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3 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO E A EFETIVAÇÃO DOS DIREITOS

3.2 DIREITO CONSTITUCIONAL ANTIRRACISTA: TRINCHEIRA CONTRA A

A adjetivação do direito constitucional, em nossa leitura, pode servir a dois propósitos básicos, reafirmar a necessidade de uma interpretação à luz da Constituição Federal de matérias de maior conteúdo dogmático do Direito, ou chamar a atenção para a concretização do projeto constitucional em uma seara específica. Ambas as utilizações podem chegar ao esvaziamento do conteúdo autônomo do próprio Direito constitucional, seguindo a esteira da argumentação lógico-jurídica: o que tudo é, nada é. Assim, essa multiplicidade promovida pela constitucionalização de todo e qualquer ramo pode soar, para os intérpretes mais ciosos da Constituição, como uma verdadeira redundância.

Contudo, há de se questionar de onde surge a necessidade de afirmar a “constitucionalização” de matérias como aquelas pertinentes ao direito administrativo ou civil, quais são os fatores que empurram a literatura especializada a forjar conceitos que expressam uma característica própria do Direito, qual seja, as demais matérias especializadas estarem em harmonia com o texto constituinte. Um dos elementos que podem ajudar a compreender esse fenômeno é a dificuldade das demais áreas de nossa legislação pátria em se adaptarem às regras e princípios constitucionais, aliado a isso uma cultura jurídica autoritária, que vem se utilizando cada vez mais do ativismo judicial226

para se afastar do próprio texto constituinte, empurram a necessidade de se dizer o óbvio, para usar os termos de Brecht227.

Assim, os efeitos dessa forçosa e alarmante “constitucionalização” empurram a disputa pela concretização da Constituição Federal para outro patamar. Como visto anteriormente, sabe-se que a pactuação em torno de uma Carta política, de forma jurídica, em um sistema democrático representativo, apresenta limitações inúmeras. Não entendemos aqui que apenas o sistema jurídico concederá as condições plenas para a

226 De acordo com Ramos (2010), o ativismo judicial deve ser entendido como o extrapolamento do

exercício da função jurisdicional dos limites impostos pelo ordenamento que está submetido.

227 “Realmente, vivemos muito sombrios! A inocência é loucura. Uma fronte sem rugas denota

insensibilidade. Aquele que ri ainda não recebeu a terrível notícia que está para chegar.Que tempos são estes, em que é quase um delito falar de coisas inocentes. Pois implica silenciar tantos horrores!” Aos que vierem depois de nós poema de Bertold Brecht.

emancipação humana, na lógica do debate proposto por Marx228. Contudo, não podemos

simplesmente esquecer que a Constituição é uma verdadeira trincheira na luta pela conquista da dignidade, especialmente para os setores que sempre ficaram à margem no curso dos processos históricos. Como o próprio Bonavides229 defende, temos que

reivindicar um Direito constitucional de luta e resistência, o que implica em uma nova forma de ler o fenômeno jurídico, e, em seus termos “a Constituição, tão desprezada do Governo, tão maltratada das elites e tão remendada, representa a máquina de guerra do povo” (BONAVIDES, 2003, p. 92).

Assim, a busca de uma vida com dignidade é o objetivo defendido na trincheira do direito constitucional. Os delineamentos dessa dignidade humana são problematizados por Sarlet230, que a traduz como sendo:

Simultaneamente limite e tarefa dos poderes estatais e, em nosso sentir, da comunidade em geral, de todos e de cada um, condição dúplice esta que também aponta para uma paralela e conexa dimensão defensiva e prestacional da dignidade (SARLET, 2012, p.45)

A leitura que o autor apresenta sobre dignidade da pessoa humana indica uma superação de uma interpretação sobre o conceito eminentemente vinculada a condição de espécie humana, se constituindo em uma categoria relacional e exigível perante a ordem jurídica. Em busca de uma conceituação, Sarlet231 defende que:

Temos por dignidade da pessoa humana a qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos

destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos, mediante o devido respeito aos demais seres que

integram a rede da vida (SARLET, 2012, p. 67, grifos nossos).

