• Nenhum resultado encontrado

Em um segundo momento, a disciplina apresenta-se, na obra de Foucault, como uma metodologia individualizante e familiar aos processos de produção de saberes na Modernidade e na Contemporaneidade. O Panóptico de Jeremy Bentham (como apresentado no Primeiro Capítulo desta Dissertação) é investigado como um momento relevante da Idade Moderna, no que tange à modelação do corpo individual enquanto estrutura a ser vigiada e assujeitada. A Psiquiatria, a Medicina, a Psicanálise, novamente, são apresentadas por Foucault como as

detentoras de um saber-poder capaz de disciplinar, encapsular o corpo do indivíduo e readaptá-lo de acordo com as urgências que o campo social reivindica.

Relacionada à sexualidade, a disciplina desenvolve um papel essencial na estabilização relacionada à contingência das práticas sexuais do indivíduo, retrabalhando suas anormalidades. Permitindo, dessa maneira, às Ciências da Saúde ascenderem em suas áreas como as possuidoras de um saber determinante: “A disciplina determina as condições que uma determinada proposição deve cumprir para entrar no campo do verdadeiro: estabelece de quais objetos se deve falar, que instrumentos conceituais ou técnicas há que utilizar.” (CASTRO, 2016, p. 111) e conclui: “E em que horizonte teórico deve inscrever-se” (Idem, 2016, p. 111). Ou seja, sendo capaz de extrair a verdade imbricada no centro biológico e mental referente aos meandros de sua sexualidade incógnita (em relação ao sujeito). A disciplina, para além de uma prática docilizante, detém o formato da estabilização do corpo individual propenso a seguir regras e corporificá-las no espectro social. Correlata ao discurso, a disciplina também é composta por regras que são peculiares ao seu campo de atuação, também exercendo uma exterioridade que lhe permite nortear os discursos a serem objetificados. Deste modo, a atuação da disciplina, no complexo corporal do sujeito, oportuniza sua inserção nos moldes estabelecidos pelas instâncias de poder. Na aula de 28 de novembro de 1973, do curso O Poder Psiquiátrico, Foucault (2006, p. 91) explica:

As disciplinas são técnicas de distribuição dos corpos, dos indivíduos, dos tempos, das forças de trabalho. E são essas disciplinas, precisamente com essas táticas, com o vetor temporal que elas implicam, que irromperam no saber ocidental no correr do século XVIII e que remeteram as velhas taxonomias, modelos de todas as ciências empíricas, para o campo de um saber em desuso e, em todo caso, talvez até inteira ou parcialmente desconsiderado. A tática substitui a taxonomia e, com ela, o problema do corpo, o problema do tempo, etc.

Foucault aborda a disciplina como uma fundamentação, a qual se aplica em correspondência com a gestão dos corpos, transcendendo a função do discurso que ocasiona, de forma unilateral, a separação das Ciências Humanas em tópicos específicos. Distinguindo as figuras epistemológicas que subsidiam a vivência humana. A disciplina, em sua própria formação, isto é, como tática, funciona de forma a estudar e envolver o corpo, bem como seu gerenciamento e a necessidade de inscrições (pois, são estas inscrições que produzem sua individualização). A disciplina poderia ser intitulada como um projeto não-verbal que intervém na

estrutura, a qual o discurso não consegue adentrar. Em outros termos, o corpo, a "chave" para o desenvolvimento do controle e da suplantação no jogo de relações do status quo, são táticas especializadas: “Se se prefere, há, sob o discurso consciente, uma gramática, determinada pelas práticas e gramáticas vizinhas, que a observação atenta do discurso revela, se consentirmos em retirar os amplos drapeados que se chamam ciência, filosofia, etc.” (VEYNE, 2008, p. 252).

