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Em momento pretérito, Canotilho defendeu a idéia de uma Constituição Dirigente, de modo que as normas constitucionais estabeleceriam as diretrizes da forma de agir do Poder Público, bem como dos particulares. Vale dizer que a noção de Constituição Dirigente conferiu às normas constitucionais uma eficácia vinculante em face da atuação do Poder Público, seja pelo Poder Executivo, na execução das políticas públicas, seja pelo Poder Legislativo, na elaboração das leis. Assim, o conceito de Constituição Dirigente rompeu com a idéia de constituição meramente programática, sem qualquer efeito vinculante.

Como é cediço, Canotilho reformulou substancialmente seu posicionamento, chegando a afirmar que a Constituição Dirigente estaria morta. Nas palavras do autor lusitano:

Em jeito de conclusão, dir-se-ia que a Constituição dirigente está morta se o dirigismo constitucional for entendido como normativismo constitucional revolucionário capaz de, só por si, operar transformações emancipatórias. Também suportará impulsos tanáticos qualquer texto constitucional dirigente introvertidamente vergado sobre si próprio e alheio aos processos de abertura do direito constitucional ao direito internacional e aos direitos supranacionais146.

Canotilho asseverou, ainda, que o constitucionalismo deveria deixar seu “autismo nacionalista e patriótico” para se adaptar aos “esquemas regulativos das

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SARLET, Ingo Wolfgang. Os Direitos Fundamentais Sociais na Constituição de 1988. In: Revista

Diálogo Jurídico, Salvador, CAJ – Centro de Atualização Jurídica, v. 1, n° 1, 2001, p. 39. Disponível em:

<http://www.direitopublico.com.br>. Acesso em: 14 de junho de 2007.

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CANOTILHO. José Joaquim Gomes. Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador. Contributo para a compreensão das normas constitucionais programáticas. 2. ed. Coimbra: Coimbra, 2001, p. XXIX.

novas ‘associações abertas de estados nacionais abertos’”147. Diante disso, a

Constituição deixaria de ser dirigente e capaz de provocar modificações no campo do Direito e na própria sociedade para se tornar uma disciplina dirigida pelas influências da comunidade internacional148.

Desse modo, Canotilho passou a adotar um dirigismo constitucional mitigado, de tal sorte que a Constituição não poderia definir políticas públicas e impor a sua execução pelo Estado, mas teria apenas o condão de estabelecer fins e objetivos. Neste contexto, ao mencionar que a Constituição não poderia fixar políticas públicas, o autor deixou claro que o Estado não deveria ficar aprisionado ao cumprimento de medidas previstas no texto constitucional, sob pena de não atingir as metas previstas em acordos internacionais.

Segundo Canotilho, a Constituição deveria se limitar às “exigências constitucionais mínimas (constitucional essential, nas palavras de Rawls), ou seja, o complexo de direitos e liberdades definidoras das cidadanias, pessoal, política e econômica e intocáveis pelas maiorias parlamentares”149.

É válido advertir, por outro lado, que a nova concepção de Constituição, elaborada por Canotilho, deve ser analisada em face do momento sociopolítico atual por que passa Portugal, que é bem distinto da época em que foi promulgada a Constituição de 1976. Dessa forma, deve ser levada em consideração a integração de Portugal à União Européia, o que torna necessária a submissão do Estado Português a algumas regras de direito supranacional150

.

Lenio Streck, por seu turno, aponta que o dirigismo constitucional conserva- se relevante em países como o Brasil, haja vista que ainda não logrou atingir um patamar mínimo aceitável no tocante à estabilidade social. De acordo com o autor, ainda na esteira de Canotilho, a Constituição procurou gerar uma idéia de estabilidade social alicerçada no combate a três violências: a) a violência à segurança e à liberdade; b) a violência decorrente da desigualdade política; e c) a violência derivada da pobreza.

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CANOTILHO. José Joaquim Gomes. Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador. Contributo para a compreensão das normas constitucionais programáticas. 2. ed. Coimbra: Coimbra, 2001, pp. XI - XII.

148

OLSEN, Ana Carolina Lopes. A Eficácia dos Direitos Fundamentais Sociais frente à Reserva do

Possível. Dissertação de Mestrado. Curitiba: Universidade Federal do Paraná, 2006, p. 266.

149

CANOTILHO. José Joaquim Gomes.Op. Cit., p. XXI.

150

Quanto aos países que ainda não se vêem comprometidos no combate a estas violências – como é o caso do Brasil – admite o autor a força dirigente da Constituição na formulação e execução das políticas públicas151.

Portanto, a nova concepção de Constituição formulada por Canotilho não deve ser aplicada ao caso brasileiro, haja vista as nítidas diferenças de ordem sociopolítico-econômica entre Brasil e Portugal.

Ao sopesar as diferenças dos dois países, Lenio Streck procurou formular uma teoria que adaptasse a idéia inicial da Constituição Dirigente (ou seja, a Constituição como matriz diretiva da atuação dos poderes públicos) ao contexto sóciopolítico-econômico de países que não conseguiram implementar as promessas da modernidade, como o Brasil. A partir daí, o autor gaúcho desenvolveu a Teoria da Constituição Dirigente Adequada a Países de Modernidade Tardia152.

