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Bastaria que elegêssemos um Congresso com maioria de representantes autodeclarados negros para satisfazer as necessidades de igualdade dessa parcela da população? Ao elegermos, para as duas casas, um número paritário de mulheres, poríamos fim ao machismo? Em que medida a simples presença física desses setores implica avanços, nos marcos de uma democracia limitada, para seus assemelhados? Essas dúvidas perseguem o debate teórico sobre o elemento da representação e uma corrente do pensamento da Ciência Política vinculado ao debate de presenças.

Anne Phillips115 traz a questão da política de presenças como algo fundamental

no contexto das democracias contemporâneas. Basicamente, seu pensamento foca na questão de que apenas a defesa da ideia não contemplaria as dimensões das defesas de questões específicas dos grupos. Dito de outra forma, há a necessidade de esses sujeitos colocarem-se como protagonistas de suas próprias questões. A possibilidade de conhecerem e identificarem as melhores propostas para o grupo que “encarnam”, para usar os termos da estudiosa, seria mais alta, e como consequência, os efeitos da representação seriam melhor alcançados.

Em contraposição, haveria a política de ideias, cuja vinculação não estaria na figura do sujeito que defende as pautas, mas ao seu conteúdo. Phillips atribui essa posição a concepção liberal da democracia,116 pela qual a identidade do representante não seria

relevante e que a exclusão política seria produto da naturalidade do processo eleitoral concorrencial. A síntese que a autora produz é que não há de se desprezar nenhum dos aspectos, mas sem deixar de perceber as limitações de ambos. No primeiro caso, essa presença sempre poderia ser questionada de acordo com elementos identitários adicionais. Assim, haveria um aumento da complexidade tão abrangente dessa presença, tornando impossível a legitimidade dessa mesma representação. Ilustrando o pensamento: não bastaria ser mulher, mas haveria de ser negra, periférica, lésbica, trans entre outros aspectos identitários impossíveis de serem todos reunidos em um só representante.

Por outro lado, atribuir apenas à defesa das ideias, ou das pautas, descolada da identidade dos sujeitos, excluiria da conta a necessidade de igualdade material entre os sujeitos políticos. Como visto no tópico anterior, o racismo, o machismo e a classe

115 PHILLIPS, Anne. From a politics of ideas to a politics of presence? Revista Estudos Feministas, v. 9,

n. 1, p. 268-290, 2001.

determinam os pontos de partida para que as pessoas tenham condições de se inserir no jogo democrático. Ao retirar essa dimensão do quadro, perde-se o contato com a materialidade das relações sociais. Para usar os termos de Miguel117 “um representante,

afinal, não é um canal neutro pelo qual passam as preferências e interesses de seus constituintes”. Assim, a identidade do representante deve contar para situar seu ponto de partida na defesa das ideias, pois é, sobretudo, inescapável.

Assim como Phillips118, entendemos que há que se unir no que ambas as posições

trazem de fundamental. A simples presença de uma mulher negra, seja na Câmara Federal ou no Senado, não implica necessariamente a defesa de políticas legislativas direcionadas a esse público. Contudo, partindo da leitura de uma política de presenças, mais difícil será a inclusão desse debate se essa identidade não estiver ocupando tal espaço.

A absolutização do lugar de fala119 pode gerar efeitos opostos ao que se entende

por inclusão das lidas minorias políticas120 nos espaços representativos. Trazendo para

exemplos práticos, o papel que o atual vereador de São Paulo, Fernando Holliday121,

cumpre ao usar seu espaço parlamentar como uma forma de defender as ideias contrárias a luta pela igualdade racial se autoafirmando negro, serve para unir uma plataforma política de negação do racismo, a partir da identificação pessoal do sujeito, em busca da legitimidade ofertada pela política da presença.

O que se quer dizer, com base nessa ilustração, não é que pessoas negras, ou mulheres, estejam interditadas de ter posições políticas conservadoras. O que entendemos, a partir da leitura da política de presença, é que, quando há o encontro do sujeito com a plataforma deve ser observado o produto gerado a partir dessa representação, se serve para o enfrentamento das desigualdades, ou contribui para naturalizá-las.

