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1.8 – Núcleo Essencial dos Direitos Fundamentais 1.8.1 – Considerações Preliminares

A garantia do núcleo essencial surgiu na Alemanha como um mecanismo de amparo aos direitos fundamentais, haja vista que a atividade conformadora de tais direitos, executada pelo legislador, era considerada extremamente restritiva, a ponto do direito fundamental regulado se tornar praticamente inócuo96

.

Ademais, não havia, à época, a possibilidade de controle de constitucionalidade dessas leis conformadoras, o que aumentava ainda mais o caráter frágil dos direitos fundamentais.

Sendo assim, a doutrina alemã buscou elementos teóricos no intuito de conferir maior proteção aos direitos fundamentais e, como resultado, construiu a teoria do núcleo essencial, que tinha como base o reconhecimento de um conteúdo mínimo do direito fundamental o qual não estaria sujeito a qualquer restrição97.

Posteriormente, a Lei Fundamental de Bonn, de 1949, acabou por positivar a proteção ao núcleo essencial no art. 19, inc. II: “Em nenhum caso pode ser um direito fundamental atingido em seu conteúdo essencial”98.

Em comentário ao dispositivo acima referido da Constituição germânica, Gilmar Ferreira Mendes sublinha que pode ser configurado como “uma tentativa de fornecer resposta ao poder quase ilimitado do legislador no âmbito dos direitos fundamentais, tal como amplamente reconhecido pela doutrina até o início do século

96

OLSEN, Ana Carolina Lopes. A Eficácia dos Direitos Fundamentais Sociais frente à Reserva do

Possível. Dissertação de Mestrado. Curitiba: Universidade Federal do Paraná, 2006, p. 163.

97

LOPES, Ana Maria D’Ávila. A Garantia do Conteúdo Essencial dos Direitos Fundamentais. In:Revista

de Informação Legislativa, ano 41, n. 164, Brasília: Subsecretaria de Edições Técnicas do Senado

Federal, out-dez 2004, p. 13.

98Apud MARTINS, Leonardo (org.). Cinqüenta Anos de Jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal

passado”99. Complementa, ainda, o autor, que a disposição constitucional “pode ser

considerada uma reação contra os abusos cometidos pelo nacional-socialismo”100.

A proteção do núcleo essencial também foi acolhida expressamente por outros ordenamentos constitucionais, como a Constituição Portuguesa de 1976 (art. 18º, III), a Constituição Espanhola (art. 53.1), a Constituição da África do Sul (art. 30.4), a Constituição da Suíça (art. 36), dentre outras.

No Brasil, a Constituição de 1988 não previu expressamente a garantia de proteção ao núcleo essencial, no entanto, é possível inferir do nosso sistema constitucional a referida garantia, pois, conforme salienta Gilmar Ferreira Mendes, “é fácil ver que a proteção do núcleo essencial dos direitos fundamentais deriva da supremacia da Constituição e do significado dos direitos fundamentais na estrutura constitucional dos países dotados de Constituições rígidas”101.

Noutro passo, é importante esclarecer que não há uma necessária identidade entre o conteúdo do princípio da dignidade da pessoa humana e o núcleo essencial dos direitos fundamentais, uma vez que, dependendo do direito fundamental em causa, o respectivo núcleo essencial pode representar uma proteção maior do que a dignidade da pessoa humana. Como exemplo, basta analisarmos o direito social previsto no art. 7º, inc. XI, da Constituição Federal, que confere aos trabalhadores o direito de participação nos lucros. Com efeito, nesta hipótese, o núcleo essencial desse direito fundamental não guardará identidade com o princípio da dignidade da pessoa humana. Por outro lado, no caso do direito à saúde, podemos constatar que o núcleo essencial se confunde com a necessidade de se garantir uma existência digna aos indivíduos.

Quanto à delimitação do conteúdo essencial dos direitos fundamentais, a doutrina se divide entre as teorias absoluta e relativa, cujos elementos serão analisados nos itens seguintes.

