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O prazer e o instinto: a medicalização e a psiquiatrização

O prazer, alinhado ao poder, desfragmenta-se no indivíduo como puramente instinto e pulsão sexual, para ser abordado como método de controle e exploração subjetiva dele: “Foucault fala dos modos de subjetivação como modos de objetivação do sujeito, isto é, modos em que o sujeito aparece como objeto de uma determinada relação de conhecimento e de poder” (CASTRO, 2016, p. 408). É no prazer que se encontra a verdadeira faceta oculta do indivíduo: na qual se idealizam suas mais profundas fantasias, taras, perversões sexuais, as quais devem ser imediatamente racionalizadas pelas estruturas de poder. Tais como a Medicina, a

Psiquiatria, a Psicanálise, ou seja, as “instâncias de delimitação”68

(FOUCAULT, 2012b, p. 51). Isso porque, encobrindo o prazer, tem-se a possibilidade de obter o máximo de representação médica e psiquiátrica sobre o indivíduo, “minando” o campo de absorção de sua própria sexualidade e de seu desejo. Novamente, a carne é projetada como o objeto a ser analisado, traçado, patologizado, psiquiatrizado, delineado e exposto à autoridade política, na referência de uma tentativa de controlar um dos aspectos mais básicos e remotos do indivíduo: sua instintividade. Como Foucault (2010a. p. 244) destaca, na aula de 12 de março de 1975, de Os Anormais: “O instinto sexual extravasa, e extravasa naturalmente, de

67 Texto da tradução em espanhol do curso de 1981 Obrar Mal, Decir La verdad: “Lo que invento el cristianismo, ló que introdujo, creo, en la cultura antigua, es el principio de veridiccíon de sí mediante uma hermenéutica del pensamiento.”

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As instâncias de delimitação são abordadas por Foucault na obra A Arqueologia do Saber, de 1969, onde o autor as designa como polarizações obtidas a partir dos processos de subjetivação e da produção de saberes realizados pela Medicina, por exemplo. Dessa maneira, a loucura, a criminalidade, a sexualidade, também podem ser consideradas instâncias de delimitação. A Medicina, tal como Foucault expõe, é uma categoria de instância de delimitação: a demarcação ocorre a partir dos conceitos de doente e do saudável, como exemplificação. Para mais informações, acessar o segundo capítulo de A Arqueologia do Saber intitulado “As Regularidades Discursivas” (2012b. p. 23- 83), precisamente no segundo subcapítulo intitulado “A Formação dos Objetos” (2012b, p. 49-66).

seu fim natural. Em outras palavras, ele é, em relação à cópula, normalmente excessivo e parcialmente marginal.” No capítulo II, da Primeira Parte do livro Doença Mental e Psicologia, denominada “A Doença e a Evolução”, Foucault (2000, p. 28) redigiu:

Ligada às primeiras atividades eróticas, ao refinamento das reações de equilíbrio, e ao reconhecimento de si no espelho, constitui-se uma experiência de “corpo próprio”. A afetividade desenvolve então como tema maior a afirmação ou a reivindicação da integridade corporal; o narcisismo torna-se uma estrutura da sexualidade, e o corpo próprio um objeto sexual privilegiado.

O domínio estratégico das Ciências da Saúde recrudesceu, ainda mais, o sentido de que o prazer não é passível de ser analisado, unilateralmente, como puro desejo, como “manifestação clássica” da carne: “A carne é a própria subjetividade do corpo, a carne cristã é a sexualidade presa no interior dessa subjetividade, dessa sujeição do indivíduo a ele mesmo” (FOUCAULT, 2014d, p. 70). A ressignificação do prazer, em termos médicos e higienistas, colaboram para eleger os meandros que dividem a “boa sexualidade” de uma “má sexualidade”. Não se trata mais, exclusivamente, do controle exercido pelo Cristianismo, isto é, como o princípio soberano do direcionamento de consciência e de credibilidade que emana do processo de confissão. Dessa forma, progride-se de uma precisa higienização virtualizada (em relação ao que não é visivelmente perceptível no ser humano) da sexualidade do indivíduo, do inalcançável corporeamente, para um regime asséptico, de cunho público, populacional, fisicamente acessível às “impurezas” do corpo social (epidemia de doenças, crescimento demográfico disparado). Ou seja, impurezas estas que habitam o cerne do corpo do indivíduo e que, outrora, os médicos e os psiquiatras as entendiam como inacessíveis, pois este abriga, ou

tecnicamente abrigava, os segredos da subjetividade do sujeito69, dessa maneira: “O

saber médico justifica um poder, esse poder põe em ação o saber e todo um dispositivo de leis, de direitos, de regulamentações, de práticas, e institucionaliza o

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Na conferência proferida na Universidade de Tóquio, em 20 de maio de 1978, Sexualidade e Poder (2014d, p. 55-75), Foucault desenvolveu um extenso debate sobre a produção histórica que caracteriza a noção de sexualidade. Constituindo esta “linha do tempo” acerca da estruturação do tema da sexualidade, Foucault intencionava entabular um “marco histórico” que englobasse noções como: o desejo, a monogamia, a direção de consciência e a empreitada do Cristianismo como formador da sexualidade em seu tom propriamente repressivo, objetificador e expondo a carne ao entorno da coibição do instinto e do desejo erótico: “Creio que a técnica de interiorização, a técnica de tomada da consciência, a técnica do despertar de si sobre si mesmo em relação às suas fraquezas, ao seu corpo, à sua sexualidade, à sua carne, foi a contribuição essencial do cristianismo a história da sexualidade”, entendeu ele (FOUCAULT, 2014d, p. 70).

todo como sendo a própria verdade” (VEYNE, 2011, p. 55). O objetivo lógico e racional do poder-saber é a separação valorativa entre “o bem e o mal”, “o doente do sadio”, o “louco do não-louco”. Dito outramente, são as instâncias de delimitação necessárias à sustentação do status quo. A partir desta tese, Foucault (2011a, p. 41) enuncia uma crítica, na aula de 8 de fevereiro de 1984 do curso do Collège de France, A Coragem da Verdade (1983-1984), a qual suscita este delineamento baseado em juízos de valor:

O verdadeiro não pode ser dito numa cidade e numa estrutura política senão a partir da marcação, da manutenção e da institucionalização de uma escansão essencial entre os bons e os maus. É somente na medida em que essa escansão ética essencial entre os bons e os maus toma efetivamente sua forma, seu lugar, define sua manifestação no interior do campo político, que a verdade pode ser dita. E, podendo a verdade ser dita, o bem da cidade (o que é útil e salutar para ela) pode ter seus efeitos.

Ao se tratar da proposição dos juízos de valor facilitados pelos processos de subjetivação das Ciências Humanas, assim como da Saúde, coniventes a ação do poder político excludente, migratório e transformador, é fundamental abordar a interrogação sobre a morte. Entretanto, a pergunta que se instala é a seguinte: por que associar o problema do prazer com o da morte?

A resposta é de que ambos estão, de certa forma, interligados. Muito se associou o contorno primitivo, e também nocivo, do prazer, e a impossibilidade de seu escalonamento e de controle pleno em relação à problemática constante no interior deste tópico. Por um lado, sua virtualidade impede um acesso integral às vertentes que inundam as idealizações médicas e psiquiátricas sobre o assunto. Porque, desse modo, o prazer revela o que há de mais primordial, oculto, indecifrável, inclassificável, e também incompreensível, no comportamento humano.