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Democracia, Mulheres e Raça: sub-representação negra feminina no Congresso e a efetivação dos direitos políticos no Brasil

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UNIVERSIDADEFEDERALDORIOGRANDEDONORTE

CENTRODECIÊNCIASSOCIAISAPLICADAS

PROGRAMADEPÓS-GRADUAÇÃOEMDIREITO

RAYANE CRISTINA DE ANDRADE GOMES

DEMOCRACIA, MULHERES E RAÇA:

sub-representação negra feminina no Congresso e a efetivação dos direitos políticos no Brasil

NATAL 2019

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RAYANE CRISTINA DE ANDRADE GOMES

DEMOCRACIA, MULHERES E RAÇA:

sub-representação negra feminina no Congresso e a efetivação dos direitos políticos no Brasil

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como requisito para a obtenção do título de Mestra em Direito.

Orientador: Professor Doutor Leonardo Martins

NATAL 2019

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Gomes, Rayane Cristina de Andrade.

Democracia, Mulheres e Raça: sub-representação negra feminina no Congresso e a efetivação dos direitos políticos no Brasil / Rayane Cristina de Andrade Gomes. - 2019.

106f.: il.

Dissertação (Mestrado em Direito) - Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Centro de Ciências Sociais Aplicadas, Programa de Pós-Graduação em Direito. Natal, RN, 2019. Orientador: Prof. Dr. Leonardo Martins.

1. Participação política - Feminina e negra - Dissertação. 2. Congresso brasileiro Dissertação. 3. Direito constitucional -Dissertação. I. Martins, Leonardo. II. Universidade Federal do Rio Grande do Norte. III. Título.

RN/UF/Biblioteca do CCSA CDU 342.7-055.2

Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Centro Ciências Sociais Aplicadas - CCSA

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Dedico o presente trabalho à Marielle Franco, negra, vereadora, defensora dos Direitos Humanos e das minorias, covardemente assassinada no dia 14 de março de 2018.

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AGRADECIMENTOS

Agradeço ao Professor Doutor Leonardo Martins pela confiança, acolhimento e orientação. Sua humildade, sensibilidade e inteligência são referência e espelho para a carreira que escolhi seguir. Gratidão.

Agradeço ao Professor Doutor Daniel Araújo Valença por estar participando de um dos momentos mais importantes de minha vida pessoal e enquanto pesquisadora. Estaremos nas trincheiras da Universidade defendendo um outro mundo possível.Gratidão.

Agradeço a Professora Doutora Mariana de Siqueira por ser determinante para o desenvolvimento da presente pesquisa e por confiar em meu processo como pesquisadora.

Agradeço ao presidente Luís Inácio Lula da Silva, preso político em nosso país, que foi o responsável por abrir as portas da universidade para pessoas com minha origem, cor e gênero.

Agradeço aos meus valorosos amigos e amigas que quando arrefeci foram minha rocha. E entre eles existem os imprescindíveis.

Ao comandante de todas as horas e missões Gustavo Barbosa, por seu atencioso acompanhamento de minha trajetória no PPGD, saiba que sem você não chegaria até aqui.

Agradeço a querida e brilhante Ilana Paiva, por seu exemplo pedagógico de educadora e mulher, gratidão por acreditar em meu potencial, mesmo quando eu só era dúvida.

Meu irmão de longa data com quem compartilho a vida desde sempre, Ronaldo Maia, a você não dirijo agradecimentos, mas toda ternura possível de se guardar em um coração.

Sem elas não teria me engajado na luta das mulheres, dos direitos humanos. Sem elas não seria advogada popular. Sem elas não seria a feminista que sou hoje. Natália Bonavides, Natália Sena. Vocês são impressionantes, gigantes.

Agradeço ao Grupo de Estudos em Direito Crítico, Marxismo e América Latina (GEDIC) por ter dado sentido a minha existência dentro da academia. Vida longa.

Agradeço ainda a minha família que me viu romper a barriga do mundo à tantos quilometros de distância, em especial às minhas mães Hermínia Andrade, minha primeira inspiração pela educação. A mamys Lucélia Andrade, companheira de sempre. Prometo repor todas as horas de ausência que deixei ao sair de Limoeiro do Norte e que pouco retornei.

Por fim, minha gratidão às minhas ancestrais. A todas as mulheres negras que são a personificação da determinação. Eu me refiz, Dandara, Acotirene.

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Uma sociedade construída pela religião Ensina ao seu povo o que é pecado ou não O verde e amarelo aparecem quando é jogo do Brasil Enquanto na favela, neguim acorda com o fuzil na cara E a gente come carne todo dia O índio mora numa palafita E eu te pergunto: Que sentido faz não ter reforma agrária no Brasil? Isso é herança dos senhores de engenho, barões do café e da cana de açúcar Das grandes construtoras do Brasil Fomentam e alimentam, impondo a condição servil Você viu a Democracia? A democracia é uma ditadura disfarçada.

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RESUMO

A presente dissertação busca identificar em que medida a dificuldade na efetivação dos direitos políticos das mulheres negras, garantidos pela Constituição Federal de 1988 (CF/88), relaciona-se com a sub-representação dessas sujeitas no espaço do Congresso Nacional. Escolhemos o lócus do Legislativo Federal por entender que esse é o espaço por excelência de alterações constitucionais profundas e que tem sido importante na ampliação de direitos e garantias fundamentais às mulheres e à população negra. Para alcançar a resposta ao nosso problema, optamos por uma metodologia de caráter qualitativa, de abordagem exploratória, que visa articular aspectos teóricos com a análise de dados estatísticos pertinentes ao objeto em estudo, através de pesquisa bibliográfica e documental. Do ponto de vista teórico, fazemos uma leitura interdisciplinar e adotamos uma linha de investigação vinculada à teoria feminista do direito, com um recorte consubstancial. Situamos a análise constitucional do problema da efetivação dos direitos políticos a partir da Teoria constitucional da democracia participativa e do debate sobre o direito fundamental à igualdade. Entre as considerações finais apontadas pelo estudo, identificamos que: (i) o desenho da democracia representativa que experimentamos no Brasil favorece os mecanismos de exclusão de minorias, dando sustentação para indicarmos a persistência de uma lógica censitária no campo dos direitos políticos; (ii) que a inefetividade dos direitos políticos para a população negra e feminina ameaça a própria realização do Estado democrático de Direito e que a necessidade de alcançarmos patamares de igualdade na sociedade é fundamental para a realização do projeto político constitucional; (iii) que a mera presença de mais mulheres negras na Câmara e no Senado Federal não implica necessariamente em romper com as relações estruturais racistas e machistas no Brasil, mas são um importante indicativo do enfrentamento as assimetrias provocadas por esses sistemas de opressão; (iv) a atuação parlamentar de deputadas federais e senadoras negras tem contribuído para a elaboração de políticas legislativas voltadas para o grupo de representam.

PALAVRAS-CHAVE

Participação política feminina e negra. Congresso brasileiro. Direito constitucional. Feminismo negro.

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ABSTRACT

The present dissertation case for women in the evaluation of 1988, CF / 88, relates to the black women, guaranteed by the Federal Constitution of 1988 (CF / 88). Let us look at the locus of the Federal Legislature for the understanding that this is the reason why the excellence of constitutional and profound losses is important in the expansion of rights and guarantees for women and the black population. In order to obtain an answer to our problem, we opted for a methodology of qualitative character, of exploratory approach, of vision, of theoretical aspects with an analysis of statistical data subject to object under study. From a theoretical point of view, an interdisciplinary and adopted reading of a theory of femininity theory of law, with a consubstantial cut. Place a constitutional analysis of the process of anticipation of political rights from the Constitutional Theory of participatory democracy and the debate on the fundamental right to equality. Among the evidence pointed out by the study, we identified: (i) the design of representative democracy in Brazil, as mechanisms for the exclusion of minorities, giving support to indicate the persistence of census expression in the field of political rights; (ii) that the ineffectiveness of the direct directories for the black and female population is a condition of access to the democratic State of law and right of access to equal opportunities in the organization of a constitutional exercise; (iii) that women held by black women in the House and Federal Senate are not one of the main racist and sexist changes in Brazil, but they are an important indication of the confrontation as asymmetries caused by these systems of oppression; (iv) the parliamentary of federal deputies and black senators has contributed to the elaboration of legislative policies directed to the group of representatives.

