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Enquadramento da questão

Como resultado do drama vivido pela Europa durante a II Guerra Mundial, os Estados do velho Continente mais directamente envolvidos nesse conflito, tomaram consciência que o modelo “cooperativo” das relações internacionais resultava insuficiente. Da necessidade de superar essa insuficiência e de ir além dos modelos teóricos pré-definidos, surgiu a proposta de uma nova fórmula de relação entre Estados que veio a concretizar-se nas Comunidades Europeias. Primeiro apareceu a Comunidade Europeia do Carvão e do Aço (C.E.C.A.) instituída pelo Tratado de Paris, de 18 de Abril de 1951, logo depois a Comunidade Económica Europeia (C.E.E.) e a Comunidade Europeia da Energia Atómica (Euratom) instituídas pelos Tratados de Roma, de 25 de Março de 1957, firmados entre seis países fundadores (República Federal da Alemanha, França, Itália, Bélgica, Holanda e Luxemburgo) o que pressupôs um marco na história política e jurídica, uma vez que acrescenta algo de novo à tradicional figura da organização internacional273.

As três Comunidades foram progressivamente unificadas e transformadas através do “Acto Único Europeu” (17/02/1986), pelo Tratado de Maastricht ou Tratado da União Europeia (7/02/1992), pelo Tratado de Amesterdão (2/10/1997)274 e pelo Tratado de Nice

273 Ver: PÉREZ TREMPS, Pablo - Constitución Española y Comunidade Europea. 1.ª ed.. Madrid:

Editorial Civitas, S.A., 1994, p. 21 e ss.; CAPOTORTI, Francesco - Cours Général de Droit International Public.

In Recueil des Cours de l’Académie de Droit International de La Haye. Dordrecht/Boston/London: Martinus

Nijhoff Publishers. Tome 248 - IV: (1994), p. 9-344, especialmente p. 324 e ss..

274 A primeira alteração de fundo dos tratados institutivos das Comunidades Europeias foi levada a cabo

pelo Acto Único Europeu em 1986, a esta seguiu-se a revisão operada pelo Tratado de Maastricht ou Tratado da União Europeia, o qual entrou em vigor em 1 de Novembro de 1993 e previa no seu artigo N a convocação de uma Conferência de representantes dos Governos dos Estados-membros, a realizar em 1996, para preparar a revisão de algumas das suas disposições. Esta revisão procurou dar seguimento aos passos de aprofundamento da construção europeia traçados pelo Tratado de Maastricht e alcançar esse objectivo num prazo relativamente curto, assim surgiu o Tratado de Amesterdão. Todas estas alterações resultaram dos trabalhos desenvolvidos

(26/02/2001)275. A União Europeia é uma nova entidade resultado do conjunto destas três organizações internacionais, “(...) completadas pelas políticas e formas de cooperação instituídas pelo tratado (...)” de acordo com os artigos 1.º e 2.º do Tratado de Maastricht ou Tratado da União Europeia.

O fenómeno integrador empreendido na Europa ocidental após o desastre e a ruína política e económica ocasionada pela II Grande Guerra, gerou um novo poder público e um novo ordenamento jurídico, certamente limitado, mas incondicionado, uma vez que as competências comunitárias ou, em outros termos, exercidas num marco jurídico comunitário, sendo semelhantes, não poderiam ser idênticas àquelas competências a cujo exercício unilateral tiveram os Estados de renunciar ao integrar-se nesta organização supranacional.

A consequência mais imediata foi a afirmação jurisprudencial de que esta ordem específica, incondicionalmente assumida e sem outra reserva para além das excepções e períodos transitórios pactuados, haveria de primar sobre quaisquer outras disposições normativas dos ordenamentos jurídicos nacionais276.

O Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias (T.J.C.E.) exclui qualquer medida unilateral posterior, quer tenha a sua origem nos próprios órgãos estatais, quer provenha de iniciativas dos particulares, que contrarie a ordem pública comunitária, sustentando que a Comunidade não pode renunciar ao desenvolvimento e execução uniforme e simultânea das suas disposições, no conjunto dos Estados-membros, com excepção para os regimes diferenciados expressamente previstos ou autorizados. Como consequência seria afastada a regra lex posterior derogat priori, na relação norma comunitária - norma nacional. Desencadeou-se, assim, não obstante a inexistência nos tratados comunitários de uma cláusula expressa de primazia do Direito comunitário, um princípio nuclear do sistema comunitário,

pelas Conferências Intergovernamentais, como instâncias de negociação entre os governos dos Estados- membros. Para mais desenvolvimento pode ver-se: FREIRE, Paula Vaz - Os Novos Passos da Integração