228 MARX, Karl. Sobre a questão judaica. Tradução de Daniel Bensaïd, Wanda Caldeira Brant. 1ª ed. São

Paulo: Boitempo, 2010. Em A questão Judaica, Marx expõe um debate sobre os direitos humanos e suas limitações, apontando para a necessidade de compreendê-los historicamente enquanto ampliações nas garantias de emancipação política dos sujeitos, mas que não implicam na emancipação humana, tendo em vista a continuidade das assimetrias sociais que tem como origem a forma de organização da própria cidade(?). Os direitos humanos seriam, assim, passos importantes para chegar à emancipação humana, porém longe desta ainda se estaria.

229 BONAVIDES, 2003.

230 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição

Federal de 1988. 9. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012.

A partir dessa conceituação, compreendemos que o autor toma a condição de participação política como um dos núcleos da dignidade da pessoa humana. A realização da dignidade humana alcança uma dimensão para além do indivíduo, se realiza na integração da comunidade e com a própria natureza. A partir dessa leitura, entendemos que a busca pela realização da dignidade humana das mulheres negras, passa pela realização dos direitos políticos, e como consequência, da materialização da própria Constituição.

Essa leitura aponta para necessidade de enxergar o direito constitucional a partir da sua própria materialização. Garantias mínimas de liberdade ainda não estão acessíveis à ampla maioria da população brasileira, o que torna a leitura da aplicabilidade imediata dos direitos fundamentais imprescindível. Na esteira de Steinmetz232, ao analisar como o

Supremo Tribunal Federal tem lido o debate sobre a aplicabilidade imediata dos direitos fundamentais, tem-se que:

O STF tem reconhecido um dever de aplicação imediata por força de cada dispositivo enunciador de direito ou garantia fundamental. Dizendo em outras palavras, à luz da jurisprudência do STF, a força normativa plena de cada direito ou garantia fundamental decorre da própria institucionalização constitucional do direito ou garantia em questão, ou seja, de sua positividade constitucional, de seu caráter de norma jurídica e, em especial, de norma jurídico-constitucional. Essa é uma boa hipótese explicativa para o fato de o STF, decorridas duas décadas de vigência da Constituição, fazer raras alusões ao § 1º do art. 5º e não ter sobre ele uma teoria interpretativa explicitamente delineada ou sistematizada, mas conferir às normas definidoras de direitos e garantias fundamentais - não apenas aos direitos e garantias do art. 5º, mas também aos demais direitos e garantias do Título II - aplicação imediata (STEINMETZ, 2010, p. 4475).

Assim, a Corte constitucional tem aplicado, acertadamente em nossa opinião, o conteúdo do art. 5º, § 1º da CF, cuja letra afirma que "as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata". A opção do texto constituinte originário em atribuir a necessidade de reforçar o caráter dos direitos fundamentais tem de ser respeitada e tomada como baliza para a hermenêutica jurídica. E, entendendo que os direitos políticos constituem direitos fundamentais, há que se assegurar que eles possam ser exercidos em igualdades de condição entre todas e todos os cidadãos brasileiros.

232 Wilson Antônio Steinmetz. O dever de aplicação imediata de direitos e garantias fundamentais na

jurisprudência do supremo tribunal federal e nas interpretações da literatura especializada. Anais do XIX

Se foi expressão no texto constituinte ressaltar aspectos de diferenciação, e uma preocupação no enfrentamento ao racismo (art. 3º, IV; art. 4º, VIII, art. 5º, XLII) e do reconhecimento das diferenças entre homens e mulheres (art. 3º, IV; art. 5º, I; art. 7º, XX; art. 40, III, a; art. 143, § 2º; art. 183, § 1º; art. 189, parágrafo único, art. 201, V; art. 226, § 6º), a política legislativa deve dedicar-se a construir as condições para a realização do projeto constitucional. É precisamente aqui que o debate sobre a aplicabilidade imediata dos direitos e garantias fundamentais ganha corpo.