KEY WORDS

Female and black political participation. Brazilian Congress. Constitutional right. Black feminism. Black feminism.

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ... 10

2 DEMOCRACIA, MULHERES E RAÇA ... 16

2.1 POLÍTICA DE PRESENÇAS E O PROBLEMA DA REPRESENTAÇÃO ... 34

2.2 TEORIA DAS ELITES E O APARTHEID REPRESENTATIVO ... 40

3 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO E A EFETIVAÇÃO DOS DIREITOS POLÍTICOS DAS MULHERES NEGRAS... 47

3.1 O DIREITO FUNDAMENTAL À IGUALDADE E O ENFRENTAMENTO A SUB-REPRESENTAÇÃO FEMININA E NEGRA ... 58

3.2 DIREITO CONSTITUCIONAL ANTIRRACISTA: TRINCHEIRA CONTRA A NECROPOLÍTICA ... 67

4 CONGRESSO NACIONAL BRANCO NO BRASIL NEGRO: PERSPECTIVAS ... 75

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ... 95

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1 INTRODUÇÃO

A ampliação da participação feminina nos espaços de poder continua a ser um desafio no Brasil. A inserção das mulheres nos espaços eletivos desenhados pelo modelo de democracia representativa é uma das faces desse fenômeno. Entre os elementos que acrescentam obstáculos para a realização dessa presença, encontra-se o pertencimento racial da mulher.

Os dados demonstram essa assimetria. Do ponto de vista internacional, ocupamos a 154ª posição no ranking de presença das mulheres no parlamento1. Internamente, as

mulheres representam 15% do Congresso Nacional2. Soma-se a esse cenário, o contraste

entre o perfil racial da população brasileira e aquele expresso pela composição da Câmara dos Deputados e do Senado. Enquanto 54% da população brasileira se considera negra3,

no legislativo federal, 72% dos parlamentares são autoidentificados brancos4.

Entre 77 deputadas federais eleitas para exercerem a 56ª legislatura, 13 se autodeclararam negras (4 pretas e 9 pardas)5. No Senado, apenas uma senadora parda

estará ocupando um assento na casa. Somando as 14 parlamentares, teremos uma porcentagem de 2,5% de mulheres negras no Parlamento.

Os elementos que levam à construção dessa realidade são variados e complexos. Poderíamos elencar muitos outros marcadores sociais que contribuiriam para ampliar ainda mais a análise do fenômeno, como as questões de orientação sexual6 e de etnia7.

1 De acordo com o último levantamento produzido em parceria da ONU Mulheres e pelo

Inter-Parliamentary Union, datado de 2017, o Brasil caiu da 117ª posição para a 154ª. ONU Mulheres e Inter-Parliamentary Union. Mujeres en la política: 2017. Mapa Nº 4170. Fevereiro de 2017. Disponível em < encurtador.com.br/ahEHO> Acesso em 20 de jan. de 2019.

2 BRASIL. Estatísticas - Resultados consolidados. Tribunal Superior Eleitoral. Aplicados os filtros

"2018","Senado",” Deputado Federal” . Disponível em <www.tse.jus.br/eleicoes/estatisticas/estatisticas-eleitorais> Acesso em 20 de jan. de 2019.

3 Segundo o IBGE, são considerados negros os grupos que se autodeclaram pardos e pretos. BRASIL.

Pesquisa Nacional por amostra de domicílios contínua 2018. IBGE. Disponível em

<www.ibge.gov.br/estatisticas-novoportal/sociais/educacao/17270-pnad continua.html?edicao=18264&t=resultados> Acesso em 25 de jan. de 2019.

4 BRASIL. Estatísticas - Resultados consolidados. Tribunal Superior Eleitoral. Aplicados os filtros

"2018" “2014“,"Senado",” Deputado Federal” . Disponível em

<www.tse.jus.br/eleicoes/estatisticas/estatisticas-eleitorais> Acesso em 20 de jan. de 2019.

5 São elas: Taliria Petrone (PSOL), Rosangela Gomes (PRB), Benedita da Silva (PT), Chris Tonietto (PSL)

Aurea Carolina (PSOL), Lídice da Mata (PSB), Leda Sadala (Avante), Professora Marcivania (PCdoB), Jéssica Sales (MDB), Mariana Carvalho (PSDB), Silvia Cristina (PDT), Rose Modesto (PSDB), Flavia Arruda (PR).

6 CARDOSO (2008, p.73) “ O conceito de orientação sexual pode variar muito de área para área e de autor

para autor. Na maioria das vezes, esse conceito está relacionado ao sentido do desejo sexual: se para pessoas do sexo oposto, do mesmo sexo ou para ambos”.

7 SANTOS (2010, p.124) “ Etnia refere-se ao âmbito cultural; um grupo étnico é uma comunidade humana

definida por afinidades linguísticas, culturais e semelhanças genéticas. Essas comunidades geralmente reclamam para si uma estrutura social, política e um território” .

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Contudo, optamos por analisar a efetivação dos direitos políticos das mulheres por meio de uma interlocução entre raça e gênero (sexo?).

Tal opção se justifica por duas razões: a primeira diz respeito à compreensão de que experimentamos uma sociedade organizada a partir do patriarcado8, que estrutura as

desigualdades entre homens e mulheres. Segundo o Fórum Econômico Mundial, somos um dos países de maior assimetria entre homens e mulheres do mundo. Ocupamos a 95ª posição no último ranking elaborado pela instituição9. A segunda motivação, diz respeito

à centralidade que as relações raciais possuem no Brasil. Fomos o último país do continente americano a abolir a escravidão negra10 e as repercussões desse período ainda

estão presentes11. As negras e negros brasileiros são a ampla maioria entre os mais

pobres12, possuem baixos índices de escolarização13, acessam os menores salários14 e

estão mais expostos à letalidade15.

Assim, as mulheres negras estão na intersecção desses dois sistemas de desigualdade. Por um lado sentem os impactos do patriarcado e por outro do racismo, sistema que hierarquiza as relações sociais a partir da raça. O ponto de partida para o

8 De acordo com Oliveira (2010, p.13), “ O patriarcado como sistema de dominação das mulheres pelos

homens, ainda está presente na sociedade atual, mas visível de forma diferenciada e apresentando-se em distintas configurações desde a família ao Estado”.

9 Fórum Econômico Mundial. The Global Gender Gap Report 2018. Disponível em

<http://www3.weforum.org/docs/WEF_GGGR_2018.pdf> Acesso em 24 de jan. de 2019.

10 ABRÃO, Rafael Almeida Ferreira. Lugar de negro. Unespciência. Maio de 2018. Ano 09. Nº 96. São

Paulo. P. 11 - Disponível em < http://www.unespciencia.com.br/revista/UC096/UC96__Revista.pdf > Acesso em 20 de jan. de 2019.

11 Cf. BRASIL. IPEA. Retrato das desigualdades de gênero e raça. 4ª ed.Brasília: Ipea, 2011Cf. 12 BRASIL (2010, p. 70) "A razão do rendimento domiciliar per capita entre os grupos de cor ou raça no

Brasil foi mais favorável aos brancos e ocorreu em todas as Grandes Regiões, com destaque para a Sudeste, onde a desigualdade foi mais pronunciada. Nessa Região, brancos percebiam rendimentos 2,0 vezes maiores do que os rendimentos dos pretos e 2,1 vezes maiores do que os rendimentos dos pardos, enquanto nas demais regiões, o diferencial foi de 1,7 a 1,8 vez maior para os brancos em relação aos dois outros grupos".

13 BRASIL (2010, p.69) "No que concerne à outra metade dos estudantes dessa faixa etária, assim como no

caso do analfabetismo, houve forte diferença no acesso a níveis de ensino pela população segmentada por cor ou raça. A diferença foi marcada no nível superior, onde estavam 31,1% dos brancos nesse grupo etário, enquanto apenas 12,8% dos pretos e 13,4% dos pardos".