Nesta perspectiva, ressalte-se que Ingo Sarlet153 e Gilberto Bercovici154

também admitem que o constitucionalismo dirigente ainda desempenha um papel relevante no caso de países como o Brasil.

Considerando que o dirigismo constitucional ainda está presente no direito pátrio, pode-se inferir que os direitos fundamentais sociais, os quais se apresentam em sua maioria na qualidade de princípios, constituem fortes diretrizes para elaboração das políticas públicas.

Ademais, conforme já assinalado alhures, estes direitos estão longe de alcançar um patamar aceitável de efetividade no Brasil, sendo, portanto, incabível a nova teoria constitucional desenvolvida por Canotilho, no sentido da desvinculação dos Poderes Públicos das diretrizes constitucionais que impõe a realização dos direitos sociais. Sobre este aspecto, assim se manifestou Lenio Streck:

Sem a garantia da possibilidade do resgate desses direitos, através de mecanismos de justiça constitucional, como proteger o cidadão, o grupo, a

151

STRECK, Lenio Luiz.Jurisdição Constitucional e Hemernêutica. Uma nova crítica do Direito. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004, pp. 131-132.

152Idem, ibidem, pp. 122 e ss. 153

SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. 6. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006, p. 380.

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BERCOVICI, Gilberto. A Problemática da Constituição Dirigente: algumas considerações sobre o caso brasileiro. In: Revista de Informação Legislativa, n. 142, Brasília: Subsecretaria de Edições Técnicas do Senado Federal, abr/jun 1999, pp. 35 e ss.

sociedade, das maiorias eventuais que teimam em descumprir o texto constitucional?

É por isso que a noção de Constituição programático-dirigente compromissária, adaptada ao que denomino de Teoria da Constituição Dirigente Adequada a Países de Modernidade Tardia (TCDAPMT), ainda assume relevância como um contraponto a essa tempestade globalizante/neoliberal. (...) Estou convicto de que ainda é possível sustentar que um texto constitucional que aponta em direção da correção de tais anomalias não pode ficar relegado a um plano secundário, mesmo em face das novas feições que assume a economia mundial em face do fenômeno da globalização155.

Conforme descrito acima, alguns autores nacionais ainda sustentam as idéias iniciais concebidas por Canotilho, pois admitem que a Constituição de 1988, diferentemente da Constituição Portuguesa de 1976, ainda se revela como expressão de um Estado Democrático e Social de direito. Desse modo, reconhecem o caráter vinculante e dirigente das normas constitucionais, inclusive daquelas que tratam dos direitos sociais156

.

Sendo assim, diante da concepção dirigente da Constituição Brasileira, é imperioso concluir que esta pode fixar prioridades a serem implementadas pelo Estado. Nesta direção, bem ressalta Clèmerson Mèrlin Clève:

(...) o Estado é uma realidade instrumental. É uma máquina concebida pelo constituinte para buscar a plena efetividade, a plena concretização dos princípios, dos objetivos e dos direitos fundamentais. É para isto que se presta o Estado, é para isso que o Legislativo legisla, é para isso que o Ministério Público atua, é para isso que o Judiciário judica, é para isso que o Executivo administra. Todos os poderes do Estado, ou melhor, todos os órgãos constitucionais, têm por finalidade buscar a plena satisfação dos direitos fundamentais. Quando o Estado se desvia disso ele está, do ponto de vista político, se deslegitimando, e do ponto de vista jurídico, se desconstitucionalizando (...)157.

Dentre as prioridades consagradas pelo texto constitucional, destacam-se os direitos fundamentais sociais prestacionais (saúde, educação, assistência social e moradia), os quais obrigam o Poder Público a alocar recursos necessários com o fim de atendê-los.

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STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição Constitucional e Hemernêutica. Uma nova crítica do Direito. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004, p. 143.

156

SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. 6. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006, p. 380.

157

CLÈVE, Clèmerson Merlin. O Controle da Constitucionalidade e a Efetividade dos Direitos Fundamentais. In: SAMPAIO, José Adércio Leite (Coord.). Jurisdição Constitucional e Direitos

Segundo Gustavo Zagrebelsky, a imposição das diretrizes previstas no texto constitucional revela uma nova formatação de Estado. De acordo com o autor, o Estado de Direito clássico, que é caracterizado pelo princípio da legalidade, pela separação dos poderes e pela representatividade eleitoral, evoluiu para o Estado Constitucional, o qual se volta para o conteúdo do direito e cujas práticas devem estar pautadas pela concretização dos fins materiais previstos na norma constitucional158

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Conquanto a Constituição possa fixar diretrizes para a formulação das políticas públicas, não tem a força, no entanto, de restringir em termos absolutos a discricionariedade administrativa. Com isso, a Constituição previu os fins a serem alcançados pelo Estado, mas não explicitou quais seriam os meios a serem empregados para atingi-los. Desse modo, o Poder Público tem discricionariedade para escolher os meios adequados. Frise-se, no entanto, que o meio escolhido pelo Poder Público deverá ser apto a atingir o fim descrito na norma constitucional.

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