117 MIGUEL, op. cit., p. 205.

118 “A maior parte dos problemas, de fato, surge quando as duas são colocadas como opostos mutuamente

excludentes: quando idéias são tratadas como totalmente separadas das pessoas que as conduzem; ou quando a atenção é centrada nas pessoas, sem que se considerem suas políticas e idéias. É na relação entre idéias e presença que nós podemos depositar nossas melhores esperanças de encontrar um sistema justo de representação, não numa oposição falsa entre uma e outra” (PHILLIPS, 2001, p.289).

119 Para Djamila Ribeiro “pensar lugar de fala seria romper com o silêncio instituído para quem foi

subalternizado, um movimento no sentido de romper com a hierarquia” (RIBEIRO, 2017, p.90).

120 Conforme Sodré (2015, p.13), se se tratarem de setores sociais ou frações de classe comprometidas com

a transformação social. Em suas palavras “o conceito de minoria é o de um lugar onde se animam os fluxos de transformação de uma identidade ou de uma relação de poder. Implica uma tomada de posição grupal no interior de uma dinâmica conflitual”.

121 Cf. O DIA. Vereador de São Paulo quer revogar Dia da Consciência Negra e acabar com cotas. 01 de

já. De 2017. Disponível em <https://odia.ig.com.br/_conteudo/brasil/2017-01-05/vereador-de-sao-paulo- quer-revogar-dia-da-consciencia-negra-e-acabar-com-cotas.html> Acesso em 02 de out. de 2018.

Como observa Sílvio Almeida122, a representação, entendida aqui como a presença

de sujeitos historicamente subalternizados em espaços de poder e prestígio social, cumpre dois papéis prioritários: o primeiro deles é de ampliar a repercussão das demandas dessas populações em espaços que antes não eram alcançados, ao passo que o segundo seria o de desconstruir o ideal discriminatório investido contra essas mesmas minorias, atuando como um fator de reconhecimento do destaque do sujeito representante.

Contudo, como lembram Hamilton e Carmichael123, apenas ocupar os espaços de

privilégio não implica superar as estruturas sociais que os configuram como tal. Para quebrar a lógica racista e machista, especialmente em um país como nossa história, demanda-se um processo bem mais profundo. Não obstante, sem a presença desses sujeitos nas instâncias de representação tampouco essa estrutura será rompida, de forma a persistir a incompatibilidade entre o comando constitucional e realidade. Se ela irá em direção de superação das desigualdades baseada no gênero ou na raça, ou se simbolizarão uma adaptação desses sistemas a essas mesmas lógicas, apontarão os conflitos reais a serem compreendidos.

Desse modo, é fundamental entender a natureza da representação mais detidamente. Não necessariamente o mandato para falar em nome de alguém ou um coletivo nos espaços de poder terá como fundamento aspectos democráticos124. Segundo

recente estudo, elaborado pelo instituto de pesquisa chileno Latinobarómetro125, somente

13% (treze por cento) da população brasileira confiam na democracia como o melhor sistema de organização política. O índice é o mais baixo se comparado com os demais países da América Latina. O mesmo resultado é obtido, quando perguntado se o governo existe para satisfazer o bem comum, com 3% (três por cento), o povo brasileiro é o menos confiante em suas instituições representativas. Assim, se configura uma sensação de distância entre o conjunto da população e quem a representa nos espaços institucionais da democracia.