14BRASIL (2010, p.71) "Ao se observar a posição na ocupação entre brancos, pretos e pardos, observouse

uma sobrerrepresentação das pessoas que se declararam de cor ou raça branca entre os grupos com a proteção da previdência social (empregados com carteira de trabalho assinada, militares e funcionários públicos estatutários), assim como entre os empregadores. Neste último grupo, estavam 3,0% dos brancos ocupados, em relação a apenas 0,6% dos pretos e 0,9% dos pardos".

15CERQUEIRA (2018, p. 40) "Em um período de uma década, entre 2006 e 2016, a taxa de homicídios de

negros cresceu 23,1%. No mesmo período, a taxa entre os não negros teve uma redução de 6,8%. Cabe também comentar que a taxa de homicídios de mulheres negras foi 71% superior à de mulheres não negras. As maiores taxas de homicídios de negros encontram-se nos estados de Sergipe (79,0%) e do Rio Grande do Norte (70,5%)".

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exercício dos direitos políticos16 dessas sujeitas, carrega os efeitos da combinação de

ambos os componentes de sua identidade.

Tanto as mulheres quanto a população negra tiveram seus direitos políticos ampliados a partir de processos históricos e sociais, combinados com alterações no sistema jurídico. O reconhecimento do direito ao voto, por exemplo, é uma das principais evidências. O processo de organização das mulheres pelo exercício do sufrágio se convalidou em uma alteração constitucional e representou um avanço importante para essas sujeitas.

Diante deste cenário, esta pesquisa busca identificar em que medida a dificuldade na efetivação dos direitos políticos das mulheres negras, garantidos pela Constituição Federal de 1988 (CF/88), relaciona-se com a sub-representação dessas sujeitas no espaço do Congresso Nacional. Seria o baixo percentual de parlamentares negras no Congresso Nacional o principal fator para a não efetivação dos seu direitos políticos? Bastaria que houveram mais mulheres negras ocupando vagas no Senado e na Câmara Federal para que o exercício pleno dos direitos políticos se realizasse? Que medidas constitucionais poderiam ser adotadas para enfrentar os efeitos articulados do machismo e racismo que dificultam o exercício desses direitos para as mulheres negras?

Assim, o espaço de alterações do sistema jurídico é estratégico para que esses processos de mudança se façam sentir. Pelo desenho republicano que adotamos, o protagonismo da produção legislativa é do parlamento. Cumpre ao Poder Legislativo Federal o poder de alteração da própria Constituição. De maneira que as competências próprias do Congresso Nacional têm peso diferenciado e justificam a escolha de ser esse o lócus para o presente estudo.

Temporalmente, situamos a pesquisa a partir da promulgação da Carta Magna de 1988, por três motivos: o primeiro, por ser o instrumento político e jurídico que rompe com o regime ditatorial (1964-1985) e inaugura um novo período democrático no Brasil. O segundo motivo, diz respeito ao conteúdo da "Constituição Cidadã" que oferece destaque ao compromisso com as superações das desigualdades e reconhece o papel do Estado brasileiro como um dos condutores do enfrentamento ao racismo e às assimetrias baseadas no gênero. O terceiro, e último elemento, é a repercussão que a nova ordem

16 Seguimos o entendimento de Bobbio (1998, p.354), de que "os direitos políticos, (liberdade de associação

nos partidos, direitos eleitorais) estão ligados à formação do Estado democrático representativo e implicam uma liberdade ativa, uma participação dos cidadãos na determinação dos objetivos políticos do Estado".

(14)

constitucional promoveu no avanço dos direitos de participação política das mulheres. Com trinta anos de vigência da Carta, avançamos na política de cotas de gênero para acessar as candidaturas e recursos partidários, o país elegeu a primeira mulher presidenta da República17 e esse período também foi marcado pela construção de instrumentos

importantes no enfrentamento ao racismo como o Estatuto da Igualdade racial entre outros.

Para alcançar as respostas, optamos por uma metodologia de caráter qualitativo, de abordagem exploratória18, que visa articular aspectos teóricos com os dados

pertinentes ao objeto em estudo. Quanto aos procedimentos, foi realizada coleta bibliográfica (em base de dados indexadas e livros) e coleta documental (em meio digital, como sites oficiais do governo e de organismos internacionais , com destaque para as estatísticas produzidas por instituições como a Inter-Parliamentary Union19, a ONU

Mulheres, o Tribunal Superior Eleitoral, assim como demais levantamentos elaborados pelo Instituto de Pesquisa Aplicada (IPEA), pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), pelo Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (DIAP), entre outros)20. Além disso, a análise dos documentos foi realizada a partir de uma lente

teórica interdisciplinar, relacionando fontes de diferentes campos do saber para examinar o fenômeno da sub-representação negra e da efetivação dos direitos políticos face à Constituição de 1988.

Adotamos uma linha de investigação vinculada à teoria feminista do direito, acompanhando Sabadell21, Smart22, Sousa23, com um recorte consubstancial, trazido por

17 BRASIL. Estatísticas eleitorais – Resultados. Aplicados os filtros “ 2010”, “ Presidente”. Disponível

em<http://www.tse.jus.br/eleicoes/eleicoes-anteriores/eleicoes-2010/candidaturas-votacao-e-resultados/estatisticas> Acesso em 23 de jan. de 2019.

18 “Estas pesquisas têm como objetivo proporcionar maior familiaridade com o problema, com vistas a

torná-lo mais explícito ou a constituir hipóteses. Pode-se dizer que estas pesquisas têm como objetivo principal o aprimoramento de idéias ou a descoberta de intuições“ (GIL, 2002, p.42).

19 Descrição da Inter-parlamientary union. "We are the global organization of national parliaments. We

work with parliaments to safeguard peace and drive positive democratic change through political dialogue and concrete action". Disponível em < http://archive.ipu.org/english/whatipu.htm> Acesso em 20 de jan. de 2019.

20 Fórum Econômico Mundial (FEM), Departamento Intersindical de Estatística e Estudos

Socioeconômicos (DIEESE), Supremo Tribunal Federal (STF).

21 SABADELL, Ana Lucia. Manual de sociologia jurídica: introdução a uma leitura externa ao Direito.

6 ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013.

22 SMART, Carol. La teoria feminista y el discurso jurídico. In BIRGIN, Haydée. El derecho em el gênero

y el gênero en el derecho. Buenos Aires: Editorial Biblos, 2000, p.31-71.

23 SOUSA, Rita Alexandra Barreira da Mota de. Teorias Feministas do Direito: a emancipação do Direito

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Davis24, Cisne25, Lorde26. Partimos da compreensão sobre Teoria constitucional da

democracia participativa, seguindo Bonavides27, e do debate sobre a efetivação dos

direitos políticos e direito fundamental de igualdade, conforme Martins28 e Mello29.

Outras e outros pensadores e obras foram utilizados ao longo do trabalho, de maneira a densificar os elementos estudados.

Estruturalmente, o presente estudo se organiza em três capítulos. No primeiro deles – Democracia, mulheres e raça – é apresentado um panorama teórico sobre essas categorias, como elas se articulam e quais os entendimentos que adotamos sobre cada uma delas. Situamos os debates sobre a política de presenças e o problema da representação, apontando para as dificuldades entre o ideal de democracia e a sua realização. Finalizamos o capítulo questionando a existência de um apartheid representativo na política institucional brasileira, tomando como fundamento o debate trazido pelas teorias elitistas da democracia30.

No segundo capítulo – O Estado democrático de Direito e a efetivação dos

direitos políticos das mulheres negras –dedicamo-nos a compreender como os processos

de transformação no texto constitucional se relacionam com a dinâmica da participação feminina e negra nos espaços da política institucional. Discutimos as relações entre os princípios do Estado Democrático de Direito e da igualdade e o fenômeno da sub-representação feminina e negra. Apresentamos ainda uma leitura sobre a necropolítica31

e a possibilidade da afirmação de um direito constitucional antirracista como um instrumento de ampliação do exercício das liberdades ativas das mulheres negras.

24 DAVIS, Angela. Mulher, Raça e Classe. São Paulo: Boitempo, 2016

25 CISNE, Mirla. Feminismo, Luta de Classes e Consciência Militante Feminista no Brasil. Tese de

doutorado em Serviço Social defendida na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Rio de

Janeiro: UERJ, 2013. 409 f.

