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O papel do hospital e a política disciplinar do corpo infantil

Foucault (2014a, p. 171) define um marco histórico do hospital como um sistema de cura no texto na conferência de 1974, O Nascimento do Hospital, incluída na compilação Microfísica do Poder, escrevendo: “A consciência de que o hospital pode e deve ser um instrumento destinado a curar aparece claramente em torno de 1780 e é assinalada por uma nova prática: a visita e a observação sistemática e comparada dos hospitais”. Esta “inovação” dialoga sistematicamente com a análise da doença como advento individualizador que, interseccionada à questão da morte, estabelece um novo princípio de estudo e de investigação do corpo biológico do indivíduo. Cada caso transforma-se em um legítimo e particular caso, tornando o sujeito individualizado perante todo um conjunto de doenças possíveis. Este mapeamento foi um dos estudos desenvolvidos por Foucault nas obras Doença Mental e Psicologia e O Nascimento da Clínica: “A estrutura perceptiva e epistemológica que fundamenta a anatomia clínica, e toda a medicina que dela deriva, é a da invisível invisibilidade” (FOUCAULT, 2015a, p. 183). Sendo também discutido em trabalhos posteriores, como os cursos O Poder Psiquiátrico e Os Anormais.

Muito antes da ascensão dos estudos freudianos sobre os problemas que estruturavam a sexualidade humana tais como: seus complexos edipianos, períodos de infantilização sexual, estes demasiadamente analisados pelo autor, a

sexualidade, antecipadamente ao seu formato de dispositivo, constituiu um objeto médico preciso e suscetível de análise psiquiátrica. Posteriormente, psíquica. Metamorfoseando-se de uma simples classe, a qual necessitava de higienização pública, para um verdadeiro composto múltiplo que parecia manifestar uma análise clínica, uma racionalização medicalizadora e hospitalar: “É a introdução dos mecanismos disciplinares no espaço confuso do hospital que vai possibilitar sua medicalização” (FOUCAULT, 2014a, p. 182). Um dos muitos fatores que motivadamente reposicionaram o hospital como “residência terapêutica” foi a sexualidade e suas especificidades. As quais careciam de controle e de rastreamento médico. Os hospitais psiquiátricos, os manicômios, os tratamentos amplificados sobre os masturbadores, as mulheres histéricas, os homossexuais, personificaram o “jogo médico e terapêutico” que ocasionou à sexualidade parte de sua configuração medicamentosa. Na aula de 12 de dezembro de 1973, a qual consta no curso O Poder Psiquiátrico, Foucault (2006, p. 155) notabiliza o poder medicalizador que se alia ao poder vigilante da família:

O controle de postura, dos gestos, da maneira de se comportar, o controle da sexualidade, os instrumentos que impedem a masturbação, etc., tudo isso penetra na família por uma disciplinarização que se desenrola no decorrer do século XIX e que terá por efeito que a sexualidade da criança tornar-se-á finalmente o objeto de saber, no interior da própria família, por essa disciplinarização. E, com isso, a criança vai se tornar o alvo central da intervenção psiquiátrica.

A higiene pública, a classificação da população entre abastados e empobrecidos foram alguns métodos estabelecidos no que tange ao mapeamento do indivíduo, enquanto na esfera de população com a conquista burguesa do poder econômico. A Medicina e a Psiquiatria, a partir dessa transformação, adquiriram, ambas, uma espécie de duplo papel: o de higienizadoras e de terapias intensivas de cura. E o hospital oportunizou o processo de ambientação e de atuação destas nas categorias populacionais e estatais: “Através do exame, a individualidade torna-se um elemento pertinente para o exercício do poder” (FOUCAULT, 2014a, p. 182). A grande inovação do aparato médico e psiquiátrico, Moderna e Contemporaneamente analisando, é a viabilidade de aglutinar a sexualidade com noções como: a loucura e a criminalidade, por exemplo, e o iminente superdesenvolvimento da indústria farmacêutica. Em 23 de janeiro de 1974, na penúltima aula do mês de janeiro, do curso O Poder Psiquiátrico, Foucault (2006, p. 320) reflete sobre estas intersecções:

Existe com certeza um certo número de razões, mais creio que uma das razões é esta: é que se trata não tanto de demonstrar que todo criminoso é um possível louco, mas de demonstrar - o que era muito mais grave, porém muito mais importante para o poder psiquiátrico – que todo o louco é um possível criminoso. E a determinação, a vinculação de uma loucura a um crime e, no limite, da loucura a todo o crime era o meio de fundar o poder psiquiátrico, não em termos de verdade, pois precisamente não é de verdade que se trata, mas em termos de perigo: estamos aqui para proteger a sociedade, já que no âmago de toda a loucura está inscrita a possibilidade de um crime.

Ao vincular o argumento da sexualidade, da loucura, juntamente ao da criminalidade, Foucault desnuda o “medo” do perigo social o qual recobre a sexualidade: “Um mesmo dispositivo que constitui esses objetos, loucura, carne, sexo, ciências físicas, governamentalidade, faz do eu de cada um certo sujeito. A física faz o físico” (VEYNE, 2011, p. 179). Podendo esta (a sexualidade) ser defendida como uma dimensão na qual qualquer um, um médico pode perceber, também, a oportunidade do crime e do indivíduo louco, a sexualidade ademais acaba por ser circunscrita como detentora dos perigos sociais interligados à insalubridade, às manias sexuais (homossexualidade, masturbação, etc.) e a todo o tipo de indiscrição que afete diretamente o espaço social e político. Direcionando à família, assim como à criança, a degenerescência é um princípio o qual provoca receio por permitir pensar a contingência de uma hereditariedade da má conduta sexual e suas progressivas pústulas: “A loucura do desejo, as mortes insensatas, as mais irracionais paixões são sabedoria e razão porque pertencem à esfera da natureza” (FOUCAULT, 2013d, p. 525).

Um indivíduo familiar, o qual, na própria infância, demonstra os desatinos de sua sexualidade prematuramente antecipada (ou em desenvolvimento), permite o inquietante vislumbre de um futuro sujeito que, segundos os especialistas (médicos, psiquiatras, educadores, padres), acessará as alas psiquiátricas dos hospitais, ou mesmo o encarceramento prisional. Dessa forma, a degenerescência é uma nocividade que necessita de um imediato estudo e controle súbito, nos moldes do pensamento sanitarista em meados do século XIX. Concebe-se, então, um dos momentos mais importantes da estruturação do dispositivo de sexualidade: a produção do indivíduo degenerado. Uma forma genuína de estabelecer a separação entre o sucesso e o não-sucesso da higienização incrustada pelo apelo estratégico do dispositivo de domínio sexual/político/moral/biológico/médico: “A medicina das perversões e os programas de eugenia foram, na tecnologia do sexo, as duas

grandes inovações da segunda metade do século XIX” (FOUCAULT, 2013a, p. 129). No quarto capítulo de História da Sexualidade, Vol. I: A Vontade de Saber, consagrado ao “Dispositivo de Sexualidade”, Foucault (2013a, p. 130) escreve sobre a tecnologia que envolve a compreensão da degenerescência:

O conjunto perversão-hereditariedade-degenerescência constitui o núcleo sólido das novas tecnologias do sexo. E não se imagine que se tratava apenas, de uma teoria médica cientificamente insuficiente e abusivamente moralizadora. Sua superfície de dispersão foi ampla e profunda a sua implantação. A psiquiatria, mais a jurisprudência, a medicina legal, as instâncias do controle social, a vigilância das crianças perigosas, ou em perigo, funcionaram durante muito tempo “pela degenerescência”, pelo sistema hereditariedade-perversão. Toda uma prática social, cuja forma ao mesmo tempo exagerada e coerente foi o racismo de Estado, deu a essa tecnologia do sexo um poder temível e longínquos efeitos.