122 ALMEIDA, op. cit., p.84.

123 “It does not mean merely putting black faces into office. Black visibility is not Black Power. Most of the

black politicians around the country today are not examples of Black Power. The power must be that of a community, and emanate from there. The black politicians must start from there. The black politicians must stop being representatives of “downtown” machines, whatever the cost might be in terms of lost patronage and holiday handouts” (HAMILTON, CARMICHAEL, 1967, p.43)

124“Uma ditadura pode ser a efetiva representante de seu país em fóruns internacionais, assim como uma

rainha representa simbolicamente a nação sem ter se submetido a um processo democrático de escolha ou autorização. Aliás, a ausência de tal processo pode ser forma efetiva” (MIGUEL, 2014, p.27)

125LAJES, Marta. Informe 2017. Buenos Aires: Corporación Latinobarómetro. 2017, p.9. Disponível

No pensamento de Urbinati126, a representatividade reside em uma relação

estabelecida entre setores sociais e as instâncias governamentais e que se pauta por uma qualificação política dos representantes. A crise de representatividade estaria, portanto, na ausência da qualificação dos mandatários, seja do ponto de vista da identidade com o público que aqueles buscam representar ou da perspectiva ético-moral e técnica.

Assim, o problema da representação reside em como aproximar os representantes dos que os autorizam a representar. O caminho para fazê-lo está no aprofundamento de mecanismos democráticos, que em regimes como o que vivenciamos é muito difícil de ser feito sem uma reestruturação do próprio sistema político. Pensamento que não busca atribuir a esses e a essas representantes a responsabilidade de reestruturar todo o sistema vai ao sentido de saber que esses homens e mulheres, quão mais atrelados estiverem às necessidades reais dos setores que representam podem agir para que esses sejam atendidos.

E como não poderia ser diferente, isso implica conflitos. De um lado, haverá os defensores de valores conservadores da família, e de outro, defensores da população LGBT, que necessariamente produzirão entendimentos diversos. O que não se pode referenciar é uma lógica representativa que um grupo, que represente a posição hegemônica nessa sociedade, suplante a capacidade de atuação dessas minorias. De igual forma, não se pode naturalizar a ausência desses sujeitos minoritários nesses mesmos espaços de privilégio. Se não existem mais mulheres, pessoas negras e LGBT’s no Congresso, por exemplo, existem fatores pré-existentes que explicam essa baixa presença.

Assim, se a representação democrática não estiver comprometida com a superação dessas diferenças, pouco se avança para realizar o ideal de extensão de participação nas decisões. Contudo, essas mesmas presenças devem estar diretamente articuladas com a defesa dessa mesma igualdade, sob pena de agirem em sentido contrário, aprofundando essa lógica excludente com a legitimação produzida por esse lugar de fala.

A importância dessa dimensão representativa deve ser acompanhada também como um produto desse modo de viver em democracia. Segundo Miguel e Biroli127, a

representação seria apenas “a etapa final de um processo que abarca, notadamente, a

126URBINATI, Nadia. O que torna a representação democrática? Lua Nova: Revista de Cultura e Política.

n.67, 2006, p.195.

127 MIGUEL, Luís Felipe; BIROLI, Flávia. Caleidoscópio convexo: mulheres, política e mídia. Editora

discussão pública sobre as questões de interesse coletivo128”. Ou seja, a representação vai

além do representante, do mandatário ou mandatária do cargo/função, pois ela é o reflexo das disputas públicas em uma determinada sociedade. Se vivemos em um ambiente marcado pelo racismo estrutural e machismo, notadamente essas questões transparecerão nas esferas representativas, para além das instituições políticas.

Pateman129 sustenta que a manutenção desse estado de pouca densidade

democrática dá-se em virtude, precisamente, do modelo representativo. Para a referida autora, esse modelo promove um esvaziamento deliberado do componente da participação popular. Em seus termos, “o que importa é a participação de uma elite minoritária, e a não participação do homem-comum”, e aduz que é precisamente essa “apatia” que garantiria a estabilidade dos regimes democráticos.

O que repercute em um processo de negação da própria política. Processo que Murilo Cleto130 intitulou de triunfo da antipolítica. O autor atribui algumas características

a esse fenômeno, quais sejam: o caráter moralista dos discursos, que negam a diversidade, acompanhados da substituição da chamada “ideologia” pela técnica, que se expressa no que ele chama de anti-intelectualismo. Para ele, é justamente a partir da hegemonização do discurso criminalizador da política que se faz o triunfo131.