26 LORDE, Audre. La hermana, la extranjera: artículos y conferencias. Madrid: Horas y Horas, 2003. 27BONAVIDES, Paulo. Teoria constitucional da democracia participativa (por um Direito

constitucional de luta e resistência, por uma nova hermenêutica, por uma repolitização da legitimidade). 3ª ed. São Paulo: Malheiros, 2003.

28 MARTINS , Leonardo. Tribunal Constitucional Federal alemão: decisões anotadas sobre direitos

fundamentais. Vol. 1: Dignidade humana, livre desenvolvimento da personalidade, direito fundamental à vida e à integridade física, igualdade.São Paulo: Fundação Konrad Adenauer, 2016.

29 MELLO, Celso Antonio Bandeira de. Conteúdo jurídico do princípio da igualdade. São Paulo:

Malheiros, 1993.

30 Segundo Luís Felipe Miguel (2009, p.31), são “uma corrente teórica que nasceu para afirmar a

impossibilidade das democracias: a chamada “teoria das elites”. Os fundadores dessa corrente – Gaetano Mosca, Vilfredo Pareto e Robert Michels – não escondiam sua oposição aos movimentos democráticos e socialistas presentes na virada do século XIX”.

31 “A necropolítica, portanto, instaura-se como a organização necessária do poder em um mundo em que a

morte avança implacavelmente sobre a vida. A justificação da morte em nome dos riscos à economia e à segurança torna-se o fundamento ético dessa realidade” (ALMEIDA, 2018, p.96).

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Por fim, o terceiro capítulo – Congresso branco no Brasil negro: perspectivas – fizemos uma análise detida sobre o impacto dessa ausência, buscando avaliar se a atuação das mulheres negras nesse lócus tem tido vinculações com o problema das desigualdades de gênero e raça. Lançamos ainda um olhar sobre a mulher negra na multiplicidade de manifestações do exercício desses direitos políticos, como eleitora, como candidata, como parlamentar e ativista social. Encerraremos o tópico buscando identificar, na esteira do pensamento de Davis32, como as estruturas racistas e machistas da sociedade brasileira

são impactadas a partir da atuação política das mulheres negras, pensando em como a presença no espaço do legislativo federal pode repercutir em instrumentos para a efetivação dos seus direitos políticos.

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2 DEMOCRACIA, MULHERES E RAÇA

Falar sobre os conceitos de democracia, mulheres e raça envolve o desafio de dialogar com fontes das mais distintas áreas do conhecimento científico das Ciências Sociais. Optamos por trabalhar essas categorias de maneira articulada, sem pretensões de esgotá-las. Tomamos como ponto de partida a argumentação trazida Carneiro33, ao

defender que “a relação entre mulher negra e o poder é um tema praticamente inexistente. Falar dela é, então, como falar do ausente”. Esse sentir de “ausência” pode ser traduzido como a dificuldade que determinados sujeitos vivenciam ao buscarem acessar os espaços democráticos, notadamente aqueles vinculados às instituições típicas dos regimes representativos. Como assinala Oliveira34:

Não se pode ignorar que o grupo “mulheres” é bastante heterogêneo, englobando outros traços de vulnerabilidade que tornam algumas mulheres ainda mais sujeitas à dominação masculina do que outras, como é o caso das mulheres negras e pobres no Brasil e das mulheres indígenas na maioria dos países latino-americanos (OLIVEIRA, 2015, p. 16).

Assim, compreender o desenho do ambiente representativo e como as mulheres negras estão posicionadas demanda uma visão panorâmica sobre os três elementos, dado que apenas as dificuldades de inclusão/exclusão35 do funcionamento democrático não

conseguiram responder sozinhas a questão. Para a autora, é necessário compreender que elementos são esses que produzem mais vulnerabilidades, assim o debate sob o ponto de vista exclusivo do gênero não conseguiria abarcar a condições específicas que recaem sobre negras e indígenas. De maneira que é necessário articular a leitura de gênero com a de raça, para enxergar o fenômeno democrático que estamos estudando.

Estabelecido esse primeiro parâmetro, passaremos a enfrentar a leitura dessas categorias. Em primeiro lugar, é importante colocarmos que os sentidos da democracia não são estanques, acabados ou imunes ao momento histórico em que se situam. As complexas maneiras de ler a teoria democrática, de acordo com Cunninghan36, podem ser

33CARNEIRO, Aparecida Sueli. Mulheres negras e poder: um ensaio sobre a ausência. Revista do

Observatório Brasil da Igualdade de Gênero. Brasília: Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres,

2009.

34 RAMOS, Luciana de Oliveira. Os tribunais eleitorais e a desigualdade de gênero no Parlamento:

ampliando ou reduzindo a representação de mulheres na política? Tese de doutorado (Faculdade de Direito), Universidade de São Paulo, São Paulo, 2014. 187 p.

35HABERMAS, Jürgen. A inclusão do outro. Tradução George Sperber. São Paulo: Edições Loyola,

2002.

36 CUNNINGHAM, Frank. Teorias da Democracia. Uma introdução crítica. Porto Alegre: Arrmed,

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organizadas, para fins didáticos, em escolas37. Contudo, para o autor38, em meio aos

debates vinculados a cada uma dessas correntes, existem três visões essenciais sobre a democracia.

A partir dessas três leituras, situaremos o debate da articulação entre democracia, raça e gênero. O autor apresenta que Aristóteles39, Tocqueville40 e Shumpeter41 seriam

seus expoentes e, em sua opinião, os dois primeiros autores refletiram sobre o fenômeno democrático com muitas reservas. Diz o autor que "Aristóteles estava preparado para tolerar a democracia somente de má vontade, e Tocqueville foi, no melhor dos casos, ambivalente quanto ao assunto"42. Ao lançarem suas opiniões sobre a participação das

mulheres e da população negra na democracia, ambos os autores apresentam compreensões bastante precisas.

Para Aristóteles, ao descrever como as tiranias se conservam ao recorrerem ao rigor, uma listagem de quais seriam esses recursos e a questão da participação política das mulheres aparece. O autor destaca que:

Fazer uso dos recursos da extrema democracia, como a atribuição do governo doméstico às mulheres, para que elas revelem os segredos de seus maridos, e com o afrouxamento da escravidão, para que também os escravos denunciem seus senhores. Os escravos e as mulheres nada tramam contra os tiranos e até, se tiverem a felicidade de ser bem tratados por eles, afeiçoam-se necessariamente à tirania, ou à democracia, pois o povo também pode ser um tirano (ARISTÓTELES, 1985, p.250).

Aqui se expressa uma das reservas que o autor possuía com os regimes democráticos: a possibilidade de uma tirania coletiva. O pensador macedônico não identificava que a democracia seria a melhor forma de governo43.Em sua compreensão, a

aristocracia seria a melhor forma de gerir o mundo público44. E, em ambos os espaços,

37 Em sua classificação, elas seriam: a) democracia liberal, b) pluralismo clássico, c) catalaxe, d) democracia

participativa, e) democracia deliberativa e f) o pluralismo radical. CUNNINGHAN (2009, p.18).

38 CUNNINGHAN (2009, p.15)

39 ARISTÓTELES. Política. Tradução de Mário da Gama Kury. Brasília: Universidade de Brasília, 1985. 40 TOCQUEVILLE, Alexis de. A democracia na América. Belo Horizonte, Itatiaia; São Paulo, Editora da

Universidade de São Paulo, 1988.

41 SCHUMPETER, Joseph. Capitalismo, socialismo e democracia. Rio de Janeiro: Zahar Editora, 1984. 42 CUNNINGHAN (2009, p.18)

43 "A última espécie de democracia – aquela em que toda a população participa do governo – não é

suportável por todas as cidades, e não será fácil fazê-la durar muito tempo se ela não for bem constituída em suas leis e costumes. Para estabelecer esta espécie de democracia e tornar o seu povo poderoso, seus paladinos procuram conquistar o maior número possível de adeptos e estender a cidadania não somente aos filhos legítimos dos cidadãos, mas ainda aos espúrios e aos nascidos apenas de um cidadão ou de uma cidadã" (ARISTÓTELES, 1985, p.1319).

