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A discricionariedade judicial e o “prudente arbítrio” do juiz

No documento OS PODERES DO JUIZ NO NOVO CÓDIGO CIVIL (páginas 117-122)

Do quanto dissemos no capítulo anterior, dúvida não resta em relação à existência da chamada discricionariedade judicial. Esta se manifesta sempre que o juiz, nos casos expressamente autorizados por lei, exerce o poder-dever de escolher, dentre os atos comportados pela regra para a solução de um determinado conflito, aquele que atenda com absoluta perfeição à finalidade almejada pela norma.

Entendida, portanto, a discricionariedade como uma espécie de delegação legal para que o juiz escolha entre duas ou mais soluções a que melhor atenda à finalidade legal, parece inequívoco que, no âmbito da atividade jurisdicional, não tem ele liberdade plena, desvinculada de qualquer parâmetro existente no sistema jurídico.

Liberdade plena, sem restrições ou regras de comportamento, não é discricionariedade, mas arbítrio, o que é absolutamente incompatível com a idéia de Estado de Direito e com o próprio exercício de qualquer função pública, sobretudo de caráter jurisdicional.

Desde logo devemos, pois, distinguir

discricionariedade de arbitrariedade. Enquanto nesta há plena liberdade no agir, sem vínculos ou parâmetros de qualquer ordem, naquela há uma margem de liberdade circunscrita às soluções possíveis comportadas e objetivadas pela lei. Discricionariedade significa poder de escolha pautado pela finalidade desejada pela lei. A arbitrariedade, de outro lado, é poder de escolha segundo a vontade do agente.

Tal distinção não escapou à precisa observação de Hely Lopes Meirelles154, cuja lição, não obstante voltada ao Direito administrativo, merece ser transcrita: “Convém esclarecer que poder

discricionário não se confunde com poder arbitrário. Discricionariedade e

arbítrio são atitudes inteiramente diversas. Discricionariedade é liberdade de ação administrativa, dentro dos limites permitidos em lei; arbítrio é ação contrária ou excedente da lei. Ato discricionário, quando autorizado pelo Direito, é legal e válido; ato arbitrário é sempre ilegítimo e inválido. De há muito já advertia Jèze: ‘Il ne faut pas confondre pouvoir discrétionnaire et pouvoir arbitraire’”.

Por isso é que Luiz Orione Neto155, com a argúcia que lhe é peculiar, afirma não concordar com o emprego da expressão “prudente arbítrio”, pois arbítrio é algo que extrapola os limites do permitido. Portanto, não pode ser prudente algo que não é lícito ao juiz fazer. Mais adiante, citando Carmem Lúcia Antunes Rocha, ressalta: “o arbítrio não tem qualificativo; não se altera em sua essência pelo adjetivo que se acompanhe; não se aprimora nem se humaniza pela aparência enganosa de juridicidade de que em um novo título o envolva”.

De fato, não pode ser prudente o que é arbitrário, como não pode ser arbitrário o que é prudente. Prudência é qualidade de quem age com moderação, comedimento, buscando evitar tudo o que acredita ser fonte de erro ou de dano; é agir com cautela, precaução, cordura e sensatez. Quem age de forma arbitrária não apresenta nenhum desses qualificativos. Age de acordo

154 Direito administrativo brasileiro

, p. 115.

155 Tratado das liminares

com sua exclusiva vontade, sem limites ou preocupações com o erro ou o injusto.

No entanto, freqüentemente se observa, na doutrina e na jurisprudência, e até mesmo na lei (v.g. arts. 363, V, e 915, par. 3º., CPC), a expressão “prudente arbítrio” como sinônima de discricionariedade. Tal sinonímia, contudo, apresenta erro, e leva, muitas vezes, a conclusões equivocadas como a que, por exemplo, sustenta ser irrecorrível a decisão do juiz pautada no seu “prudente arbítrio”156.

O que se diz ser “prudente arbítrio” do juiz constitui, no mais das vezes157, mero exercício de poder discricionário, sujeito a 156