Ao lançar um olhar histórico sobre o fenômeno podemos perceber que a vivência democrática brasileira, entendida aqui como a regularidade dos mecanismos eleitorais, ainda não se aprofundou. Fazendo um recorte mais recente do passado político brasileiro, a expressão “voto de cabresto”132 simboliza até hoje a lógica de operar das grandes

oligarquias fundiárias em relação aos processos democráticos. Como elabora Leal133, o

poder político no Brasil esteve bastante vinculado com a influência dos coronéis e da elite agrária, que dominavam o exercício da participação política de sua região.

128 MIGUEL; BIROLI, op. cit., p.16.

129 PATEMAN, Carole. Participação e teoria democrática. São Paulo:Paz e Terra, 1992, p. 137. 130 CLETO, Murilo. O triunfo da antipolítica. In: JINKINGS, Ivana; CLETO, Murilo; DORIA, Kim. Por

que gritamos golpe? Para entender o impeachment e a crise política no Brasil. São Paulo: Boitempo,

2016.

131 “Esses momentos históricos abrem espaços para “salvadores da pátria, impostores moralistas e

exterminadores de rostos, multiplicidades, diferenças e intervalos de uma democracia ainda em formação e mais uma vez atacada em nome de um projeto oligarca de poder” (CLETO, 2016, p. 59).

132 “Qualquer que seja, entretanto, o chefe municipal, o elemento primário desse tipo de liderança é o

“coronel”, que comanda discricionariamente um lote considerável de votos de cabresto. A força eleitoral empresta-lhe prestígio político, natural coroamento de sua privilegiada situação econômica e social de dono de terras. Dentro da esfera própria de influência, o “coronel” como que resume em sua pessoa, sem substituí-las, importantes instituições sociais“ (LEAL, 2012, p. 45).

133 LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, enxada e voto : o muncípio e o regime representativo no Brasil.

Na experiência nacional, o sufrágio conviveu inclusive com os sistemas de exceção democrática134, como ensina o exemplo da ditadura civil-militar que dirigiu o

Brasil de 1964 a 1985. As eleições para a vereança, assembleias, senado e congresso aconteciam sob a égide do bipartidarismo e, na visão de Alencastro135, ainda que limitadas

contribuíram para a derrocada do regime de exceção:

Singularmente, a análise dos resultados das eleições durante a ditadura pouco avançou desde os estudos dos anos 1970 e 1980 já mencionados. Resta que, de qualquer ângulo que se enfocarem os eventos, de todo modo que se ponderar sobre os fatos, do jeito que se alinharem as estatísticas, não há como evitar a constatação: foi graças ao voto popular que a ditadura foi acuada, batida e, por fim, derrubada (ALENCASTRO, 2014, p.98).

Assim, entendemos que, ainda de maneira limitada, os mecanismos democráticos têm contribuído na prática para a ampliação de direitos e garantias mínimas. Não pode ser descartada sua importância. Em um país de raízes autoritárias, é necessário buscar mecanismos para romper com as assimetrias provocadas pelo colonialismo português, que tem em uma de suas maiores expressões o racismo.

O que importa destacar do trazido a esta altura é que a política de presenças e o aprimoramento da representação devem ser confrontados com o perfil elitista que as democracias representativas passaram a externar. Assim, essas são duas ferramentas importantes para, com o perdão da redundância, “democratizar a democracia representativa”, tema que será visto no próximo tópico.

134 Cf. BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral. Eleições no Brasil: uma história de 500 anos.

Organizadores. Ane Ferrari Ramos Cajado, Thiago Dornelles, Amanda Camylla Pereira.Brasília : Tribunal Superior Eleitoral, 2014.

135 ALENCASTRO, Luiz Felipe de. O golpe de 1964 e o voto popular. Novos estud. - CEBRAP, São

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