99

MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos Fundamentais e Controle de Constitucionalidade. 3. ed., rev. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 41.

100Idem, ibidem, p. 42. 101

MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos Fundamentais e Controle de Constitucionalidade. 1. ed. São Paulo: Celso Bastos, 1998, p. 35.

1.8.2 - Teoria Absoluta

De acordo com esta teoria, admite-se um núcleo essencial absolutamente intangível, concebido em abstrato e, por isso mesmo, independente das especificidades do caso concreto. Desse modo, o núcleo essencial consistiria em limite absoluto à atividade restritiva do legislador. É o que observa Gilmar Ferreira Mendes:

Os adeptos da chamada teoria absoluta (absolute Theorie) entendem o núcleo essencial dos direitos fundamentais (Wesensgehalt) como unidade substancial autônoma (substantieller Wesenskern) que, independentemente de qualquer situação concreta, estaria a salvo de eventual decisão legislativa. Essa concepção adota uma interpretação material segundo a qual existe um espaço interior livre de qualquer intervenção estatal. Em outras palavras, haveria um espaço que seria suscetível de limitação por parte do legislador; outro seria insuscetível de limitação. Neste caso, além da exigência de justificação, imprescindível em qualquer hipótese, ter-se-ia um “limite do limite” para a própria ação legislativa, consistente na identificação de um espaço insuscetível de regulação102.

Alexy, ao descrever a teoria absoluta, adverte que a mesma concebe a existência de um núcleo intangível do direito fundamental, que seria insuscetível de qualquer atividade restritiva, ainda que esta se revestisse de proporcionalidade103.

José Carlos Vieira de Andrade, por seu turno, mostra-se partidário da teoria absoluta, uma vez que considera inaceitável que a restrição alcance o conteúdo essencial dos direitos fundamentais. Segundo o autor, “há aí uma proibição absoluta, um limite fixo, um mínimo de valor inatacável”104

.

Em síntese, a teoria absoluta reconhece um núcleo essencial do direito fundamental insuscetível de qualquer medida restritiva, independentemente das peculiaridades que o caso concreto possa fornecer. A partir daí, pode-se inferir uma conexão desta teoria com o sistema absoluto de regras (“tudo-ou-nada”), pois não se admite diferença de grau na aferição do núcleo essencial, sendo este preestabelecido.

102

MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos Fundamentais e Controle de Constitucionalidade. 3. ed., rev. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 43.

103

ALEXY, Robert. Teoria de Los Derechos Fundamentales. Traducción de Ernesto Garzón Valdés. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1993, p. 288.

104

ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976. 3. ed. Coimbra: Almedina, 2004, p. 305.

1.8.3 - Teoria Relativa

Conforme a teoria relativa, o conteúdo essencial de um direito fundamental é resultado de uma técnica de ponderação de acordo com os postulados da proporcionalidade. Com isso, o núcleo essencial poderá ser mais ou menos elástico a depender das particularidades do caso concreto, pois deverão ser aquilatados os pesos dos princípios ou bens jurídicos em oposição105.

Juan Carlos Gavara de Cara destaca que, de acordo com a teoria relativa, “o conteúdo essencial não é uma medida preestabelecida e fixa, uma vez que não se trata de um elemento autônomo ou parte dos direitos fundamentais”106

.

Conquanto a teoria admita certa maleabilidade do conteúdo essencial, é importante constatar que o direito fundamental não ficará sem proteção, uma vez que eventual restrição deverá atender aos critérios racionais da proporcionalidade107

.

Assim, os adeptos da teoria relativa se posicionam contra definições abstratas do conteúdo essencial dos direitos fundamentais, pois defendem que as mesmas podem se revelar incompletas e imprecisas diante das peculiaridades do caso concreto.