44 "Nessas questões, Aristóteles e Tocqueville estão em acordo com seus contemporâneos que foram não

qualificados como entusiastas democratas. Por exemplo, na sua famosa oração fúnebre durante a guerra do Peloponeso, feita no século anterior àquele em que Aristóteles estava escrevendo, Péricles elogiou a

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não cabiam as mulheres. Como a passagem revela, ao se inserirem na política, as mulheres poderiam se afeiçoar a experiência democrática, o que não seria bom em seu sentir, pois comprometeria suas virtudes e o seu papel da aristocracia seria o desempenhar a função de esposa, não de governante45.

A preocupação com a circunscrição das mulheres ao espaço do lar, do privado e do trabalho reprodutivo, aparece com constância em seu pensamento. Aristóteles refletia as compreensões sobre os papéis atribuídos aos homens e mulheres de sua época e não poderia ser cobrado que antecipasse conceitos sobre a ampliação dos horizontes, mas, houve contemporâneos de seu tempo que o fizeram46 a exemplo de Platão47. A respeito a

presença das mulheres na política assinalava que:

Não há na administração da cidade nenhuma ocupação, meu amigo, própria da mulher, enquanto mulher, nem do homem, enquanto homem, mas as qualidades naturais estão distribuídas de modo semelhante em ambos os seres, e a mulher participa de todas as atividades, de acordo e com a natureza, e o homem também (PLATÃO, 2001, p. 220).

A contraposição de Platão, ao enxergar a possibilidade de as mulheres alçarem espaços de decisão, assim como terem direito a uma educação igual à ministrada aos homens, não o colocam a salvo de críticas das leituras feministas. Contudo, como afirma Alvez-Jesus48, avançava-se na compreensão de que a mulher possuía iguais faculdades

para a atividade política, posição que Aristóteles não compartilhava.

E como advertiu Cunninghan49, seu pensamento influencia a elaboração teórica

sobre democracia de maneira ímpar, e com ele também seguem as narrativas sobre o papel

democracia ateniense por exibir as virtudes pessoais e cívicas que Aristóteles pensou que poderiam ser melhor cumpridas em uma realeza ou aristocracia" (CUNNINGHAN, 2009, p.18).

45 ARISTÓTELES (1985, p.1253).

46 "Que tais exclusões e limitações fossem comumente aceitáveis na época de Aristóteles, Tocqueville e

Schumpeter, isso não os escusa da submissão dessas questões à crítica. Nem todos os contemporâneos de Aristóteles aceitavam a escravidão e outras restrições persistentes aos poderes da cidadania, sendo que o seu mentor, Platão, ainda que não fosse um democrata, não viu deficiências inerentes que interditassem as mulheres de serem líderes políticos. Em qualquer caso, se espera pensamento crítico de um teórico político, especialmente daqueles tão bons nisso em outras matérias como esses três. Não obstante, um apelo às atitudes comuns de seu tempo ajuda a explicar como eles puderam aceitar tais exclusões e limitações sem aparentemente sentir a necessidade de justificar a aceitação"(CUNNINGHAN, 2009, p.22).

47PLATÃO. A República. Tradução de Maria Helena da Rocha. 9ª ed. Lisboa: Fundação Calouste

Gulbenkian, 2001.

48 "A primeira revela que as mulheres devem desempenhar as mesmas funções que os homens ao serviço

da comunidade, nomeadamente serem guardiãs tal como os seus maridos, devendo por isso usufruir de uma mesma forma de educação. A segunda propõe que as mulheres e os jovens sejam parte da comunidade, sendo que nem as primeiras terão marido, nem os segundos pais reconhecidos. Ambos os grupos deverão ser por isso comuns a todos, pertencendo assim a toda a comunidade. A terceira onda anuncia que a cidade só funcionará em pleno e sem nenhum sobressalto quando o seu governo for conduzido por reis que saibam o valor da filosofia e sejam eles próprios verdadeiros filósofos no desempenho da sua função"(ALVES-JESUS, 2015, p.242).

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de subalternização da mulher, marca do discurso do patriarcado. A formulação sobre o "homem como animal cívico"50 expressa também um conteúdo de gênero, em nossa

leitura. E, além disso, na determinação das características desse cidadão também apresenta um elemento de pertencimento racial. Segundo Aristóteles51:

Aqueles que são muito negros são covardes, como, por exemplo, os egípcios e os etíopes. Mas os excessivamente brancos também são covardes, como podemos ver pelo exemplo das mulheres (ARISTÓTELES, 1955, p.127).52

A coragem, uma qualidade importante na opinião do autor para atuar no espaço público, não seria encontrada nos negros nem nas mulheres. Daí, depreendermos que a leitura que o filósofo faz sobre o sujeito político da democracia grega estava assentada em um perfil masculino e branco. Assim, aqueles que tinham seus direitos políticos assegurados tinham na identidade seu ponto de partida fundamental. Mesmo sendo poucos os que detinham a capacidade de intervir como povo para determinar os rumos das Pólis, a tirania da maioria era temida e apresentada como um dos elementos que traria ruína aos governos democráticos. Essa mesma reserva está presente no pensamento de Tocqueville53.

A ameaça de supressão nas liberdades individuais face ao agigantamento dessa maioria de cidadãos, como diz Neves54, exprimia uma visão aproximada ao religioso com

a qual Tocqueville enxergava a tirania da maioria. Mas, apesar da dicotomia em que o pensador francês se coloca – o poder emana do povo e esse poder encerra um potencial de causar ruína na própria democracia – ele também observa que nem todos partilhavam dos espaços democráticos.

Assim, da mesma maneira como lemos em Aristóteles, a composição da democracia não seria tão diversa. Entre os segmentos que não exerciam a cidadania em plenitude estavam as mulheres, os negros e os indígenas originários. Mesmo assim, o

50"O homem é por natureza um animal social, e um homem que por natureza, e não por mero ambiente, não

fizesse parte de cidade alguma seria desprezível ou estaria acima da humanidade" (ARISTÓTELES, 1985, p. 1253

51 ARISTÓTELES. Minor Works. Tradução em inglês de W. S. Hett. Cambridge: Harvard University

Press, 1955. Disponível em < http://s3.amazonaws.com/loebolus/L307.pdf> Acesso em 24 de jan. de 2019. 52

No original “Those who are too swarthy are cowardly; this applies to Egyptians and Ethiopians. But the excessively fair are also cowardly; witness women”. A tradução utilizada foi feita na obra de MOKHTAR, Gamal. História geral da África, II: África antiga. 2.ed. rev. Brasília: UNESCO, 2010, p.13.

53 ″Considero ímpia e detestável a máxima de que, em matéria de governo, a maioria do povo tem o direito

de fazer tudo; apesar disso situo na vontade da maioria à origem de todos os poderes. Estarei em contradição comigo mesmo? ″ (TOCQUEVILLE,1988, p.294).

54 NEVES, F. J. T. . Tocqueville e Stuart Mill: reflexões sobre o liberalismo e a democracia. Achegas , v.

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entusiasmo de Tocqueville com o processo estadunidense, concede elementos para identificar qual a posição das mulheres nesse ambiente político efervescente. Em seus termos:

As próprias mulheres comparecem muitas vezes às assembleias públicas e se distraem, ouvindo os discursos políticos, dos aborrecimentos domésticos. Para elas, os clubes substituem até certo ponto os espetáculos (TOCQUEVILLE, 1988, p.294).

