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CAPÍTULO 3: DA DEMOCRATIZAÇÃO AO GERENCIALISMO: OU COMO ACHATAR O INTERESSE PÚBLICO EM EFICÁCIA

3.2. O DISCURSO DA GLOBALIZAÇÃO COMO FONTE CONCEITUAL PARA A REFORMA DO ESTADO

Vale, a partir daqui, discutir os sentidos atribuídos à globalização nos enunciados oficiais e o papel que a categoria desempenha na legitimação da Reforma do Estado no governo FHC. À crítica de um Estado estamental, apropriado pela aliança entre empresários e funcionários públicos, será acrescentado, entre as razões para a Reforma do Estado, o fato de que o sistema mundial capitalista entrara em nova fase. A essa nova fase, que teria se iniciado na segunda metade da década de 1950, seria dado o nome de globalização, marcada pela mudança nas relações entre economias de países desenvolvidos e em desenvolvimento.

Até então, a industrialização era associada à obra de governos nacionalistas, que impunham políticas de incentivo à nascente indústria local, buscando alterar estruturas produtivas baseadas na exportação de produtos primários. Economias dependentes das

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compras do exterior tinham dinâmica reflexa, baseada quase exclusivamente nas decisões de fora, de modo que não havia autonomia nacional para tomar decisões que promovessem o desenvolvimento econômico. Daí nasceria a associação entre subdesenvolvimento e dependência externa, presente em argumentações clássicas como a de Furtado (2005)17.

A história econômica brasileira entre 1930 e 1980 pode ser entendida como a busca de um sistema econômico com maior grau de autonomia, no sentido da tentativa de construção de uma dinâmica de acumulação endógena, ainda que relacionada à economia mundial.

Neste caso, se poderia dizer, inclusive, que foi um interregno desenvolvimentista – entre 1930 e 1980 – que despertou as esperanças e criou a expectativa de que já tivessem se fortalecido e autonomizado, durante esse período, “centros internos de poder” dispostos a completar e operar um “sistema econômico articulado e capacitado para autodirigir- se” (Fiori, 2000, 3).

Nesse sentido, a industrialização era experimentada como política voltada a nacionalizar o centro das decisões políticas e econômicas, numa luta que parcela das esquerdas classificava como anti-imperialista, posto que implicava conflitos com capitais estrangeiros contrários à industrialização dos países periféricos.

A partir de 1950, porém, as relações entre centro e periferia se alterariam qualitativamente. Já não seriam os países pobres meras economias baseadas em recursos agrícolas exportados para economias desenvolvidas. Mas passariam a constituir um espaço de valorização do capital industrial estrangeiro. Isto é, os capitais internacionais passaram a migrar para países pobres, onde localizavam seus investimentos. De modo que a industrialização se vinculava à entrada de capitais internacionais, que transferiram tecnologia e recursos para financiamento da produção aos países em desenvolvimento, modificando drasticamente as relações entre centro e periferia do capitalismo. Alterava-se, a rigor, a forma de dependência externa, que passava a ser tecnológica e financeira.

As novas circunstâncias seriam assinaladas pelas diferentes versões da teoria da dependência. Por exemplo, Santos (2000), um dos expoentes da referida corrente, chamava

17 A rigor, na explicação de Furtado, para a análise das sociedades periféricas e do subdesenvolvimento, também seria

preciso levar em conta que a internalização pelas elites de padrões de consumo dos países do centro exigiria a concentração de renda. O padrão de consumo das elites reforça a dependência externa, não consolidando centros internos de decisão e não internalizando o progresso técnico de modo a gerar excedentes e maior homogeneidade social. “Em contraste, o capitalismo periférico engendra o mimetismo cultural e requer permanente concentração da renda a fim de que as minorias possam reproduzir as formas de consumo dos países cêntricos” (Furtado, 1974, 45).

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atenção para o novo contexto da ordem global.

Busquei também mostrar que o avanço do setor industrial demandava a necessidade de estabelecer uma nova política diante do capital internacional. Este vinha substituir o capital nacional no processo de industrialização, trazendo tecnologias, financiamento e padrões de competitividade de economias que já tinham produtos tecnologicamente maduros (Santos, 2000, 92).