Assim, defendemos uma ressignificação da hermenêutica constitucional tomando os debates sobre o feminismo jurídico, trazido por Smart233 e Sabadell234, com recorte

consubstancial, trazido pelas feministas negras, miramos na defesa que Bonavides235 faz

de um novo olhar sobre o significado da própria Constituição. Diz o autor que:

As possibilidades de institucionalizar no País um efetivo poder democrático dependem, sobretudo, da correspondência da Constituição com a realidade. A crise constitucional do século XX nos serve de lição, ao patentear, com mais evidência do que nunca, a existência de duas dimensões: uma Constituição e uma constituinte, de aspecto formal e jurídico, ao lado de outra Constituição e outro poder conste, de natureza basicamente material, sociológica e permanente (BONAVIDES, 2003, p. 38).

Em nossa leitura, esse processo de fazer a Constituição se aproximar da realidade implica no reconhecimento de qual o perfil dessa sociedade. Como trazido ao longo do texto, o Brasil carrega uma formação histórica com forte presença do patriarcado e do racismo, elementos que podem ser usados como lente para analisar as relações de poder estabelecidas em nossa sociedade. O que sustenta o argumento da necessidade de uma leitura feminista do direito, a implicação dessas igualdades na elaboração do jurídico, se aplica, em nossa compreensão, para o debate racial.

Assim, tomando por base a questão levantada por São Bernardo236, que se debruça

sobre a hegemonia que o pensamento branco possui na elaboração do Direito ao enxergar que, desde os elementos simbólicos, como o símbolo da Justiça Thémis, até a hermenêutica constitucional, estão diretamente vinculadas à compreensão ocidental e branca do mundo. O autor faz a seguinte problematização:

Será que uma onto-metafísica ou uma certa tradição cultural africana ou melhor, afro-brasileira, podem desenvolver um debate jurídico-filosófico sobre os direitos de uma parcela da população

233 SMART, 2001. 234 SABADELL, 2013. 235 BONAVIDES, 2003.

236 SÃO BERNARDO, Augusto Sérgio dos Santos de. Identidade racial e direito à diferença Xangô e

brasileira que se reivindica identitariamente como negra ou afrodescendente e que, conscientemente ou não, organizadamente ou não, resiste a uma ordem de valores e saberes que pouco lhe “informa” já que é “convidada” a aderir a determinados projetos de cidadania e de nação preconizadas pelo modelo de organização liberal-capitalista do estado e da sociedade com o arrimo de hegemonia cultural europeizante? (SÃO BERNARDO, 2006, p. 67).

A provocação que São Bernardo propõe é importante para tentarmos olhar para o texto constituinte a partir de outros olhares. Assim, se a Constituição é, como Bonavides advoga, uma verdadeira máquina de guerra do povo, esse povo tem uma identidade, um gênero e pertencimento racial. A impressão que fica, ao articular as categorias tradicionais da literatura jurídica – dignidade da pessoa humana e aplicabilidade imediata dos direitos e garantias fundamentais – podem ser pensadas a partir de outra cosmovisão.

Os elementos explicitados pelo texto constituinte nos garantem margem para defender que existe uma intencionalidade antirracista e de superação das desigualdades entre homens e mulheres, como já apontamos ao longo do texto. Assim, entendemos que a identificação da existência de um direito constitucional antirracista seria possível. Entendendo-o como os elementos explicitados pelo processo constituinte originário no enfrentamento ao racismo institucional, bem como a irradiação dessa hermenêutica aos demais ramos do Direito, vinculando a Administração, tanto em sentido estrito quanto amplo. Nesse sentido, o Direito constitucional antirracista poderia ser considerado uma corrente de interpretação do jurídico, cuja delimitação seria dada pela centralização do enfrentamento das desigualdades raciais como um dos principais objetivos da Constituição Federal.

As suspeitas com a substancialidade dessa proposição são justificáveis e apontam para um estudo mais rigoroso e autônomo sobre sua existência e tangenciam nosso objeto de análise principal. Contudo, assim como defendem as correntes feministas do direito, é importante criticar o fenômeno jurídico, na tentativa de identificar quem são os responsáveis por sua elaboração e como ele se materializa.