Entendemos, com fundamento nessa passagem, que Tocqueville não enxergava a presença das mulheres nas assembleias enquanto cidadãs, no sentido de intervir nas discussões, mas como um detalhe no processo político que analisava. Reitera-se aqui a caracterização dos espaços de realização da democracia como masculinos. Novamente, o contexto histórico em que Tocqueville se inseria ajuda a entender essas posições. Contudo, da mesma forma como suas ideias sobre os fundamentos democráticos ecoam, a conformação da cisão do ambiente político da experiência das mulheres também atravessa o tempo. No que concerne a sua leitura sobre a população negra nos Estados Unidos (EUA), o autor apresenta as contradições entre a garantia formal do exercício da política pelos negros e sua materialidade. Em suas palavras:

Em quase todos os Estados em que a escravidão foi abolida, deram-se ao negro direitos eleitorais; mas se ele se apresenta para votar corre risco de vida. Oprimido, pode se queixar, mas só encontra brancos entre seus juízes. A lei, no entanto, abre-lhe o banco dos jurados, mas o preconceito afasta-o dele. Seu filho é excluído da escola em que vai se instruir o descendente dos europeus. Nos teatros, ele não conseguiria comprar, nem a preço de ouro, o direito de sentar junto daquele que foi seu amo; nos hospitais, jaz à parte. Permite-se que o negro implore ao mesmo Deus dos brancos, mas não no mesmo altar. Ele tem seus padres e seus templos. Não lhe fecham as portas do céu, porém a desigualdade mal se detém à beira do outro mundo. Quando o negro falece, jogam seus ossos em separado, e a diferença de condição se encontra até mesmo na igualdade da morte (TOCQUEVILLE, 1988, p.398).

O autor reconhece, portanto, que por mais que se conceda formalmente a igualdade formal de participação política, a posição histórica em que os negros foram situados impede o pleno exercício dessas garantias. Essa passagem contribui para desvelar o fundo teórico do nosso problema: o pertencimento racial incide sobre as condições para o exercício da democracia. O pensador francês aponta que superar essas diferenças seria uma tarefa insuperável55.

55 “Não creio que a raça branca e a raça negra chegarão, em lugar nenhum, a viver em pé de igualdade“

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Embora tão distantes temporalmente, Aristóteles e Tocqueville reconheciam na democracia aspectos de descentralização do poder do governo, de uma refutação a aristocracia e um potencial destrutivo inerente ao seu desenho. Ao mesmo passo que reconheciam, cada um a sua maneira e circunscritos aos tempos históricos em que viveram, que nem todos partilhariam desse espaço democrático.

O desenho da democracia não comportaria a presenças de todos. A pergunta norteadora que segue é, e quando essas duas categorias se confundem em um só tempo? Qual a posição da mulher negra no cenário das discussões sobre os rumos do governo? Para responder a essa inquietação Davis (2016, p.75)56 apresenta que no início do

movimento sufragista feminino nos Estados Unidos, nos idos de 184057 “a maioria das

defensoras dos direitos das mulheres enxergava a supremacia masculina como uma falha imoral de uma sociedade que, em seus demais aspectos, era aceitável”. Assim, a percepção que a presença das mulheres negras era importante, ou deveria ser considerada na reivindicação da extensão ao sufrágio não era vista com centralidade. A composição das organizações das mulheres, segundo Davis58, era em sua maioria de mulheres brancas

das classes abastadas da época, elemento que ajuda a compreender a posição que defendiam.

Esse exemplo ilustra como a crítica aos aspectos teóricos da democracia feitas pelas sufragistas brancas, ainda repercutiam as visões sobre a exclusão da participação das pessoas negras nos espaços democráticos elaboradas em Aristóteles e Tocqueville. Com isso, não queremos dizer que as mulheres da época necessariamente tomavam os autores como referência para rejeitarem a presença das mulheres negras em seus espaços, o efeito pretendido aqui é demonstrar que os ecos de uma visão limitante da democracia estavam tanto no campo da teoria, quanto na prática política.

Para tentar perceber como o debate sobre a teoria democrática moderna se comportou sobre essas questões, trabalharemos com o último autor fundamental listado por Cunninghan59. Schumpeter60 formula que a democracia seria, em verdade, um arranjo

56 DAVIS, Angela. Raça, mulher e classe. 1ª ed. São Paulo: Boitempo, 2016.

57 De acordo com Cady, Stanton, Susan B. Anthony et al., History of woman suffrage, v. 1, 1887. Disponível

em<http://www.gutenberg.org/files/28020/28020-h/28020-h.htm> Acesso em 24 de jan. de 2019.

58 DAVIS, 2016, p.75.

59 Nesse sentido cf. STORCHI CARLO, Douglas. Joseph Schumpeter em capitalismo, socialismo e

democracia: um ensaio sobre suas contribuições ao desenvolvimento da teoria democrática. Desenvolvimento em Questão, v. 3, n. 5, 2005.

60 “A democracia é um método político, isto é, um certo tipo de arranjo institucional para chegar a uma

decisão política (legislativa ou administrativa) e, por isso mesmo, incapaz de ser um fim em si mesmo, sem relação com as decisões que produzirá em determinadas condições históricas” (SCHUMPETER,1984, p.291).

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institucional para a produção de decisões, e não um fim per si. Com um viés concorrencial, sua lógica condiciona o bom funcionamento do método democrático “a qualidade suficientemente alta61” do material humano destinado à atividade política

institucional. Em nossa visão, a lógica de seleção dos “melhores” contribui para uma retórica restritiva da participação política62. Como o próprio Schumpeter apresenta:

A capacidade é uma questão de opinião e de grau. A sua existência pode ser fixada apenas por algum conjunto de regras. E, sem absurdo ou insinceridade, é possível sustentar que a capacidade é medida pela aptidão da pessoa de prover sua subsistência. Numa comunidade de fortes convicções religiosas, é possível defender o ponto-de-vista (mais uma vez sem absurdo ou insinceridade) de que a heresia desqualifica, numa sociedade antifeminista, o sexo. Uma nação racialmente consciente pode vincular a capacidade a considerações raciais (SCHUMPETER,1984, p.295).

Esses filtros, na visão do autor, não são vistos como elementos que comprometam a legitimidade da democracia de nenhum regime. Sua preocupação está em analisar o funcionamento das sociedades que adotam o arranjo institucional democrático, abandonando qualquer idealismo, aponta que seria utópico crer em uma democracia dissociada do domínio das elites63. Assim, reforça-se uma compreensão de

que a democracia não se relacionaria necessariamente nem com ampliação dos espaços de decisão tão pouco teria que ser diversa quanto aos sujeitos políticos que participassem deles.

De acordo com Carlo64, não encontraria assento na teoria sobre a democracia de

Schumpeter uma legitimidade da vontade popular. A democracia seria um método procedimental onde governados podem eleger suas lideranças, em seus ditos: “a democracia significa apenas que o povo tem oportunidade de aceitar ou recusar aqueles que o governarão”65. Em sua visão, para se reconhecer uma democracia bastaria

identificar se esses mecanismos existiam, em estados centralizados – como os socialistas – não haveria incompatibilidade com a existência democrática66.

61 SCHUMPETER, Ibidem., 345.

62 “A participação política engloba qualquer forma de engajamento com a esfera política” (MIGUEL,

2018, p.203)

63“Seu perfil ideológico informa a evolução de uma ciência realista que, em oposição ao socialismo de

classes, crê numa possível independência do Estado em relação à sociedade civil, dado que a democracia liberal, dissociada do domínio das elites, seria meramente utópica“ (CARLO, 2005, p.127).

64(CARLO, 2005, p.133)

65 SCHUMPETER (1984, p.339).

66 “A nossa análise nesta parte e nas precedentes do presente livro fornece sem dificuldade uma resposta.

Entre o socialismo e a democracia, da maneira que os definimos, não existe uma relação necessária: um pode existir sem a outra. Mas, ao mesmo tempo, não ha incompatibilidade: em determinadas circunstâncias

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O autor austríaco rompe com uma visão utópica de democracia67, apontando para

seus limites e a identificando mais como um método de escolha do que um valor. Para nosso estudo, é importante perceber que nos três pilares fundamentais sobre o debate democrático – Aristóteles, Tocqueville, Schumpeter – a questão da inserção/exclusão dos sujeitos nos ambientes de decisão dos rumos dos governos está presente e que fizeram leituras sobre como as mulheres e os negros se localizavam nesse espaço. De igual maneira, a ideia de governo do povo, ou no caso de Schumpeter, de soberania popular, é vista com desconfiança em seus textos.