Uma versão da teoria foi apresentada por Fernando Henrique Cardoso, em conjunto com Enzo Falleto (Cardoso e Falleto, 1970). Para os autores, as mudanças na forma de dependência manifestavam a possibilidade de desenvolvimento dos países periféricos, ainda que sob uma forma associada ao capital estrangeiro. Os países da periferia não ficariam necessariamente estagnados diante de sua dependência frente ao centro do sistema, posto que este passara a deslocar seus capitais, tecnologia e recursos a outras partes do mundo, descentralizando sua distribuição.

Entre os efeitos dessa internalização, estaria a mudança do perfil das classes médias. Antes limitadas, em alguma medida, à posição de profissionais liberais que vendiam serviços às classes abastadas, as classes médias passam a ocupar postos técnicos assalariados nas grandes empresas, ampliando sua renda e mobilidade social. Logo, a tese era que a estagnação não era um fato inexorável para as economias dependentes, que podiam se desenvolver baseadas nos capitais estrangeiros.

Essa interpretação terá forte viés normativo, pois, contra as forças tradicionais de esquerda, criticava a tese de que a entrada de capitais estrangeiros implicaria uma naturalização da condição de subdesenvolvimento. Ainda que associado ao capital estrangeiro, Cardoso previa a possibilidade de desenvolvimento para os países periféricos, indicando uma via de ampliação da produção e incorporação de tecnologia pela maior integração entre centro e periferia.

A tese da ampliação das relações econômicas internacionais é a base para o olhar que Fernando Henrique Cardoso lançará sobre a globalização na década de 1990. Em sua visão, a globalização veio a indicar um grau inédito de integração capitalista, de escala planetária, tanto na esfera produtiva como na financeira. Como as decisões de governo se circunscrevem ao espaço nacional, o Estado precisa se adaptar às novas condições e reconhecer que perde graus de autonomia para escolhas político-econômicas.

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Assim, o Estado nacional-desenvolvimentista, de caráter protecionista e dirigente da economia, tornava-se disfuncional, pois dependia de espaços nacionais relativamente fechados, fora dos quais suas decisões não teriam eficácia. A reforma do Estado implicava adaptá-lo às novas circunstâncias mundiais, reconhecendo que ele já não podia dirigir a economia, tendo sua tarefa se deslocado para a indução da eficiência na produção por forças privadas num ambiente internacionalizado e competitivo.

Do ponto de vista social, o estímulo à competitividade funcionava como o contraponto ao clientelismo oriundo dos canais pouco plurais de decisão política, monopolizados por burocratas e empresários articulados. Assim, o Estado deslocaria as decisões de investimento e produção ao mercado, regulando-o, sob regras claras e neutras, superando o clientelismo. Devia, ademais, abrir-se à diversidade de sua base social, desenvolvendo instituições em função das quais seria mais poroso, permeável a interesse difusos, não-organizados. Nesse sentido, mercado e democracia caminhariam juntos, realizando um projeto que, em última instância, produziria maior equidade social.

Realizadas essas tarefas, a globalização poderia trazer resultados positivos ao país, em linha com a ideia de desenvolvimento associado ao capital estrangeiro. Indagado por Roberto Pompeu de Toledo se a globalização levaria à exclusão, Fernando Henrique seria taxativo ao dizer que não, indicando a via que seu governo procuraria construir: o desenvolvimento associado ao capitalismo internacional.

- A globalização não reforça a exclusão?

- Não necessariamente. Hoje há uma espécie de refrão: globalização é igual a exclusão. Por quê? Depende do Estado, do governo, da sociedade, da capacidade interna de organizar as variáveis em jogo (Cardoso, 2010, 132).