Neste contexto, revela-se elucidativa a análise de Gilmar Ferreira Mendes:

Os sectários da chamada teoria relativa (relative Theorie) entendem que o núcleo essencial há de ser definido para cada caso, tendo em vista o objetivo perseguido pela norma de caráter restritivo. O núcleo essencial seria aferido mediante a utilização de um processo de ponderação entre meios e fins (Zweck-Mittel-Prüfung), com base no princípio da proporcionalidade. O núcleo essencial seria aquele mínimo insuscetível de restrição ou redução com base nesse processo de ponderação108.

Canotilho, por sua vez, ao afirmar que os direitos fundamentais são sempre direitos prima facie, admite também que, em algumas hipóteses, um direito fundamental possa vir a ser completamente sacrificado tendo em vista o peso do direito fundamental

105

OLSEN, Ana Carolina Lopes. A Eficácia dos Direitos Fundamentais Sociais frente à Reserva do

Possível. Dissertação de Mestrado. Curitiba: Universidade Federal do Paraná, 2006, p. 158.

106

GAVARA DE CARA, Juan Carlos.Derechos Fundamentales y Desarrolo legislativo. Madrid: Centro de Estudos Políticos y Constitucionales, 1994, p. 331, apud MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos

Fundamentais e Controle de Constitucionalidade. 3. ed., rev. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 44.

107

OLSEN, Ana Carolina Lopes.Op. Cit., p. 163.

108

MENDES, Gilmar Ferreira.Direitos Fundamentais e Controle de Constitucionalidade. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2006, pp. 43-44.

colidente. Para esclarecer o posicionamento, o autor lusitano apresenta o exemplo do direito à vida do nascituro, que pode, em alguns casos, vir a ser integralmente imolado, como na hipótese de gravidez decorrente de estupro. Nesta situação - a qual também se verifica na legislação penal brasileira -, foi o próprio legislador quem efetuou a ponderação dos valores em conflito109.

É imperioso ressaltar, portanto, que os direitos fundamentais não se revestem de caráter absoluto, nem mesmo o direito à vida.

Diante da análise das teorias acima descritas, é possível apontar críticas a ambas, conforme será pormenorizado a seguir.

Quanto à teoria absoluta, é importante notar que a identificação em abstrato de um núcleo essencial intangível pode se revelar muito difícil ou até mesmo impossível110. Desse modo, o direito fundamental, o qual se pretendia contemplar uma

proteção especial, pode vir a ficar sem a garantia de um núcleo duro insuscetível de restrição, pois, consoante afirmado, seria extremamente dificultosa essa identificação fora do caso concreto.

Noutro vértice, ressalte-se que a adoção da teoria relativa pode gerar uma insegurança quanto à delimitação do âmbito de proteção especial do direito fundamental, pois, como já visto, a extensão do conteúdo essencial seria maleável ante as peculiaridades da situação posta111.

Apesar das críticas erigidas às duas teorias, é fácil perceber que ambas buscam conferir proteção mais efetiva aos direitos fundamentais, na medida em que visam preservá-los em face de medidas restritivas excessivas112

.

Quanto às teorias acima expostas, defendemos que a teoria relativa é a que melhor se adapta ao sistema constitucional contemporâneo, uma vez que se pode inferir uma relação entre a teoria absoluta e o sistema do “tudo ou nada” (regras) e, de outro lado, uma conexão da teoria relativa com o sistema de regras e princípios. Portanto, considerando que o sistema de regras e princípios é o que melhor se verifica

109

CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 1998, p. 1.140.

110

MARTÍNEZ-PUJALTE, Antonio-Luis. La Garantia del Contenido Essencial de los Derechos

Fundamentales. Madrid: Centro de Estúdios Constitucionales, 1997, p. 30.

111Idem, ibidem, p. 28. 112

MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos Fundamentais e Controle de Constitucionalidade . 3. ed., rev. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 44.

para se aquilatar o alcance dos direitos fundamentais na ordem constitucional brasileira, tem-se, assim, como conseqüência lógica, que a opção pela teoria relativa do conteúdo essencial será a mais adequada.

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DIREITOS

FUNDAMENTAIS

SOCIAIS

DE

CARÁTER

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