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Pode-se, nesse momento, recapitular os momentos em que a sexualidade foi transformada em um dispositivo, desde a Antiguidade até o início do Período Contemporâneo. Há a direção de consciência como projeto que antecipa a prática confessional; a articulação da noção da carne com o poder religioso/cristão e a diferenciação com o conceito foucaultiano de corpo (político); assim como o poder medicalizador e a Literatura na concepção do prazer. Sobre a retomada do texto Alcibíades de Platão, é possível estabelecer o seguinte propósito teórico: cuidado de

si/direção de consciência/confissão/poder pastoral/Estado.82

A direção de consciência, para sintetizar, parece ser atualizada em todos os aspectos da História do Mundo Ocidental, sendo manipulada pelas diferentes estruturas de poder (Igreja, Hospital, Estado). E como resultante, a relação entre mestre e discípulo, como prevista na relação entre Sócrates e Alcibíades, é materializada, futuramente, na relação “criança e família”, “indivíduo e Estado”.

82 O cuidado de si é uma prática que será desenvolvida, posteriormente, isto é, no “Capítulo III”

Logo, o “marco civil” é fundado entre a relação de poder que estabiliza um relacionamento entre um mestre e um discípulo, tanto de professor e de aluno, quanto de juiz e de réu. Dessa maneira, o receptáculo de ação e de desenvolvimento de tais relações ocorre nos modelos estruturais que perfazem o poder político que permeia à sociedade. E, obrigatoriamente, sinalizam para si o desígnio do prazer como a “experiência proibida” da vida humana, como um

princípio perigoso na formação de um ethos: “O termo ética refere-se a todo esse

domínio da constituição de si mesmo como sujeito moral” (CASTRO, 2016, p. 156). Este marco civil é elucidado por Foucault (2011c, p. 34) na tese complementar à obra História da Loucura: Gênese e Estrutura da Antropologia de Kant, também de 1961:

O pensamento jurídico, desde o século XVI, estava empenhado principalmente em definir a relação do indivíduo com a forma geral do Estado, ou do indivíduo com a coisa na forma abstrata da propriedade. Eis, porém, que na segunda metade do século XVIII as interrogações se voltam para as relações de pertencimento dos indivíduos entre si na forma concreta e particular do casal, do grupo familiar, da “casa”: de que modo a sociedade civil, que a burguesia pressupõe seu fundamento e sua justificação, pode particularizar-se em unidades restritas, que nada mais emprestam do modelo feudal, mas não devem dissolver-se no momento em que ele desaparecia para sempre?

Em sua relação com o poder, o prazer é convencionado a partir do regramento moral burguês, pelo poder estatal, problematizado como interrogação que compete a tarefa ao domínio médico, psiquiátrico e psicanalítico: “É justamente a vivacidade natural do prazer, com a atração que ele exerce sobre o desejo, que leva a atividade sexual transbordar os limites fixados pela natureza” (FOUCAULT, 2012a, p. 63). Deste modo, o prazer perde seu intuito primeiro de reação experiencial ao processo de análise e de subjetivação do instinto, sendo reformulado como vertente subsequente do dispositivo de sexualidade: “É a sexualidade que dá corpo e vida às regras da aliança, saturando-as de desejo” (FOUCAULT, 2013a, p. 124). Mais uma vez, pode-se afirmar que a sexualidade é estabelecida como um procedimento de inteligibilização do indivíduo, encontrando no sexo seu “tecido de atuação” para o assujeitamento e a individualização do ser humano. O sexo é responsável por conter e resguardar as verdades e os segredos subjetivados, os quais permitem um estudo mais amplo da constituição sexual e emocional do indivíduo. O que destoa abertamente de uma análise exclusivamente repressiva. Assim, então, o indivíduo propaga, dessa forma, sua realidade sexual no espaço

social, por meio da estratégia da sexualidade como dispositivo, na maneira como Foucault (2014d, p. 84) determina no texto O Verdadeiro Sexo:

E depois se pode também admitir que é no sexo que se devem procurar as verdades mais secretas e profundas do indivíduo: que é nele que se pode melhor descobrir quem ele é, e aquilo que o determina: e se, durante séculos, se acreditou que era preciso esconder as coisas do sexo porque eram vergonhosas, sabe-se que é o próprio sexo que esconde as partes mais secretas do indivíduo: a estrutura de suas fantasias, as raízes do seu eu, as formas de sua relação com a realidade. No fundo do sexo, a verdade. O modo como Foucault estuda a problematização da sexualidade, e do prazer, produzindo uma consonância com o poder, a Medicina, a Psiquiatria, a Cristandade e a Literatura, exprime, também, a intencionalidade do desejo sexual como intransigente. Em outros termos, as amarras políticas, sociais, geográficas, médicas, pedagógicas, as quais buscam conceituar a sexualidade a partir de uma problemática da contenção, pois esta contenção é a chave para o controle, a obediência e a exclusão. Acerca do procedimento excludente, no texto Loucura e Sociedade, de 1970, Foucault (2014e, p. 259) assevera: “Para mim, tratava-se, então, não mais de saber o que é afirmado ou valorizado em uma sociedade ou em um sistema de pensamento, mas de estudar o que é rejeitado e excluído.” Paradoxalmente, o processo de exclusão é essencial para o sucesso da atuação das estruturas individualizantes do poder, pelo fato de que: “O funcionamento desses rituais políticos de poder é exatamente o que estabelece as relações desiguais e assimétricas” (DREYFUS; RABINOW, 2013, p. 243). Entretanto, se o prazer é o resultado da experimentação do instinto humano (o qual é primitivo), seu exercício é positivado diretamente em um embate com as estruturas de poder e de epistemologia que intentam encarcerá-lo. Isso, porque, se o prazer é uma das tecnologias que compõem a integralização do que se conhece como sexualidade, certamente ele, o prazer, não deixa de ser atravessado pelos sistemas de poder que dominam as condições biológicas e políticas que envolvem as populações. A iminente subserviência destas às mesmas estruturas: “O poder não é uma mercadoria, uma posição, uma recompensa ou uma trama; é a operação de tecnologias políticas através do corpo social” (DREYFUS, RABINOW, 2013, p. 243).

É importante retomar que não é possível haver controle nem do corpo individual, nem do corpo social, sem a eventual proposta de liberdade como uma tecnologia do poder. A multiplicidade de ambos os corpos (individual e social) é substancial para a atuação das estruturas de poder, e suas subsequentes relações,

permitindo a mobilização dos constituintes do corpus social, assim como da experiência do prazer. Na aula de 5 de abril de 1978, do curso Segurança, Território, População, sobre esta estratégia, Foucault (2008b, p. 476) ilustra: “Vê-se agora uma situação tal que, de um lado, terá de se referir a um domínio de naturalidade que é a economia. Terá de administrar populações. Terá também de organizar um sistema jurídico de respeito às liberdades”. Este gerenciamento é esclarecido por Foucault (2015c, p. 160) na aula de 7 de março de 1973, do terceiro curso ministrado pelo autor no Collège de France, A Sociedade Punitiva:

O medo burguês, social e cotidiano, do modo como funcionava no início do século XIX – período de organização dos sistemas penais -, tinha como base não tanto as classes marginais e perigosas quanto à classe dos trabalhadores como foco permanente e cotidiano de imoralidade. Fosse na forma de relação que o corpo do operário mantinha com a riqueza, fosse na maneira como a força de trabalho era utilizável ao máximo, era sempre o corpo do operário em sua relação com a riqueza, com o lucro e com a lei que constituía o grande jogo em torno do qual se organizou o sistema penal. Daí a necessidade da criação de um aparato que fosse suficientemente refinado e profundo para atingir o próprio foco daquele ilegalismo: o corpo, o desejo, a necessidade do operário.

Em uma menção à sexualidade, esta, foi completamente absorvida pelas estruturas de poder, tendo sua “aura repressiva” consolidada (como demonstrado nos Capítulos I e II), a partir da ascensão econômica e social da burguesia. Curiosamente, entre os métodos de preservação da castidade, da direção de consciência, da reapropriação da carne pelo poder Cristão, foi primeiramente pelo Cristianismo, por meio dos representantes da Igreja, que a sexualidade possuiu seu ápice de investigação, exploração (das nuances do desejo) e desenvolvimento subjetivo. Claramente, para Foucault, a Psicanálise tornou exponencial o estudo da sexualidade que a investigou com base na psique humana e nos complexos obscuros residentes na subjetividade individual. Mas, é importante ressaltar que a repressividade obrigou os sistemas de poder a se depararem com a inevitável investigação individual dos segredos residentes no corpo de desejo humano. Dessa forma, assim como o estudo do poder foucaultiano clarifica uma produtividade, produção esta que prepara o corpo do indivíduo para a individualização e a vivência social e econômica, a sexualidade está para além de seu espectro comumente interpelado como repressivo. A sexualidade é reverenciada por Foucault como uma oportunidade de reapropriação do corpo individual em questão, para além da sistematicidade exacerbadamente produtiva.

A sexualidade, bem como o prazer, é um mecanismo poderoso e incontrolável que permite ao indivíduo conhecer nuances de si mesmo, independentemente do discurso usual das Ciências Humanas, das Ciências da Saúde, da Jurisdição e de qualquer outro sistema de controle. A sexualidade outorga ao corpo individual, conjuntamente com a experiência do prazer, a oportunidade de enfrentamento em oposição à produção econômica, o domínio burguês e policial, da mesma forma que estatal. Na maneira como Foucault (2014e, p. 252) pronunciou no texto Loucura, Literatura, Sociedade, sobre a repressão da sexualidade e a atuação burguesa:

A sexualidade foi reprimida notadamente a partir do século XIX, mais do que o foi em qualquer outro século. Não se deve falar dela e não se deve mais praticá-la senão segundo as modalidades definidas pela sociedade burguesa. Por isso é que ela se tornou um espaço privilegiado para a experiência do sagrado. Ultrapassar os limites da sexualidade acabou equivalendo a experimentar o sagrado.