Existe, no estudo foucaultiano, uma diferenciação significativa entre o que se poderia nomear de dominação, de domesticação e de docilização no modo como é apresentada a estratégia de domínio do corpo do sujeito. Em uma primeira instância, o indivíduo é dominado pelo sistema de disciplinarização, sendo apreendido por essa estratégia que intenciona readaptá-lo na espacialidade social. Em segundo lugar, realiza-se a domesticação deste sujeito, por meio de seu trabalho e do controle vigente dos aparatos sociais (fábrica, prisão, escola). E, por fim, há a docilização deste mesmo corpo individual. A docilização é apresentada como o resultado deste processo de “cooptação involuntária” do sujeito: “Tática, ordenamento espacial dos homens; taxonomia, espaço disciplinar dos seres naturais; quadro econômico, movimentado regulamento das riquezas” (FOUCAULT, 2013b, p. 143). Foucault estudou esta diferenciação na obra Vigiar e Punir, explicando o ordenamento que classifica as relações que o ser humano desenvolve com sua exterioridade, isto é, com seu trabalho, com sua disciplinarização e com o regulamento de seu tempo e energia física:

Mas as disciplinas se tornaram, no decorrer dos séculos XVII e XVIII, fórmulas gerais de dominação. Diferentes da escravidão, pois não se fundamentam numa relação de apropriação dos corpos; é até a elegância da disciplina dispensar essa relação custosa e violenta obtendo efeitos de utilidade pelo menos igualmente grandes. Diferentes também da domesticidade, que é uma relação de dominação constante, global, maciça, não analítica, ilimitada e estabelecida sob a forma da vontade singular do patrão, seu “capricho”. Diferentes da vassalidade que é uma relação de submissão altamente codificada, mas longínqua e que se realiza menos sobre as operações do corpo que sobre os produtos do trabalho e as marcas rituais da obediência. Diferentes ainda do ascetismo e das “disciplinas” de tipo monástico, que têm por função realizar renúncias mais do que aumentos de utilidade e que, se implicam em obediência a outrem, têm como fim principal um aumento do domínio de cada um sobre seu próprio corpo. (FOUCAULT, 2013b, p. 133)

A sexualidade também não é eximida de ser circundada pela manobra da disciplina. Assim como o crime, a loucura e a doença, ela também acaba por representar uma espécie de codificação que é atravessada pelo poder disciplinar. Por exemplo, o poder pastoral é caracterizado (e considerado) como uma técnica

disciplinar: “É verdade que o pastor dirige todo o rebanho, mas ele só pode dirigir na medida em que não haja uma só ovelha que lhe possa escapar” (FOUCAULT, 2008b, p. 172). Dessa forma, ele também é reconhecido por Foucault na segmentação de um método individualizante. Nesta ocasião, a sexualidade foi assinalada como discurso, como prática e como estratégia. Deste modo, pode-se projetá-la a partir de um domínio discursivo e também de um domínio não-discursivo. Em outros termos, a sexualidade científica, com base nos discursos das Ciências Humanas, da Saúde e da Literatura; e a sexualidade como técnica de rastreamento

do corpo humano, isto é, a subjetividade humana. Reiterando: este mesmo discurso

sobrepõe-se em relação à liberalidade e probidade da sexualidade: “Deveria ser

evidente que, mesmo que houvesse um consenso geral quanto ao estado da sociedade, este apenas provaria que uma ortodoxia foi mantida, e não que o sentido das coisas tenha assumido o estatuto de verdade objetiva” (DREYFUS; RABINOW, 2013, p. 263). Assim, como o exemplo da direção de consciência que, ao mesmo tempo em que aparenta encarcerar o desejo para dizimá-lo, prescritivamente, o recoloca como partícula essencial do discernimento sobre a compreensão do subjetivismo que envolve o reconhecimento do indivíduo por si próprio como um “sujeito de sexualidade”. Entretanto, nem todo o discurso correlacionado à sexualidade versa necessariamente sobre o que é proibitivo: “A disciplina trabalha no complementar da realidade” (FOUCAULT, 2008b, p. 61). Há uma certa liberalidade na probidade. Tal paradoxismo é vital para se entender o porquê da sexualidade residir, modernamente discutindo, entre uma teia valorativa sobre o que é certo e o que é errado. Então, nessa perspectiva teórica, quando se pensa na análise contemporânea da sexualidade, tende-se a refletir acerca da mesma a partir de um escalonamento restritivo.