Obviamente que, em um país que a cada hora violenta 503 mulheres237, a

possibilidade de se forjar um conceito de Direito constitucional anti-machista também se coloca. Contudo, aqui se segue a esteira de Wood238, que apresenta que a questão racial

237 Mais de 12 mil mulheres são agredidas por dia no Brasil, estima estudo. Hoje em dia. 2017. Disponível

em <https://www.hojeemdia.com.br/horizontes/cidades/mais-de-12-mil-mulheres-são-agredidas-por-dia- no-brasil-estima-estudo-1.450573> Acesso em 05 de out. de 2018.

tem mais dificuldade de avançar por conta de seus próprios contornos. Há poucos séculos, pessoas negras não tinham sua humanidade sequer reconhecida. Ultrapassar o status de mercadoria para o status de cidadania demanda um salto e de emancipação política notável. Para contribuir nesse “salto” há de se lançar mão de todos os instrumentos possíveis, e nessa caixa de ferramentas, o Direito constitucional antirracista surge com uma trincheira na defesa de políticas legislativas que visem a concretizar o desejo do processo constituinte de 1988, além de atenderem a uma demanda histórica ainda não priorizada.

Há outra razão para que o Direito antirracista se coloque com uma primeira trincheira frente às desigualdades provocadas pelo racismo estrutural em combinação com o machismo: a necropolítica. Mbembe239 propõe uma ressignificação sobre o

conceito de soberania e elabora uma perspectiva bastante peculiar sobre a lógica de organização dos Estados contemporâneos. Para o autor,240 a componente fundamental da

soberania seria a capacidade decisória sobre quem vive e quem morre, aprofundando a análise teórica de Foucault241 sobre a tecnologia do poder consubstanciada no racismo, as

políticas de morte de determinadas populações estão umbilicalmente ligadas à dominação racial.

A necropolítica242 seria a utilização da política para a produção da morte, ou, como

nos informa o sentido atribuído pelo autor, da manutenção dessa morte adstrita à determinados grupos. A anuência com as causas da mortalidade de populações vulneráveis não seriam excrescências, mas a razão de ser das instituições políticas, sendo assim, conscientes. Traduzindo em dados, os alarmantes números de mortalidade da juventude negra brasileira, seriam, antes de tudo, uma escolha política, uma opção pela morte. E essa morte possui endereço, cor, idade e gênero determinados.

A escolha dos sujeitos matáveis está intrinsecamente relacionada a uma escolha estatal. Os tipos suspeitos, estudados nos bancos das academias de força policial ou nas escolas de Direito, vinculam-se a características raciais específicas. A argumentação midiática comercial reforça o estereótipo de quem seriam os bandidos em nossa

239MBEMBE, Achille. Necropolítica. Revista Arte & Ensaios. n.32, 2016.

240 “A expressão máxima da soberania reside, em grande medida, no poder e na capacidade de ditar quem

pode viver e quem deve morrer.1 Por isso, matar ou deixar viver constituem os limites da soberania, seus atributos fundamentais. Exercitar a soberania é exercer controle sobre a mortalidade e definir a vida como a implantação e manifestação de poder” (MBEMBE, 2016, p.123)

241 FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 2010.

242 “A necropolítica, portanto, instaura-se como a organização necessária do poder em um mundo em que

a morte avança implacavelmente sobre a vida. A justificação da morte em nome dos riscos à economia e à segurança torna-se o fundamento ético dessa realidade” (ALMEIDA, 2018, p.96).

sociedade. Por outro lado, a ausência de pessoas negras em espaços de destaque corrobora para marcar esse ideário e o resultado se expressa com a morte de um jovem negro a cada 23 minutos no Brasil243.

O Estado age, seja por meio afirmativo ou omissivo, contribuindo com essa mortalidade. É, portanto, uma escolha política. Em que pese a Constituição afirmar o oposto, a aplicabilidade das regras se opera de maneira a fortalecer o que Mbembe alcunha de necropoder. A potência de causar a morte, a capacidade de escolher os que viverão. Seja de maneira direta, como os noticiados casos de assassinatos de jovens negros durante a intervenção militar no Rio de Janeiro, ou pela persistente deslegitimazação das políticas afirmativas baseadas em critérios raciais.

Assim, um dos instrumentos para desnudar essa opção política do Estado é afirmar que o Direito constitucional se observa como uma barreira de limitação a esse poder absoluto de decidir sobre quem vive. Ao afirmar o direito antirracista como elemento fundamental para a interpretação dos demais direitos privilegia-se um ponto de vista fulcral para a promoção da igualdade racial, e como consequência, da própria valorização da vida.