Essa capacidade de organizar as variáveis do jogo é representada justamente pelo rol de reformas em direção aos requisitos da nova ordem econômica mundial. Ainda que o discurso de Fernando Henrique remeta às escolhas políticas de governos para lidar com a globalização, esta ganha um tom de inexorabilidade. Diante da qual aos governos locais só resta o ajuste às condições mundiais impostas, sob pena de não se apropriar os ganhos sociais e econômicos permitidos pela globalização. Sobre o ponto, novamente vale citar Fernando Henrique, expressamente fatalista em relação ao fenômeno da globalização.

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A esquerda, ou essa parte da esquerda, confunde processo histórico com escolhas políticas. A globalização não é algo para você ser contra ou a favor. Ela existe, simplesmente (Cardoso, 2010, 143).

A globalização não seria uma escolha política, mas um fato, em relação ao qual, por conseguinte, não fazia sentido ser contra ou a favor. Era uma realidade inexorável, com a qual se devia lidar. Era preciso ajustar-se aos novos tempos, que, conforme já visto, exigiam um Estado mais eficiente e enxuto, ciente de seus limites diante de uma ordem global cujas decisões estratégicas escapavam ao espaço nacional.

Para além do caráter irreversível da globalização expresso no pensamento de Fernando Henrique, há de se salientar seu determinismo econômico. A globalização será fundamentalmente uma questão atinente à internacionalização dos capitais, produtivos e financeiros, com efeitos sobre a sociedade. Nesse sentido, equivaleria a uma espécie de marxismo vulgar, cuja fórmula clássica é a vindicação de que a infraestrutura econômica determina a superestrutura (as ideias, a cultura, as relações sociais, a condução do Estado, entre outros). Todavia, um materialismo simplista de sinal contrário, posto que voltado a justificar a absoluta adesão à ordem. Para tanto, mobilizava um argumento de uma determinação econômica irresistível, que exauria as possibilidades, inclusive, da relação entre Estado e sociedade.

De forma que o novo Estado – não-intervencionista - seria uma decorrência das novas relações econômicas, substituindo o modelo centralizador emergente em 1930, em que o poder estatal dirigia a economia e impunha os caminhos para a industrialização. E aqui – vale a ênfase - não estaríamos no campo das escolhas ou das preferências políticas, mas da incorporação de um fato, de um ajuste necessário às novas condições reais de funcionamento dos mercados. Uma vez que, nos termos de Fernando Henrique, a globalização “simplesmente existe”.

No pensamento de Fernando Henrique, as dimensões não-econômicas da internacionalização jamais terão destaque, a exemplo das trocas culturais, das linguagens emergentes, os estilos de vida, os novos circuitos de trocas simbólicas, entre outros. Indicando que tais aspectos não cumprem função relevante para a explicação de novas relações sociais e, especialmente, não são incorporados como elementos determinantes para mudanças institucionais. De modo que haveria uma espécie de prioridade econômica na explicação da

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emergência de novas relações sociais, sob a forma da apreensão de forças internacionalistas cujas leis levariam a uma perda de autonomia por parte dos governos nacionais e à maior competitividade das economias, obrigando o Estado a reformas que aumentassem sua eficiência e reduzissem seu tamanho.

O argumento da globalização como estágio do desenvolvimento do capitalismo procura legitimar as escolhas de política sob a forma de ajuste a novas condições de um capitalismo global. O sentido predominante das reformas seria abrir o Estado à integração com o mundo, sob a perspectiva estritamente econômica, induzindo, pela concorrência, à modernização das estruturas econômicas.

Essa tese é complementada pelo anterior, vinculado à interpretação da formação brasileira. Se, no caso da globalização, o projeto político seria sintetizado pela fórmula da integração do país às condições internacionais, para a tese do poder estatal como árbitro das classes, as reformas indicariam o caminho da integração interna, retratada como abertura do Estado à pluralidade de interesses. Com ênfase para aqueles desorganizados, excluídos historicamente dos anéis que ligavam burocracias a segmentos da economia.

Somados os argumentos externo e interno, criava-se uma narrativa oficial pela qual a intervenção do Estado entre 1930 e 1980 havia forjado uma economia protegida da competição internacional e dominada por interesses organizados de grupos específicos que definiram os rumos de uma industrialização induzida pelo Estado, demiurgo da modernização. A mensagem contida no discurso oficial, a partir da década de 1990, era que o Estado passaria a servir à sociedade civil, invertendo a balança de poder em favor de suas frações mais desorganizadas. Conforme já exposto, mercado e democracia formariam um par que condensaria parte substantiva da reforma.