Atribui-se, então, aos pais, aos ascendentes familiares a “responsabilidade

biológica” (FOUCAULT, 2013a, p. 129) pela instabilidade do comportamento sexual infantil que, em um futuro próximo, externará os mais problemáticos desvios de ordem sexual. Cabe à família, então, responsabilizar-se em vigiar, examinar, governar a criança, rigorosamente o seu corpo, para evitar o processo assolador de degeneração sexual. Em um texto denominado A Política da Saúde no Século XVIII, datado de 1976, Foucault (2014a, p. 305) escreve acerca da esfera familiar: “A família não deve ser apenas uma teia de relações que se inscreve em um estatuto social, em um sistema de parentesco, em um mecanismo de transmissão de bens.” E complementa: “Deve-se tornar um meio físico denso, saturado, permanente,

contínuo, que envolva, mantenha e favoreça o corpo da criança” (FOUCAULT,

2014a, p. 305). O núcleo familiar, reiterando, assume a função substancial de aplicação metodológica do dispositivo de sexualidade diretamente no corpo da criança. Pelo fato de que, uma corporeidade sexual descompensada, degenerada, gerará gastos no presente e no futuro e, destrutivamente, defasagem da economia social. Mais uma vez, o que está “em jogo”, é a produtividade do indivíduo, a qual é imprescindível à sustentação da base econômica da sociedade: “Não se trata de obter corpos que façam o que se deseja, mas que funcionem como se quer, com as técnicas, a rapidez e a eficácia que se pretende deles” (CASTRO, 2016, p. 89).

O controle da degenerescência é um processo de higienização da sexualidade ímpar que se inicia nos primórdios da infância, resultando num indivíduo adulto capaz de conter sua impulsividade sexual, suas taras, seus desejos, sem desperdício de sua energia física, indispensável à produção. Da mesma forma que

sua integridade moral e física, tão básicas à organização dos pilares sociais, políticos, econômicos, morais e religiosos: “A constituição do sujeito corresponde à de suas maneiras: ele se comporta e se vê como vassalo fiel, súdito leal, bom cidadão, etc.” (VEYNE, 2011, p. 179). Deste modo, o prazer, destinado a ser refreado (politicamente) pelo poder, isto é, sendo o prazer a reação original do domínio proibitivo do instinto, na qual este é submetido, então, à vontade do outro. É nessa perspectiva que se concretiza o protagonismo da ação do poder sobre o prazer, entre a família e a criança, entre o indivíduo e o Estado, entre o pastor e o seu rebanho. A partir deste arcabouço teórico, Foucault (2014c, p. 209) pronuncia, em Do Governo dos Vivos, na aula de 12 de março de 1980:

O poder político me quer em meu lugar e me imporá a sua vontade, queira eu ou não. A única coisa que posso dizer é que eu quis, se é que houve isso num momento dado, um contrato social durante o qual eu pude dizer: quero que alguém queira em meu lugar. Na direção, não há contrato social, porque não há cessão de uma parte de vontade a outro. Há o seguinte: há alguém que guia a minha vontade, que quer que a minha vontade queira isto ou aquilo. Eu não cedo minha vontade, continuo a querer, continuo a querer até o fim, mas a querer ponto por ponto e a cada instante o que o outro quer que eu queira. As duas vontades permanecem continuamente presentes. Uma não desaparece em benefício da outra. A duas vontades coexistem, mas coexistem tendo um vínculo entre si, em que uma não substitui a outra, em que uma não limita a outra.

A complexidade das relações de poder, uma disputa de forças onde se nivelam duas espécies de vontades e de objetivos entre indivíduos, estabelece a importância do esclarecimento quanto à atuação do poder político na vivência dos seres humanos na sociedade: “Afinal de contas, a essência da nossa vida consiste no funcionamento político da sociedade a qual nos encontramos” (FOUCAULT, 2014h, p. 46). A importância, segundo Foucault, direciona-se na confrontação de ideias e desejos entre duas partes, como por exemplo, a relação entre general e soldado. Sem sombra de dúvida, há a superposição de um poder político exercido por um lado que acaba se justapondo a outro. O que caracteriza esta relação de poder, em específico, é a possibilidade que cada categoria tem de extarnalizar sua vontade sem necessariamente aniquilá-la, adequando-se ao contrato estabelecido no âmbito social o que, em termos filosóficos, pode garantir a estabilidade do espaçamento sociológico.