Europeia - O tratado de Amesterdão e o tratado de Nice. Lisboa: Vislis Editores, 2002. 275

O Tratado de Nice entra em vigor no primeiro dia do segundo mês subsequente à entrega do instrumento de ratificação do último Estado-membro a cumprir essa formalidade (está previsto para o ano de 2003 e já todos os Estados-membros o ratificaram), desde que cada Estado signatário tenha procedido à sua ratificação, segundo os procedimentos previstos nas respectivas Constituições. No caso português foi ratificado em 18 de Dezembro de 2001, pelo decreto do Presidente da República n.º 61/2001, publicado no Diário da República n.º 291, de 18/12/2001. Este tratado constituiu a quarta grande revisão dos tratados institutivos das Comunidades Europeias.

276 Ver sentença, do Tribunal de Justiça das Comunidades, Costa/ENEL, de 15 de Julho de 1964,

processo n.º 6/64. In Recueil de la Jurisprudence de la Cour de Justice des Communautés Européennes (RJC). Vol. X: (1964), p. 1141-1199.

que os ordenamentos constitucionais, pela sua diversa tradição jurídica, pareciam incapazes de assegurar e garantir os efeitos que a norma comunitária exige277.

Tradicionalmente concebemos o mundo do Direito distinguindo entre Direito Internacional e Direito interno. O Direito Comunitário, tendo nascido de um tratado ou vários, isto é, de uma fonte internacional, tem, no entanto, características que o distinguem, que estão consagradas nos tratados. O T.J.C.E. ao longo dos anos foi definindo as características fundamentais desta nova ordem jurídica. Havendo aqui dois princípios básicos: o da aplicabilidade directa e o do primado do Direito Comunitário sobre o Direito dos Estados- membros.

Das normas do Direito Comunitário podem decorrer efeitos jurídicos que se projectam na esfera jurídica dos particulares e não apenas dos Estados-membros. O que o distingue do Direito Internacional Público que normalmente (excepto os tratados self-executing) vinculam os Estados que são os seus sujeitos. Decorrendo efeitos jurídicos directamente para os particulares, estes podem fazer valer esses direitos junto das jurisdições competentes. Assim, o juiz nacional tornou-se o juiz normal comum do Direito Comunitário.

As relações entre o Direito Internacional e os diversos Direitos constitucionais, apesar de certas disputas teóricas e diferentes posturas normativas, permanecem bem organizadas e livres de maiores divergências. De certa forma as respostas, que o Direito Constitucional fornece ao modo de convivência com outros Estados, vêm sendo elaboradas desde o início, mesmo do Direito Internacional.

Quanto à relação das ordens jurídicas nacionais com a comunitária, as soluções tradicionais tornam-se insuficientes, exigindo da doutrina e jurisprudência constitucional verdadeiros esforços de hermenêutica para conciliar dispositivos constitucionais com a realidade comunitária278.

Tanto a interpretação como a aplicação do Direito comunitário repartem-se, num medido exercício de equilíbrio institucional, entre os tribunais dos Estados-membros e o Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias. E assim, para que as normas comunitárias

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LOPEZ-CASTILLO, Antonio - Constitución e Integración: El Fundamento constitucional de la

integración supranacional europea en España y en RFA. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1996,

p. 31 e ss..

278 KEGEL, Patrícia Luíza - As Constituições Nacionais e os Limites à Integração Regional. In Temas

de Integração. Coimbra: Livraria Almedina. 4.º vol. - 1.º Semestre 1999 - n.º 7: (1999), p. 33-55, especialmente p. 42-43.

sejam plenamente efectivas, os Estados-membros são obrigados a adoptar as medidas necessárias àquele resultado, sejam legislativas, regulamentares ou administrativas279.

Assim, a articulação entre os ordenamentos internos e o comunitário, a aplicação judicial deste último, a incidência deste nas estruturas constitucionais, têm vindo a levantar problemas a que é preciso dar resposta, e são essas as questões que vamos tentar desenvolver nesta II Parte do trabalho.

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Neste sentido ver também PALÁEZ MARÓN, José Manuel - Lecciones de Instituciones Jurídicas

CAPÍTULO I