Mas é importante lembrar o conteúdo economicista do argumento, que lia a sociedade civil predominantemente a partir de relações de consumo e de acesso a bens e serviços. Nesse sentido, a defesa da sociedade civil resolvia-se no estímulo à competitividade e abertura da economia ao resto do mundo. O que implicaria fim da proteção a setores industriais nacionais e, portanto, à quebra da relação de clientela entre burocratas e segmentos do mercado. Em acréscimo, os consumidores passariam a consumir bens e mercadorias até então inacessíveis em função dos monopólios públicos e da ineficiência dos setores protegidos.

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De modo que o projeto se realizaria, fundamentalmente, pela diminuição do tamanho do Estado, pela sua retirada de uma série de domínios, especialmente da produção de bens e serviços, pela contenção do gasto público e pelo aumento na eficiência pública da provisão de bens e serviços. Muitos dos quais passariam a ser responsabilidade de setores privados e não- estatais, como se verá adiante.

Todas essas medidas estavam vinculadas ao imaginário de uma modernização pensada como abertura do país a relações de competitividade e às condições capitalistas internacionais. O que é central para o nosso argumento, por conseguinte, é a emergência de índices de valor que preenchiam o conteúdo dos universais vazios, típicos da experiência brasileira, sob a forma de relação entre modernização e o desenvolvimento. O ponto aqui é sobre quais e como novas representações ganham o status de oficiais; e, ao fazê-lo, monopolizam e apropriam o interesse coletivo, dando-lhe significados específicos inscritos em formas institucionais.

Reconstruir esse movimento é decisivo para compreender as novas formas assumidas pelo discurso do planejamento, quando este já não tem a âncora da industrialização como síntese do interesse nacional. Nesse quadro, quais valores ele realiza, que linguagens procura institucionalizar no interior da administração, como lida com outras racionalidades, já que, conforme visto, caracteriza-se por existir sempre em relação ao outro, representado pelo vasto campo das políticas públicas.

Tal como no capítulo anterior, a proposta é que seja possível articular as tendências macrossociais da esfera do poder ao microcosmo do planejamento, tomando-o como uma formação discursiva relativamente independente, mas cujos elementos – objetos, horizonte teórico, estilo, distribuição de posições entre as vozes que falam, entre outros – só são compreensíveis nas relações que estabelecem para fora de suas fronteiras. A questão, portanto, é como se internalizam nas práticas burocráticas os índices de valor associados aos projetos de reforma das instituições brasileiras.

Enfim, convém avançar no argumento, em direção ao exame de como se alteram práticas institucionais na medida em que elas são legitimadas por uma nova gramática oficial, que associa desenvolvimento, Estado enxuto e em busca de eficiência e abertura de mercados. Estes são os novos sentidos atribuídos ao interesse geral, eficazes apenas na medida em que inscrevem na ordem institucional e estatal um padrão valorativo segundo o qual o Estado

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intervencionista privatiza o interesse comum, seja porque põe em funcionamento relações de clientela baseadas na desigualdade de acesso aos círculos políticos de decisão, seja porque expõe um desajuste frente aos requisitos (inexoráveis) da globalização.

O passo seguinte é examinar os termos concretos da Reforma de Estado durante o governo Fernando Henrique. Especificamente, será salientada a parte da proposta que lida com a modernização do aparelho de Estado. É preciso fazê-lo, procurando articular as novas maneiras de organizar a máquina pública e os índices de valor postos em movimento pelo discurso oficial de Estado. Para tanto, serão utilizados, especialmente, documentos oficiais do Ministério da Administração Federal e da Reforma do Estado – MARE, órgão do governo federal responsável pela condução da reforma da administração.

3.3. A REFORMA DO APARELHO DO ESTADO: PONDO EM PRÁTICA AS