Em síntese, o direito constitucional antirracista tem três papéis distintos a cumprir. O primeiro deles é desvelar a fragilidade dos comandos constitucionais de promoção da igualdade racial frente ao necropoder, retomando a exigibilidade imediata dos direitos e garantias fundamentais. O segundo, trazer uma carga hermenêutica às políticas legislativas que perpassem necessariamente um olhar de enfrentamento à discriminação racial na sociedade brasileira. Em sendo o racismo estrutural, o combate aos seus efeitos deve ser tomado com centralidade. Por fim, afirmar o Direito constitucional antirracista como uma opção política do próprio texto constituinte, utilizando-o como trincheira no avanço de garantias para a efetivação da emancipação política dessa população.

E uma das arenas cruciais para a inserção desses elementos é justamente o Congresso Nacional, em virtude de capacidade de ampliar as extensões das proteções constitucionais. Na moldura social que nos encontramos a melhor aposta para a transformação da necropolítica é seguir o caminho da disputa, também, política. A disputa entre as forças dentro da sociedade respinga diretamente nas preferências eleitorais, que acabam repercutindo nas esferas representativas. Assim, a tarefa para a possível formulação de um direito constitucional antirracista passa necessariamente pela

243 A cada 23 minutos, um jovem negro é assassinado no Brasil, diz CPI. BBC Brasil. 2016. Disponível

ampliação da presença dos sujeitos atingidos por sua ausência nesse campo, síntese que retoma a necessidade de aliar política de presenças e ideias em um só tempo.

Obviamente, essa leitura não escusa a responsabilidade que as demais funções estatais clássicas244 têm no enfrentamento do racismo. Contudo, para um funcionamento

minimamente regular das instituições democráticas é salutar que a centralidade da disputa tome assento no seu lugar por excelência: o parlamento.

244 De acordo com a leitura da teoria das repartição de poderes consolidada por Montesquieu. Cf.

MONTESQUIEU, Charles Louis de Secondat, Baron de la. Do espírito das leis. São Paulo: Abril Cultural, 1979.

4 CONGRESSO NACIONAL BRANCO NO BRASIL NEGRO: PERSPECTIVAS

O Legislativo federal, como arena democrática, nos moldes apresentados até agora, mostra-se como um espaço repleto de lacunas. A representatividade de amplos setores da população brasileira é deficitária, o que repercute nas posições adotadas pelo conjunto do Congresso Nacional e os impactos que tais políticas provocam no cotidiano da classe trabalhadora brasileira. Tal estado de coisas não é mero acaso, mas produto da construção desses espaços e da própria democracia em si.

A construção do Brasil, consoante Bosi245, deu-se a partir de “um ideário de fundo

conservador; no caso, um complexo de normas jurídico-políticas capazes de garantir a propriedade fundiária e escrava até o seu limite possível”. Trata-se do último país do continente a abolir a escravidão, e que mantém, ao longo dos séculos, com pouquíssimas alterações, os índices de concentração de terra246. Tendo na economia a reprodução do

destino colonial, ou seja, a lógica da exportação de produtos primários permanece sendo a base da nossa economia.

Fundamentalmente, as estruturas que conformaram a criação do Brasil sobreviveram através dos séculos. E o complexo machismo-racismo-classe permanece produzindo efeitos, segregando e hierarquizando as relações sociais – sejam de produção ou de participação política. É aqui que o caráter estrutural dessas relações se encontra com a realidade dos fatos sociais, ou como diz Flávio Gomes247 “a desigualdade não foi

necessariamente inaugurada com a abolição, ganhou novos contornos, marcas e argumentos econômicos e científicos”. A política de mestiçagem, envolvida pela construção de uma suposta democracia racial é uma realidade tipicamente brasileira. Não à toa, os índices de pobreza, analfabetismo, exposição à letalidade juvenil entre tantos outros acompanham a trajetória da ampla maioria populacional que é negra248.

Retomando o mote de Carneiro249, de que falar da relação entre a mulher negra e

o poder é uma narrativa sobre ausência, é necessário recuperar o processo histórico de

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