Apesar de tantas reservas, como observa Sen68, especialmente a partir da Segunda

Guerra Mundial (1939-1945), a democracia representativa foi apresentada como o grande vetor das sociedades ocidentais e, em sua leitura, seria o maior legado do século XX. Contudo, o autor aponta que isso implica em várias dificuldades, entre elas o respeito às minorias. Em sua opinião, regimes democráticos representativos não necessariamente serão mais respeitosos com os setores historicamente excluídos, algo que pode ser encontrado em regimes tradicionalmente lidos como não democráticos69. Assim, a síntese

que se afigura é de que a democracia é colocada como um horizonte, como atestam as leituras de que ela seria um direito humano de quarta geração70, mas desde seu desenho

teórico chegando às experiências práticas, percebemos que existem muitas limitações no modelo. Entre elas, a efetivação dos direitos políticos dos grupos minoritários71.

As críticas à limitação do modelo democrático também estão presentes no pensamento de Wood72. A autora afirma que o capitalismo provoca a desvalorização dos

bens políticos, e por consequência da própria democracia, em suas palavras “o capitalismo é incompatível com a democracia, se por “democracia” entendemos tal como o indica sua significação literal, o poder popular ou o governo do povo73”. Tal

constatação advém da forma como a democracia é lida contemporaneamente. Ela

do meio social, a máquina socialista pode funcionar de acordo com os princípios democráticos“ (SCHUMPETER, 1984, p.338).

67(CARLO, 2005, p.130)

68 SEN, Amartya. El valor de la democracia. Traducción de Javier Lomelí Ponce. Espanha: El viejo

topo. 2006, p.72.

69 SEN, Amartya. op. cit., p.10. 70 Nesse sentido BONAVIDES, 2013.

71“O conceito de minoria é o de um lugar onde se animam os fluxos de transformação de uma identidade

ou de uma relação de poder. Implica uma tomada de posição grupal no interior de uma dinâmica conflitual” (SODRÉ, 2005, p.13).

72WOOD, Ellen Meiksins. Democracia contra o Capitalismo: a renovação do materialismo histórico.

São Paulo: Boitempo, 2011, p.227.

73WOOD, Ellen Meiksins. Capitalismo e democracia. in A teoria marxista hoje. Problemas e perspectivas

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prossegue argumentando que, de maneira hegemônica, entre as características fundamentais da democracia representativa, encontra-se a necessidade de:

Substituir a ação política com cidadania passiva; enfatizar os direitos passivos em lugar dos poderes ativos; evitar qualquer confrontação com concentrações de poder social, particularmente se for com as classes dominantes, e finalmente, despolitizar a política (WOOD, 2007, p.420).

A autora argumenta que esse perfil de democracia foi gestado nos Estados Unidos da América e que, com ele, se construíram três acepções sobre o fenômeno. Na primeira acepção, a democracia é identificada como sinônimo de constitucionalismo, ao passo que a segunda enxerga na democracia a única maneira de limitar o poder das ações do Estado e a última, que identifica a democracia como a garantidora das liberdades individuais. O que a intelectual destaca é que essas leituras contemporâneas do fenômeno democrático implicam em uma cidadania passiva, sendo, nessa medida, antagônica a experiência da antiguidade clássica74.

Tal transformação é constatada, também, por Bobbio75. Em sua visão, uma

definição mínima possível sobre o significado de democracia a relacionaria com um conjunto de regras destinadas a formação de decisões coletivas, onde está resguardada a participação mais ampla dos sujeitos interessados. Reivindica, asem nossa leitura, uma cidadania ativa e diversa. Nesse sentido, Miguel76 complementa que é necessário

recuperar o sentido da democracia, como conteúdo e não enquanto campo neutro. Em sua visão:

É possível entender a democracia não como uma forma acabada de governo, mas como um projeto de enfrentamento das estruturas de dominação vigentes numa determinada sociedade (MIGUEL, 2014, p.96)

Essa maneira de enxergar a democracia, como um processo de acúmulo de forças sociais para o enfrentamento das desigualdades, nos parece ser a mais acertada do significado da democracia. Além de apontar que se trata de um processo. Um continuum. Entendemos que a vivência democrática demanda igualar as condições de participação, para que a representatividade tenha identidade com a população de um país em geral, e

74 WOOD, 2007, p.421.

75BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia: uma defesa das regras do jogo. Rio de Janeiro: Paz e

Terra, 1986, p. 12.

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não somente com sua elite e que se aprofunde essa transformação democrática para romper com as assimetrias sociais, de raça e gênero.

Para orientar a prática democrática no sentido de transformação da sociedade é necessário compreender o que se pretende superar. Assim, apreender quais são os mecanismos de opressão é fundamental. Como apresentamos em nossa introdução, muitos outros marcadores sociais de análises poderiam estar presentes, contudo o objetivo do presente estudo é refletir sobre a condição feminina e negra, o que nos leva a trabalhar com a categoria do gênero e da raça.

Identificar as razões das relações de desigualdade entre homens e mulheres e o problema democrático suscitaram estudos77, que se debruçaram sobre a questão. Para

compreender as interações entre os conceitos é primordial identificar quem é esse sujeito coletivo. Desde as concepções liberais sobre o feminismo até as pós-modernas, que investem na superação da própria categoria em si, é necessário compreender o significado da categoria mulher e as implicações daí decorrentes.

Em linhas gerais, conforme Kofes,78 os estudos feministas têm uma divisão básica

sobre o debate entre as categorias de gênero e de mulher. A estudiosa afirma que a principal polêmica reside na crítica de que os estudos sobre mulheres seriam incompletos e baseados em critérios meramente identitários, ao passo que os estudos de gênero são atacados por não compreenderem sujeitos concretos.79 Nos ditos de Kofes, a principal

diferença entre as correntes teóricas estaria em o “gênero” ser visto como uma categoria mais ampliada, analítica, ao passo que “mulher” não seria restrito, por ter natureza eminentemente empírica.

Já para Conceição,80 os estudos do gênero elaboram e defendem categorias

próprias, de maneira a explicar as desigualdades geradas, ou aprofundadas, em decorrência das identidades sexuais81. Linda Nicholson82 o compreende de outra forma.

77 Entre os destaques nesse debate elencamos, Stanton Cady, Susan B. Anthony, Olympe de Gouges, Nísia

Floresta, Berta Lutz, Nancy Fraser, Clara Zetkin.

78KOFES, Suely. Categorias analítica e empírica: gênero e mulher: disjunções, conjunções e mediações.

Cadernos Pagu, 2005.

79 KOFES, op.cit. p.20.

80 CONCEIÇÃO, Antônio Carlos Lima da. Teorias feministas: da “questão da mulher” ao enfoque de

gênero. Revista Brasileira de Sociologia da Emoção - RBSE, João Pessoa, p. 738-757, 2009.

81“A imbricação dessas diferenças tem dado vazão a uma variedade de feminismos (feminismo cultural,

humanista, marxista, socialista, psicanalítico, radical, lésbico, negro, pós estruturalista, do terceiro mundo etc.), que não podem ser cristalizados em uma única posição singular. Todavia esta heterogeneidade interna não provocou o debilitar político do feminismo enquanto movimento coletivo contra a dominação” (CONCEIÇÃO, 2009, p.749).

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Para a autora, o “gênero é a uma palavra estranha no feminismo”83 e que falha em sua

tentativa de romper com o fundacionismo84 biológico que a categoria mulher carregaria,

pois ainda que se avance no reconhecimento da construção social das identidades sexuais dos sujeitos, não se abandona o paradigma do sexo.

Para Nicholson é necessário reinterpretar o gênero. De maneira que a autora conclui que não há problema em utilizar a categoria mulher como um paradigma de análise válido. A autora advoga que ao utilizar o termo “mulheres” ampliam-se os horizontes da luta feminista, incluindo sujeitas que não estão necessariamente vinculadas aos movimentos de mulheres e mais, avança-se no reconhecimento de identidades reivindicadas, como no caso das transexuais e travestis. Em seus termos, usar a categoria mulheres, além de ser uma forma de enxergar a realidade feminina constitui-se em verdadeiros “atos políticos que refletem os contextos dos quais nós emergimos e os futuros que gostaríamos de ver”.85 Essa conceituação é importante por apontar um dos

primeiros pontos de contato com o debate democrático e a efetivação dos direitos políticos das mulheres, dado que aqui a figura “mulheres” é vista como um sujeito político por excelência.

