas Ordenações Afonsinas (Liv. IV, título XLV), Manuelinas (Liv. IV, título XXX) e Filipinas (Liv. IV, título XIII). Estas, previam textualmente a lesão ao prever que: “Do que quer desfazer a venda

por ser enganado em mais da metade do justo preço: Posto que o contrato de compra e venda de qualquer cousa entregue ao comprador, móvel ou de

raiz seja perfeito, e o preço pago ao vendedor, se for achado que o vendedor foi enganado além da metade do justo preço, pode desfazer a venda por bem de dito engano, ainda que o engano não procedesse do comprador mas somente se causasse da simplesa do vendedor. E poderá isso mesmo o comprador desfazer a compra, se foi pela dita maneira enganado além da metade do justo preço, e entende-se o vendedor enganado além da metade do justo preço se a cousa vendida valia por verdadeira e comum estimação ao tempo do contrato dez cruzados e foi vendida por menos de cinco. E da parte do comprador se entende ser enganado se a cousa comprada, ao tempo do contrato valia por verdadeira e geral estimação dez cruzados e deu por ela mais de quinze.”

Paralelamente, as mesmas Ordenações Filipinas preveram a lesão enormíssima quando ocorresse o recebimento, pelo vendendor, de valor de apenas a terça parte do valor justo do negócio. No caso, diferenciava-se a lesão enormíssima da lesão enorma pela presunção de dolo naquela, não se falando na actio venditi, mas sim na exceptio doli por parte do vendedor, considerando-se o dolo in re ipsa na existência de tamanha desproporção.

Em resumo, a lesão enorme, quando do advento da República, tinha as seguintes características: ocorria quando havia desproporção em mais de metade (ou 2/3 no caso de lesão enormíssima); permitia a complementação do preço para a manutenção do negócio; protegia tanto o comprador como o vendedor; prescrição em 15 anos para a lesão enorme e 30 anos para a lesão enormíssima.

Tal previsão, em vigor até a entrada em vigor do Código Comercial de 1850 e do Código Civil de 1916, mantinha a possibilidade da

lesão fundamentar a rescisão de uma compra e venda. Assim, era a lesão uma falha no elemento da comutatividade dos contratos, não gerando a anulabilidade do negócio jurídico, mas sim caracterizando-se como uma causa de rescisão do negócio jurídico. A falha não estava localizada na manifestação de vontade, mas sim na imoralidade das condições contratadas.261

O primeiro diploma legal geral em vigor no Brasil que negava efeito à lesão nos negócios foi o Código Comercial de 1850. Este, em seu art. 220, previa a impossibilidade de se alegar lesão nos negócios que se constituissem atos de comércio, bem como em negócios envolvendo comerciantes. Por tal dispositivo, não podiam se amparar da lesão os comerciantes quando contratavam entre si, mesmo porque não se poderia aplicar aos mesmos a idéia de inexperiência contratual. Além disto, previa a necessidade, para a validade do contrato de compra e venda mercantil, previa a necessidade da existência de preço sério e não preço justo.262

No que diz respeito à legislação geral, de Teixeira de Freitas, em seu Esboço de 1860, partiu o primeiro golpe. O art. 1.869, único a este respeito, é abolicionista, afirmando a impossibilidade de se rescindir contratos pela existência de lesão.263 O Projeto de Código Civil de Felício dos Santos, datado de 1881, previa, nos artigos, 2.075 a 2.083, a rescindibilidade das compras e vendas por lesão. Sente-se nesse trabalho a força da tradição das Ordenações. No Projeto do Código Civil Brasileiro de Coelho Rodrigues, datado de 1893, também está prevista a rescisão do

261 Humberto Theodoro Júnior, Comentários, cit. p. 222.

262 Caio Mário da Silva Pereira (Lesão, cit. p. 94), afirmando a idéia defendida pelos comercialistas do

início do século passado, em sua doutrina, da existência da presunção de perícia dos comerciantes, impedindo a alegação de preço injusto, bem como a amplianção do dispositivo, em momento posterior, a qualquer venda mercantil.

contrato lesivo, prevista nos artigos 662 a 667, Parte Especial, Livro Primeiro, Título II, Seção III.264

Clóvis Bevilaqua, ao construir o projeto do Código Civil de 1916, adotou posicionamento francamente contrária ao instituto, não havendo previsão do instituto de forma pura na redação original do projeto. A Comissão revisora da primeira redação, por aditamento feito em 05/07/1900, incluiu o instituto, em termos similares aos existentes nas Ordenações.

Entretanto, a Comissão dos 21, na revisão final do texto, com a participação de Clóvis Bevilaqua, suprimiu novamente o instituto, com a retirada do aditamente realizado ao projeto, tendo sido aprovada a redação final sem a previsão da lesão, em 31/12/1901.265

O instituto permaneceu sem utilização na forma pura como instrumento de anulação ou rescisão dos negócios jurídicos, apesar da existência, a partir da entrada em vigor do Código Civil Brasileiro de 1916, de uma séria de normas, notadamente no que diz respeito às locações urbanas, criando limitações à liberdade contratual e proteção jurídica ao locatário. Entretanto, nenhuma delas se comparava ao instituto em sua pureza conceitual, isto é, prevendo a rescindibilidade ou nulidade do negócio em virtude da quebra do equilíbrio das prestações contratuais.266

A entrada em vigor da Lei de Crimes contra a Economia Popular trouxe à tona novamente o instituto, embora com características

264 Wilson de Andrade Brandão, Lesão, cit. p. 142. 265 Caio Mário da Silva Pereira, Lesão, cit. p. 97.

266 Sobre a evolução legislativa do instituto, ainda que de forma indireta, vide Caio Mário da Silva

próprias, mas com o uso dos princípios fundamentais anteriormente adotados pelo instituto, encontrando-se em vigor até os dias atuais.

À esta, aliou-se o Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.072/90), ao prever, ainda que com requisitos distintos, a lesão nas contraprestações como situação suficiente à revisão ou anulação do negócio. O Código Civil Brasileiro de 2002 deu nova vida ao instituto, classificando-o como defeito do negócio jurídico, apropriando-se do regramento geral previsto para as nulidades relativas previstas na parte geral da codificação.

Abordaremos, no próximo item, a lesão no direito atual, partindo da lesão na Lei de Crimes contra a Economia Popular, passando pelo Código de Defesa do Consumidor e chegando ao Código Civil brasileiro de 2002, além de eventuais previsões em legislação esparças.267