Em acórdão do STF, onde se pretendeu traduzir essa idéia, embora sob o prisma da discricionariedade, chegou-se a sustentar que “O ato de concessão ou não da liminar em mandado de segurança circunscreve-se à discrição do Juiz, não cabendo recurso, quer o despacho seja positivo ou negativo” (STF, rel. Min. Marco Aurélio, j. 26.4.91, DJU 7.6.91). Note-se que o referido acórdão, além de afirmar, ao nosso ver de forma equivocada, que a concessão ou não de liminar é ato discricionário, ainda determina sua irrecorribilidade, como se os atos discricionários fossem infensos ao controle jurisdicional. Ora, a decisão que concede ou não uma liminar em mandado de segurança está sujeita a requisitos legais aos quais o juiz se vincula. Logo, se presentes estão os requisitos da relevância dos fundamentos (pela demonstração da provável existência de direito líquido e certo) e do periculum in mora, o juiz tem o dever de conceder a liminar. Como também, ausentes tais requisitos, o deverde negá-la. Não há, como se vê, escolha entre duas ou mais soluções possíveis, admitidas pelo sistema jurídico, o que seria próprio da discricionariedade. Trata-se de ato vinculado que em nada se altera pela circunstância de o juiz ter, antes, que integrar e interpretar “conceitos jurídicos vagos ou indeterminados” como ocorre em relação às expressões relevância da

fundamentação e periculum in mora (ou, como mais comumente utilizado pela lei, risco de

ineficácia da medida, fundado receio de dano irreparável, justificado receio de ineficácia etc).

157 A expressão “prudente arbítrio” tem sido utilizada inadvertidamente mesmo onde sequer

há poder discricionário, como ocorre, v.g. nos casos de apreciação de liminares pelo juiz. Não é demais repetir: se presentes estão os requisitos previstos em lei para a concessão de uma liminar, o juiz deve necessariamente concedê-la. Não há discrição entre o conceder e o não conceder. Trata-se de ato vinculado a pressupostos específicos cuja presença poderá conduzir a uma única solução. Como bem anota Luiz Orione Neto, “... a dificuldade na concessão de uma liminar e a prudência que deve existir na prática deste ato não transforma a tarefa interpretativa de um conceito vago num poder discricionário, em que várias soluções são válidas. Aqui só vale uma: a melhor. Portanto, o juiz não tem, segundo nosso entendimento, a

limites e ao controle de sua legitimidade, mormente quanto a eventual abuso de poder ou desvio da finalidade objetivada pela lei.

A propósito, como ensina Celso Antonio Bandeira de Mello158, “... não há como conceber nem como apreender racionalmente a noção de discricionariedade sem remissão lógica à existência de limites a ela, que defluem da lei e do sistema legal como um todo – salvante a hipótese de reduzi-la a mero arbítrio, negador de todos os postulados do Estado de Direito e do sistema positivo brasileiro”.

Rigorosamente, parece-nos correto afirmar que inexiste no novo Código Civil, assim como em todo o sistema jurídico, norma aberta que confira poder ao juiz para agir de maneira arbitrária. A função do juiz no novo Código Civil, embora muito mais flexibilizada com a introdução de diversas normas abertas, não se compadece com o arbítrio.

A liberdade que o novo Código Civil confere ao juiz na aplicação de determinadas normas, como ocorre, v.g. em relação aos artigos 21, 29, 252, §§3º. e 4º., 413, 928, par. único, etc, não pode ser confundida com o arbítrio. Decidir segundo juízos de oportunidade, como o permitem as normas de tipo aberto em sentido lato, não significa em absoluto que o juiz está livre para adotar a solução que bem quiser. Sua decisão há de basear-se, necessariamente, em concepções éticas e morais vigentes, as quais

discricionariedade de escolher entre conceder ou não a liminar se verificar que os pressupostos para a sua concessão estão presentes. Não há, nestes casos, aquele tipo de discricionariedade em que é facultado ao aplicador da norma agir ou omitir, tomar ou não tomar uma medida. Em suma, se os pressupostos legais estiverem presentes, o juiz tem a obrigação de conceder a liminar, bem como a obrigação de indeferi-la se os pressupostos estiverem ausentes” (Tratado das liminares, p. 376).

158 Curso de direito administrativo

refletem os valores e princípios albergados pela sociedade na qual o próprio juiz acha-se inserido.

Como anota Karl Engisch159, em relação às normas que delegam ao juiz um poder-dever para agir com discricionariedade, “... não campeiam a desvinculação e o arbítrio, antes se nos deparam aí, a mais dos limites legais e supra legais da decisão pessoal, regras teleológicas e axiológicas, que na verdade não podem determinar exactamente a decisão material, mas em todo caso lhe dão um quadro lógico de suporte”.

A delegação que a lei faz ao juiz para que atue segundo juízos de oportunidade, aí incluídos os casos em que a lei lhe permite criar a norma de decisão por eqüidade, encontra limites no próprio sistema jurídico, o que por si só evidencia a inexistência daquela liberdade característica do arbítrio.

159 Introdução ao pensamento jurídico

10. Critérios e/ou parâmetros para a concreção judicial das normas de tipo

No documento OS PODERES DO JUIZ NO NOVO CÓDIGO CIVIL (páginas 117-122)