A síntese dessas concepções é feita por Cisne. A autora aponta que o conceito de gênero tem uma utilização “destituída da noção de hierarquia entre os sexos e das de outras desigualdades estruturantes, como as de classe”.86 Nesse sentido, a autora utiliza a

expressão “relações sociais de sexo” que situam a questão de classe como central para a compreensão da teoria feminista.

O que parece mais acertado, para a proposta desenvolvida aqui, é que gênero e

mulheres são conceitos que devem ser utilizados de maneira articulada. Contudo, ao se

utilizar a categoria “mulheres”, abrange-se uma leitura a partir de sujeitos concretos, que sofrem as consequências da diferenciação baseada no sexo/gênero. Por isso, não há de se falar em “mulher” como uma categoria universalizante ou baseada na genitalização, mas como um sujeito concreto, múltiplo.

Para dar suporte as compreensões sobre esse sujeito concreto – mulheres – partimos de uma leitura feminista consubstancial87, corrente do pensamento feminista

83 NICHOLSON. op. cit., p.9.

84“Mas em contraste corn o determinismo biológico, o fundacionalismo biológico permite que os dados da

biologia coexistem corn os aspectos de personalidade e comportamento”(NICHOLSON. 2000, p.13.)

85 NICHOLSON. Ibidem, p.44.

86CISNE, Mirla. Feminismo, Luta de Classes e Consciência Militante Feminista no Brasil. Tese de

doutorado em Serviço Social defendida na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Rio de

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inaugurada por Danielle Kergoat88, elaborada por Helena Hirata89 e continuada, no Brasil,

por Mirla Cisne entre demais autoras90. O debate sobre a consubstancialidade vem para

demarcar uma posição frente a concepção interseccional de feminismo elaborada pelo movimento e pensamento negro das mulheres e intelectuais estadunidenses. Para o pensamento consubstancial, não seria qualquer intersecção de marcadores sociais que traduziria a complexa camada de opressões direcionadas as mulheres. Segundo essa tradição, a divisão sexual do trabalho e o debate de classe são o ponto de partida fundamental.

De forma que as “relações sociais de sexo”, como Cisne91 apresenta, seriam

cortadas por essa base concreta. As feministas marxistas têm trabalhado o conceito de consubstancialidade por dar centralidade a esse aspecto dentro do debate do patriarcado/machismo. Sobre a necessidade de articular as categorias para compreender os processos de opressão e exploração92, Kergoat93 explica que “as relações sociais são

consubstanciais; elas formam um nó que não pode ser desatado no nível das práticas sociais” que se retroalimentam, a partir das clivagens da classe, do gênero e da raça. A força de trabalho das mulheres negras é apropriada de maneira distinta das mulheres brancas, mas ambas sofrem as consequências da organização masculina do sistema de trabalho. Identificar esse processo de opressão e, dentro dele, os mecanismos de diferenciações entre as próprias sujeitas atingidas, é o principal mérito dessa visão, justamente por ter como centralidade a questão da classe. De acordo com Lorde94:

88 CRENSHAW, Kimberle W. A intersecionalidade na discriminação de raça e gênero. Criola. 2008.

Disponível em: < https://goo.gl/xTWCCP >. Acesso em: 15 nov. 2018.

89 HIRATA, Helena. Gênero, classe e raça interseccionalidade e consubstancialidade das relações sociais.

Revista Tempo Social, São Paulo, n. 26, v. 1, 2014. p. 61-73. Disponível em: <http://migre.me/u9cka>.

Acesso em: 15 nov. 2018.

90 SAFFIOTI, Heleieth I. B. Gênero, patriarcado, violência. São Paulo: Editora Fundação Perseu

Abramo, 2004

91 CISNE, op. cit., p. 287.

92 Aqui adotamos a divisão entre os dois conceitos, explicada sucintamente por Mariano e Ayres. Para os

autores “exploração é a apropriação dos frutos do trabalho coletivo por uma minoria. A opressão é a transformação das diferenças em desigualdades para por em desvantagem e/ou submeter alguém ou um determinado grupo social.”

93KERGOAT, Danièle. Dinâmica e consubstancialidade das relações sociais. Novos Estudos-CEBRAP,

n. 86, p. 93-103, 2010.

94 No original: “Pues si se considera que la inferioridad de una de las partes es consustancial a la

diferencia, el reconocimiento de ésta puede acarrear sentimientos de culpa. Permitir que las mujeres de Color se quiten de encima los estereotipos provoca un sentimiento de culpa en la medida en que amenaza la cómoda situación de las mujeres que ven la opresión como una cuestión exclusivamente relacionada con el sexo. Negarse a reconocer las diferencias impide ver los diversos problemas y peligros a los que nos enfrentamos las mujeres. En la estructura de poder patriarcal, uno - de cuyos puntales es el privilegio de tener la piel blanca, no se emplean los mismos engaños para neutralizar a las mujeres Negras y a las blancas Pois, se considerarmos que a inferioridade de uma das partes é consubstancial à diferença, o reconhecimento disso pode levar a sentimentos de culpa“ (LORDE, 2003, p.131)

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Permitir que as mulheres de cor se livrem dos estereótipos provoca um sentimento de culpa na medida em que ameaça a situação confortável das mulheres que vêem a opressão como uma questão exclusivamente relacionada ao sexo. Recusar-se a reconhecer as diferenças nos impede de ver os vários problemas e perigos que as mulheres enfrentam. Na estrutura do poder patriarcal, um dos fundamentos de quem tem o privilégio de ter pele branca, os mesmos enganos não são usados para neutralizar mulheres negras e mulheres brancas. (LORDE, 2003, p.131).

Ignorar essas diferenças ou não as perceber como centrais, na leitura que fazemos de Lorde, é contribuir para a continuidade do machismo e do racismo. A força da luta feminista, em sua opinião está justamente em organizar as mulheres com suas diferenças. Assim, ao analisar o feminino não é pertinente retroceder a leituras essencialistas, pretensamente universalizantes.

Partindo do viés de análise da obra clássica, “A Origem da Família, da

propriedade privada e do Estado”, Engels95 demonstra que o primeiro antagonismo de

classe coincide com a relação de hierarquização do homem sobre a mulher, explicando sua condição de subalternidade. Situação que vem atravessando os séculos, com avanços, é certo, mas com inúmeras permanências.

Basta analisar os dados levantados pelo Fórum Econômico Mundial96. O relatório

revelou que uma possível equiparação entre os gêneros, se mantidas as tendências apuradas em 2017, levaria 217 anos para se concretizar. Assim, por mais que, como um conjunto, as mulheres tenham avançado no reconhecimento de sua condição de sujeito de direitos, estruturalmente as hierarquizações de base sexual/gênero mantêm-se.

Ou seja, trabalhamos aqui com esse sujeito concreto, determinado, que em maior ou menor medida suporta os efeitos do machismo97 onde quer que se encontre.

Entende-se que essa categoria melhor explica a realidade dessas sujeitas, como agentes políticos na sociedade brasileira. Justamente por romper a lógica uniformizante do feminino que a denominação da categoria deve estar no plural. Entre as mulheres existem inúmeras variáveis que as expõem de maneira distinta aos efeitos dos sistemas de opressão e uma

95ENGELS, Friedrich. A origem da família, da propriedade privada e do Estado. Rio de

Janeiro:Civilização brasileira. 9º ed. Tradução de Leandro Konder. 1984, p.70.

96World Economic Forum. Global Gender Gap Report 2017. Disponível em <

http://reports.weforum.org/global-gender-gap-report-2017/> Acesso em 28 de out. de 2018

97 Apesar de não haver consenso entre as feministas ao tratarem o conceito de gênero e de patriarcado como

antagonistas inconciliáveis, compreende-se que a concepção de Saffioti (2004) é a mais precisa. A autora entende que o machismo pode ser utilizado em conjunto com o conceito de patriarcado, no sentido de significarem um sistema de dominação dos homens sobre as mulheres, rejeitando, no entanto, a noção naturalizante da diferença sexual e de uma mulher universal, isto é, admitindo-se as diferenças entre as mulheres.

Referências

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