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A vida em sociedade exige a pacificação dos conflitos através de instrumentos limitadores das ações individuais. Os ideais de liberdade não são, portanto, absolutos. Seu conceito é indissociável do princípio da igualdade, significando que à liberdade de um indivíduo corresponde, na mesma medida, a liberdade de cada um dos demais indivíduos. Há que se estabelecer, pois, um parâmetro ao comportamento humano que torne possível o equilíbrio na distribuição das liberdades, através de normas de conduta impostas igualmente a todos os cidadãos.

Não por acaso, o ideal revolucionário francês, ao traduzir os princípios do Estado moderno, listou a “igualdade” e a “liberdade” acompanhadas da “fraternidade”, norte humanista na formação dos sistemas jurídicos norma&zados.

ARISTÓTELES define a jus&ça como uma “disposição da alma” que nos induz a agir

conforme um ideal de jus&ça e a desejar o que é justo209. De modo que, para fazer

alcançar a jus&ça de uma decisão, há que definir, primeiro, o que é justo e o que não é. E há que definir, também, entre muitos conceitos subje&vos, um conceito único obje&vo que assuma a condição de senso comum na sociedade a que se aplica. Isso porque cada um tem, dentro de si, uma iden&dade formada pelas experiências e lições recebidas durante toda a sua existência, base para a modulação de seu próprio

209“A jus&ça é a disposição da alma graças à qual nos dispomos a fazer o que é justo, a agir justamente e a desejar o que é justo.” (ARISTÓTELES - É ca a Nicômacos. Trad. do grego, introd. e notas: KURY, Mário da Gama. 3ª ed., Livro V, pp. 91-111. Brasília: UnB, 1985, p. 91).

conceito do que deve ser considerado certo ou errado. É justo, numa definição básica e de princípio geral, fazer o bem e rejeitar o mal.

Os princípios adotados na formação dos Estados modernos, de liberdade, igualdade, dignidade e fraternidade (consagrados no artº. 1º da Declaração Universal dos Direitos Humanos) reafirmam o conceito de ARISTÓTELES em sua fórmula de

proporcionalidade da jus&ça: subtrair da parte que tem mais e acrescentar à parte que tem menos, em um esforço cole&vo para assegurar a liberdade, a igualdade e a autossuficiência do grupo210.

Encontramos em KELSEN uma definição convergente, iden&ficando a jus&ça na

ordem social que conduz os homens a uma coexistência sa&sfatória. Seu conceito de jus&ça está in&mamente relacionado com o anseio humano pela felicidade, que somente pode ser encontrada na vida em sociedade. E arremata que “a jus&ça é a felicidade social”211.

Por uma inata inspiração divina, pela observação dos fenómenos da natureza ou pela influência de todos os fatores que moldam a psique, a definição do justo é subje&vamente natural a cada indivíduo, não se afastando, porém, da ideia comum da distribuição fraternal dos bens e direitos sociais. Essa subje&vidade permite uma certa variação na medida da proporcionalidade que se considera justa ou injusta. Nesse caso, surge a necessidade de se estabelecer um padrão de jus&ça comum a todos os integrantes da sociedade.

Sendo a jus&ça uma forma de excelência moral212, a posi&vação do Direito deve

orientar-se pela maior proximidade possível com a realização do que é justo, numa tendência ideológica213. Uma vez ins&tuída uma ordem social, a definição da jus&ça de

um ato não pode se afastar de sua adequação à norma. Outra questão é discu&r se o Direito norma&zado é justo ou não.

Subje&vamente, a lei será considerada justa se a sua aplicação conduz à realização dos fins do Estado, definindo condutas que permitem a solução pacífica dos

210 ARISTÓTELES, É ca a Nicômacos,p. 102.

211 “Ou seja, quando todos os homens encontram nela a sua felicidade.” (KELSEN, Teoria do direito e do Estado, p. 9). 212 ARISTÓTELES, op. cit., p. 93.

conflitos internos da sociedade. Obje&vamente, porém, a jus&ça da lei só pode ser julgada pelo critério da legi&midade.

Em um moderno Estado democrá&co de Direito, a definição do conceito fundamental do que deve ser considerado como justo é atribuída ao poder legisla&vo, em especial o cons&tuinte. O texto básico da Cons&tuição do Estado e as leis que a complementam atestam o conceito de jus&ça de acordo com o pensamento médio cole&vo. A lei será justa, então, se seus preceitos convergirem para os princípios cons&tucionalmente consagrados e se, tanto a lei quanto a Cons&tuição, resultarem de um processo legisla&vo legí&mo e democrá&co, respeitando a igual par&cipação e a representação de todos, sem exclusão das minorias.