Partindo-se da Filosofia de Foucault, na maneira como ele analisou a sexualidade na Modernidade, e posteriormente na Contemporaneidade, é válido, então, interpretar a sexualidade como que assentada na soberania da disciplina, não restritivamente em uma abordagem de proibição das práticas sexuais. Como tática, como estratégia, a disciplina permite circunscrever a sexualidade em sua interpelação, relacionada à domesticidade, uma sexualidade civilizada e confinada pelo poder disciplinar e transformador da extensão corpórea individual. A disciplina, porém, não produz restrição moral, pois o comportamento sexual, mesmo sobrepujado pelo regramento moral e político, não tolhe a liberdade do indivíduo.

Esta mesma liberdade a qual é experimentada pelo sujeito, a partir da constituição da identidade sexual constituída pelo mesmo: “A regra disciplinar é, pelo contrário, uma regra natural: a norma” (REVEL, 2011, p. 109). A defesa de Foucault, acerca do que concerne ao comportamento sexual enquanto prática experimentadora é explícita: na entrevista de 1982, Escolha Sexual, Ato Sexual, que consta no volume IX da coleção Ditos e Escritos, ele (FOUCAULT, 2014f, p. 157) expressa:

O comportamento sexual não é, como se supõe muito frequentemente, a superposição, por um lado, de desejos originários de instintos naturais, e, por outro, de leis permissivas e restritivas que ditam o que se deve e não se deve fazer. O comportamento sexual é mais do que isso. Ele é também a consciência do que se faz, da maneira como se vive a experiência, do valor que se lhe atribui.

Interposta entre o discurso e a disciplina, a sexualidade é criptografada no interior de um conjunto de regras, de um jogo de relações que a autenticam nos esquemas: discursivo, linguístico, político e salubre: “A forma da individualidade disciplinar responde, segundo Foucault, a quatro características: celular, orgânica, genética e combinatória” (CASTRO, 2016, p. 112). Para além da opinião restritiva sobre a constituição da sexualidade, ou das práticas sexuais do sujeito, a sexualidade é excedida às regras linguísticas e discursivas que anseiam reconduzi- la como meramente um processo inteligível. Mas também detentor de códigos que discutem sobre o sexo, a biologia reprodutiva, a conduta dos desejos e o que se faz com base nestes. A experiência da sexualidade transpassa as vias condicionais da disciplina, sendo esta representada de forma muito mais permissiva e reativa. Deste modo, o instinto não pode ser facilmente catalogado pelas regras disciplinares, no que tange a reação primitiva e experimental da subjetivação da sexualidade. Que, mesmo com as técnicas disciplinares, ainda enseja o feitio de como o indivíduo conhece a si mesmo, de como este se concebe no formato de um detentor de uma identidade sexual: “O problema se desloca da limitação quantitativa dos atos ao controle, à administração e à observação permanente da própria raiz da atividade

sexual.” (CANDIOTTO, 2015, p. 361)84

. No capítulo II, do segundo tomo de História da Sexualidade, O Uso dos Prazeres (1984), sob o título de “Dietética”, Foucault (2012a, p. 147) expressa-se sobre o ato sexual na qualidade de prática, baseado no

84

César Candiotto escreveu um resumo do segundo curso ministrado nos anos 1980 por Foucault,

Subjetividade e Verdade (1980-1981). Neste, ele, realiza um estudo sobre as concepções mais

importantes abordadas pelo autor no trabalho em questão. Tais como: os aphrodísia, a experiência cristã da carne e o isomorfismo sociossexual. Para mais informações, acessar o artigo A emergência

do homem de desejo: sobre o curso Subjectivité et vérité, de Michel Foucault (CANDIOTTO, 2015, p.

comportamento referente à Grécia Antiga, o qual repercutiu contemporaneamente em seu prenúncio de experiência:

O ato sexual não é considerado como uma prática lícita ou ilícita, segundo os limites temporais no interior dos quais ele se inscreve: ele é encarado como uma atividade que, no ponto de intersecção entre o indivíduo e o mundo, o temperamento e o clima, as qualidades do corpo e as da estação, pode provocar consequências mais ou menos nefastas, e portanto deve obedecer a uma economia mais ou menos restritiva.

Dessa forma, é possível conceber a sexualidade em uma economia que transita nos limites de uma restritividade, assim como de uma não-restritividade. Onde, paralelamente, promulga-se o proibido e o que é permitido. Ou seja, uma estratégia racionalizante que nivela essa polaridade acerca do normal e do anormal.