Por conseguinte, a sexualidade, em seu conhecido molde repressivo, foi concebida, projetada, lançada e popularizada pelo poderio burguês, o qual arquitetou o regramento contemporâneo da sexualidade como “a temática última” da vida civilizada. O questionamento o qual se intensifica é o seguinte: Como se pode combater esta estrutura e exercer uma liberdade genuína, ante toda a mecânica repressiva e tecnológica dominante das instâncias de poder?

A resposta parece, então, estar a descortinar-se a partir do momento em que o indivíduo tem a conscientização de que o seu próprio corpo, este modelado a partir dos sistemas de poder (e das instituições de sequestramento), possui um viés de constituição para além dos conhecidos polos de domínio da sociedade burguesa e estatal: a possibilidade de se autogerar e de providenciar um embate direto, e oportuno, em referência às inexoráveis tecnologias do poder. Promovendo essa luta por meio da mobilização política (assim como social) e do embate de forças correlacionado às superestruturas de poder.

4 O DISCURSO, A DISCIPLINA E A TECNOLOGIA

No capítulo anterior, “O Prazer e o Poder”, foi abordada a necessidade de se fixar o sujeito em sociedade, retendo a sua conduta e o seu pensamento para que, à medida que ele é “recolhido”, cada grupo social busca torná-lo recluso, mantendo-o controlado no espaço social. A justificação seria a necessidade de produção e de reforço da ideia de manutenção da economia social. Assim como a articulação da questão do prazer, coadunada ao exame de consciência e a Literatura, relacionando estas teorias com a noção de poder em Foucault.

A perspectiva que envolve o discurso da sexualidade está localizada no núcleo do poder disciplinar, o qual encontra-se nas tecnologias que são encadeadas no que tange ao reconhecimento das virtualidades do corpo do indivíduo. Essa recognição viabiliza o controle do organismo individual e possibilita uma previsão

das possíveis peculiaridades que podem existir no complexo corpóreo do sujeito. É

pelo ordenamento das virtualidades (doenças, anomalias, comportamentos) que as práticas médicas possibilitam o controle, o domínio e a restrição da sexualidade, a fim de estudá-la e de torná-la um princípio inteligível, assim como determinante da conduta individual e da subjetividade. Pois, patologizando o corpo do sujeito, a partir de sua sexualidade, inaugura-se uma instância que permite compreender e enclausurar o ser humano a partir de cada uma de suas singularidades pertinentes a sua sexualidade: perversões ou promiscuidade, por exemplo. Dessa forma, se poderia associar, com relação a uma “economia da subjetividade do sujeito”: “Uma técnica que é, pois, disciplinar: é centrada no corpo, produz efeitos individualizantes, manipula o corpo como foco de forças que é preciso tornar úteis e dóceis ao mesmo tempo” (FOUCAULT, 2010b, p. 209).

A estrutura do discurso, que permeia a higienização da sexualidade, exerce sobre o indivíduo a ação de descrever e impor limites a sua subjetividade, a partir do que este pode externar no pronunciamento de suas verdades. Tal situação é complexa, e seus desdobramentos não são explícitos, pois ao mesmo tempo, é fundamental para que o sujeito se mobilize no centro da sociedade, ou seja, o exercício de sua liberdade nas relações de poder. Pois, de um outro modo, não seria possível para o indivíduo deslocar-se no espectro social. Mesmo a partir de um enfrentamento genuíno (a concepção de uma identidade autêntica, por exemplo, por

meio de um ativismo político), sem o auxílio que as estruturas de poder possibilitam para o deslocamento e o embate. Estes são exercidos pelo indivíduo no interior do campo sociológico, como forma de resistência às instâncias de poder.

Neste terceiro capítulo, sob o título de “Discurso, Disciplina e Tecnologia”, se estudará o modo como o indivíduo intenta realizar um embate com as instâncias de poder que o restringem. Manifestando o papel que sua liberdade, conciliada à questão do poder, exerce na transformação e na constituição de sua própria identidade. Tendo como base, neste caso, a sua sexualidade e a oportunidade, que

o processo de subjetivação contido nesta, permite ao sujeito alcançar o que se

poderia chamar de verdade, concentrando-se na relação entre a subjetividade e esta mesma verdade. Tendo como alicerce suas práticas sexuais que fundamentam a forma como o ser humano reconhece a si mesmo. Dessa forma, a liberdade, o poder, a subjetividade e a verdade compõe o eixo teórico deste aparato conceitual no qual a sexualidade, como uma tecnologia, corresponde a uma das composições básicas da identidade individual.