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Direitos fundamentais sociais e reserva do possível

No documento victorlunavidal (páginas 96-102)

De acordo com Holmes e Sustein (1999), os direitos, para serem efetivados, implicam custos. Sob tal perspectiva, estão inseridos tanto os direitos negativos, isto é, aqueles de natureza eminentemente liberal, uma vez que demandam a atuação do aparato estatal organizado para tutelá-los, quanto os direitos fundamentais sociais de caráter prestacional, os quais demandam a atuação do Estado por meio da concessão de bens e serviços à população. Nesse contexto, a limitação dos recursos públicos para a concreção dos direitos e, em especial, da segunda categoria de direitos referida, suscita o debate quanto à limitação dos recursos estatais para a sua promoção. As discussões ora suscitadas invocam, nos âmbitos jurisprudencial e doutrinário, o argumento da reserva do possível.

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Segundo Sarlet (2011, p. 287), o conceito em exame advém de uma decisão da Constitucional Federal da Alemanha, em que restou assentada a posição de que prestações materiais requeridas ao Estado devem corresponder ao que indivíduo pode razoavelmente exigir, de modo que, mesmo havendo recursos para o poder de disposição, não se pode falar em uma obrigação de prestar algo que não esteja circunscrito aos limites daquilo que é considerado razoável.

Já para Lopes (2010, p. 161), o termo relaciona-se a um conjunto de decisões alocativas de recursos que deve ser visualizado sob o ponto de vista comparativo entre orçamento geral e a destinação específica desses recursos para o suprimento de determinadas necessidades. Em consonância com a orientação de Sarlet (2011, p. 286-287), a verificação da disponibilidade de recursos sob a perspectiva global não possibilita a prestação imediata de determinado bem àquele que a requer, haja vista a necessidade de harmonização dos diferentes interesses abarcados pelo ordenamento jurídico.

A noção de escassez associada à reserva do possível não é sempre natural, estando vinculada a escolhas de caráter político. Assim, Olsen (2006, p. 212-213) ressalta a necessidade de diferenciação entre aquilo que não pode ser realizado em virtude da inexistência de meios suficientes, e aquilo que, observados os parâmetros do ordenamento jurídico para a alocação de recursos, não é possível por razões vinculadas à determinação de prioridades em sociedade.

Em adição à presente discussão, Sarlet (2011, p. 288) destaca que alguns juristas sustentam que a reserva do possível integra os direitos fundamentais, como se compusesse o seu núcleo essencial. Tal entendimento não está alinhado, contudo, com a proposta deste trabalho. Como um argumento relacionado aos princípios da democracia e da separação de poderes, a reserva do possível demonstra a autonomia frente os direitos fundamentais. Trata- se, portanto, de um argumento relacionado a um princípio formal autônomo.

Mesmo que se considere, sob a perspectiva lógica, a reserva do possível como um limite imanente dos direitos fundamentais, essa concepção tende a gerar sérias repercussões no que concerne à proteção dos direitos fundamentais, haja vista a possibilidade de descrição do seu âmbito normativo, e de seus limites inerentes, com “total discricionariedade para afirmar o que é possível e o que não é” (OLSEN, 2006, p. 202). Embora reconheça que a discricionariedade compõe o exercício dos Poderes, a opção pelo Estado Democrático de

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Direito requer o reconhecimento de que a discricionariedade não é total, devendo ser enquadrada nos objetivos traçados pela Constituição de cada país.

As visões enunciadas implicam, por consequência, o afastamento da concepção pautada pela existência de limites imanentes aos direitos fundamentais. A assunção da reserva do possível como limite externo aos direitos fundamentais, contudo, não impede a sua existência jurídica, mas pode conduzir a limitações sob o ponto de vista eficacial (OLSEN, 2006, p. 206).

Sintetizando as posições acima, a reserva do possível considera, assim, uma noção de escassez, que pode ser artificial ou natural, que potencialmente restringe a eficácia dos direitos fundamentais. Assim, a primeira característica fundamenta a noção de escassez, que pode ser natural – quando fatores que independem da vontade humana determinam a condição de insuficiência-, e também artificial – quando prioridades estabelecidas pelo ordenamento jurídico, e em especial pela Constituição, definem os parâmetros para a realização de decisões alocativas de recursos. Enquanto isso, a segunda veicula a dimensão limitadora da efetivação dos direitos fundamentais, haja vista a existência de custos para a sua concretização.