Haverá alguma lei que, mesmo editada sob o mais perfeito processo, parecerá injusta à ó&ca individual, em comparação subje&va aos ideais do Direito natural. Par&ndo da ideia de que a função da vida em sociedade é garan&r os meios necessários na busca pela felicidade, adotando como parâmetro o artº. 1º da Declaração Universal dos Direitos Humanos214, os Estados modernos devem ser

cons&tuídos de forma a garan&r a liberdade e a igualdade dos seus cidadãos, além dos meios e recursos necessários a uma existência digna. A soberania afirmada no artº. 2º da Carta das Nações Unidas215 assegura a legi&midade na autodeterminação dos

princípios internos de cons&tuição.

Assim, tanto a jus&ça de um ato quanto a legi&midade de uma lei devem ser analisadas sob dois aspetos: um extrínseco e outro intrínseco. Os fatores extrínsecos da legi&midade de uma lei dizem respeito à posi&vação do Direito através de um processo legisla&vo legí&mo. A competência e o processo legisla&vos variam a cada Estado, mas devem observar os princípios democrá&cos e a forma assegurada na sua Cons&tuição.

Mesmo que a lei se apresente formalmente legí&ma, fazendo preceder sua promulgação por lídimo processo legisla&vo, para que sua legi&midade seja plena ela

214 “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. Dotados de razão e de consciência, devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade.” (ORGANIZAÇÃODAS NAÇÕES UNIDAS, Assembleia Geral – Declaração Universal dos

Direitos Humanos.

215 “A Organização é baseada no princípio da igualdade soberana de todos os seus membros.” (ORGANIZAÇÃODAS NAÇÕES UNIDAS –

Carta das Nações Unidas (1945) [acedido em 22 abril 2018]. Disponível na internet: hcps://nacoesunidas.org/wp-content/

deve apresentar, ainda, elementos intrínsecos que a aproximem do ideal de jus&ça predominante no pensamento cole&vo da sociedade que pretende regular.

Também a ação humana, quando subme&da a julgamento, sujeita-se a parâmetros de forma e conteúdo. O ato formalmente justo é aquele pra&cado sob a estrita regência legal, em obediência à norma&zação posi&vada no sistema jurídico do Estado detentor da competência legisla&va funcional. Mas, para ser materialmente justo, deverá atender, também, à finalidade da lei, aquele elemento intrínseco que, por sua vez, deve ser ú&l à realização dos fins do Estado.

Reconhecer a jus&ça formal do ato e da lei exige apenas uma análise obje&va da sua adequação às regras vigentes no sistema jurídico. Mais di[cil é dizer se uma ação é materialmente justa ou injusta216, pela subje&vidade que carrega na definição do que

seria a jus&ça ideal. Mesmo que se encontre uma ideia comum do que seria o absolutamente justo, ainda assim haveria nuances a serem percebidas na adequação de um caso concreto.

Tomemos por exemplo um primeiro princípio orientador de qualquer sistema jurídico civilizado. Sem a garan&a do direito à vida, de nada valeriam a saúde, habitação, educação e outros direitos que o Estado deve garan&r aos seus cidadãos. Mas, mesmo esse direito incontestavelmente fundamental pode ser rela&vizado pelas circunstâncias. Pode-se discu&r a legi&midade de um sistema legal que admite pena de morte. Menor será, porém, a resistência em aceitar uma ação em legí&ma defesa, em que a ameaça ao exercício de um direito jus&fica a ofensa, na mesma medida, ao direito do outro. E aqui, também, surgirão as nuances, como a proporcionalidade e a necessidade, por exemplo, a provocar variações no julgamento da jus&ça do ato.

Não parece exagero a afirmação de KELSEN sobre a incapacidade humana de

aceder ao ideal de jus&ça217, se a analisarmos como um conceito universal. Mas cada

sociedade compar&lha um sen&mento comum sobre o que deve ser considerado certo e o que deve ser considerado errado, permi&ndo aos seus cidadãos mo&var

216 KELSEN adverte, com propriedade, que, “caso houvesse uma jus&ça obje&vamente reconhecível, não haveria Direito posi&vo e, consequentemente, Estado; pois não seria necessário coagir as pessoas a serem felizes”, significando felicidade o respeito pleno dos direitos fundamentais. (KELSEN, Teoria do direito e do Estado, p. 19).

in&mamente suas ações, não apenas pelos parâmetros da legalidade, mas também pelos padrões morais de um comportamento é&co218. A correta inserção desse ideal de

jus&ça nos instrumentos formais do direito é que garante à sociedade um Estado justo, não apenas na forma, mas também na essência.