As noções acima indicadas apontam, portanto, no que tange à temática dos direitos sociais, que, para que sejam efetivados, deve-se proceder a uma investigação da viabilidade econômica para a sua realização. Deve-se ressaltar, contudo, que a simples argumentação de que não há recursos suficientes para a satisfação da demanda não é satisfatória. Assim, será maior o ônus argumentativo no sentido comprovação da indisponibilidade de recursos pelo Estado.

A articulação dos princípios em jogo simboliza o caráter democrático de um sistema jurídico. Destarte, a proteção de direitos na órbita constitucional torna necessário que os comandos normativos que os definem sejam levados a sério, mediante o exercício da argumentação de forma racional. O núcleo essencial dos direitos fundamentais, nesse contexto, é o limite à intervenção dos agentes públicos, não sendo admissível o seu desrespeito.

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5 O DIREITO FUNDAMENTAL À SAÚDE

A Constituição (BRASIL, 1988) trouxe avanços significativos no tocante à temática dos direitos fundamentais. Segundo Sarlet (2011, p. 63), pela primeira vez na história do constitucionalismo nacional a matéria teve tratamento central na composição do ordenamento jurídico no país. Resultado de um amplo debate promovido no contexto da redemocratização política e institucional na década de 1980, o processo de catalogação e de tutela jurídica dos referidos direitos caracterizou-se pelo seu tratamento analítico e plural, destacando-se o seu significativo cunho dirigente(SARLET, 2011, p. 64).

O caráter analítico do texto constitucional pode ser vislumbrado pela existência não somente de direitos pormenorizadamente dispostos no Titulo II (BRASIL, 1988), como também pela identificação de outros direitos dispersos ao longo do texto constitucional. Nesse contexto, o estabelecimento de previsões minudentes quanto à proteção dos direitos “revela certa desconfiança em relação ao legislador infraconstitucional, além de demonstrar a intenção de salvaguardar uma série de reivindicações e conquistas contra uma eventual erosão ou supressão pelos Poderes constituídos” (SARLET, 2011, p. 65).

O pluralismo resultante do debate constituinte resultou na incorporação de direitos sociais no plano constitucional. Nesse sentido, a consagração desses direitos como fundamentais representou um avanço em comparação aos documentos constitucionais anteriores, visto que, pela primeira vez na história brasileira, eles não estiveram restritos ao capítulo da ordem social e econômica do país. Revela o novo texto constitucional, portanto, a centralidade dos direitos para a ordem jurídica e, principalmente, o compromisso com a eficácia, opondo-se ao até então reconhecido caráter programático das normas constitucionais. De modo exemplificativo, no tocante aos direitos fundamentais sociais, a preocupação do constituinte não se limitou a prevê-los, como também procurou traçar parâmetros para a sua concretização. Assim, embora o Estado brasileiro não tenha se constituído historicamente sob a perspectiva de um Estado de Bem Estar Social – configuração estatal baseada no critério do universalismo e na promoção de políticas públicas de caráter preponderantemente social, voltadas à ampliação do conceito de cidadania17 –

17 Ciarlini (2013, p. 27) caracteriza o modelo de Estado de Bem-Estar Social com as seguintes palavras: “A ênfase desse sistema é justamente a de que todos os indivíduos teriam o direito a um

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iniciativas no sentido de proteger os direitos sociais foram concretizadas pelo texto constitucional. Destaque-se a criação de estruturas dirigidas à prestação de serviços públicos nas esferas da saúde e da assistência social. O primeiro tem como principal marca a institucionalização de um sistema público de saúde com previsão de atendimento universal e integral – o Sistema Único de Saúde, conforme previsão do artigo 196 da Constituição (BRASIL, 1988), e o segundo o estabelecimento de uma política de distribuição de renda aos grupos social e economicamente considerados vulneráveis, custeada pelo orçamento da seguridade social18.

Conforme ressaltado, o aspecto dirigente confirmado pela normatização de princípios fundamentais e de objetivos a serem perseguidos pelo novo pacto jurídico e social efetivou-se pelo desenho de metas a serem cumpridas pelo Estado. Assim, vislumbra-se a manifestação da proteção da dignidade humana por meio do estabelecimento de metas de combate à pobreza e às desigualdades sociais e regionais, bem como a construção de uma sociedade fundada nas ideias de liberdade e de solidariedade, conforme enunciam, respectivamente, os incisos III e I do artigo 3º da Constituição (BRASIL, 1988).

Ao estabelecer a aplicabilidade imediata das normas garantidoras de direitos fundamentais pelo artigo §1º do artigo 5º (BRASIL, 1988), o constituinte tentou afastar o caráter programático das normas de direitos fundamentais, promovendo a sua conversão de meras promessas restritas à órbita política, a deveres a serem cumpridos pela ação dos poderes constituídos. Embora ainda remanesça controverso o alcance do significado da disposição constitucional supracitada, há que se reconhecer, mesmo entre as interpretações mais conservadoras nos âmbitos doutrinário e jurisprudencial, o esforço do legislador constituinte em evitar o esvaziamento dos direitos fundamentais19.

conjunto de bens e serviços fornecidos direta ou indiretamente pelo Estado, em virtude do poder regulamentar exercido por este sobre a sociedade civil. Nessa perspectiva, esses direitos englobariam itens como a cobertura dos serviços de saúde, de educação integral do cidadão, de auxílio financeiro aos desempregados, de garantia de renda mínima etc.

18 Observe-se que os critérios considerados pelo legislador constituinte para a determinação dos indivíduos considerados vulneráveis estão presentes no artigo 203 da Constituição (BRASIL, 1988). Por sua vez, o artigo 204 prevê o custeio das referidas despesas pelo orçamento da seguridade social. 19 De acordo com Sarlet (2011, p. 261-267), a discussão quanto ao alcance e ao significado da disposição prevista no artigo no §1º do artigo 5º da Constituição (BRASIL, 1988) envolve uma série de aspectos controvertidos. Discute-se, por exemplo, se os direitos previstos além do catálogo do artigo 5º podem ser também considerados fundamentais, o que acarreta a tutela dos mesmos pelo

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Apesar do esforço constitucional em torno da concretização de um Estado de Bem-Estar Social por meio do estabelecimento de diretrizes jurídicas e políticas, deve-se reconhecer que o momento histórico de surgimento de um documento normativo-social tão ambicioso foi acompanhado de enormes obstáculos ao cumprimento de suas promessas. Segundo Streck (2003, p. 268), se, por um lado, o pacto constitucional de 1986-1988 desenvolveu-se pela opção de construção de políticas públicas destinadas à realização da justiça social, são contrapostos a esse processo a manifestação da “crise do Direito”, e em especial, do Poder Judiciário – o que ocorreu pela escolha política da combinação do inchaço do Poder Executivo, e de sua tendência de incorporação dos interesses de mercado à esfera ao setor público, à diminuição do Poder Judiciário e de seu papel de controle da ordem jurídica – e um enfraquecimento da estrutura estatal por meio da ascensão de governos neoliberais.

No âmbito dos direitos sociais, as limitações à efetivação das promessas constitucionais são traduzidas por Ciarlini (2013, p. 29) pela existência de “contingências econômicas, financeiras, políticas e sociais,” além de “peculiaridades burocráticas pró prias à organização de tais processos de inclusão”, que resultam na potencialização de políticas públicas que, em vez de promoverem o combate às desigualdades, acabam por acentuar a exclusão social.

De forma sintética, nota-se que a proposta de universalização das políticas públicas e da efetividade dos direitos sociais tem cedido espaço diante de acontecimentos políticos, sociais e econômicos no país contrários à efetivação das previsões constitucionais (CIARLINI, 2013, p. 29)20.

Apesar das adversidades percebidas ao longo do caminho de concretização dos ditames constitucionais, deve-se atentar para o surgimento de posicionamentos doutrinários e jurisprudenciais em torno da tentativa de se conferir proteção e efetividade aos direitos fundamentais. Nesse sentido, leituras como a de Streck (2003, p. 276) são voltadas a novas interpretações do ordenamento jurídico com o fim de promover “o preenchimento do déficit referido dispositivo constitucional. De outra banda, analisam-se os obstáculos à concretização de direitos que demandam a atuação do legislador infraconstitucional para a conformação de sua eficácia e de seu sentido. Ressalte-se, em síntese, que mesmo para aqueles que tendem a limitar a aplicabilidade da referida norma, há de se reconhecer, pelo menos, a existência de efeitos mínimos dela derivados, como, de modo exemplificativo, a vedação à criação de leis que contrariem os mandamentos constitucionais.

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resultante do histórico descumprimento das promessas da modernidade” por meio de teorias da Constituição adequadas à realidade países considerados periféricos, com o incentivo ao aprimoramento dos instrumentos de acesso à jurisdição constitucional e à participação democrática.

Adaptadas à realidade nacional, as propostas de Dworkin (2002, 2007) e Alexy (2005, 2011) ora sustentadas por este trabalho podem contribuir para a análise do direito fundamental à saúde, previsto nos artigos 6º e 196 da Constituição (BRASIL, 1988), o que será feito nos itens seguintes.

No documento victorlunavidal (páginas 96-102)