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CAPÍTULO 2: O DESENVOLVIMENTO DA ESFERA DISCURSIVA DO PLANEJAMENTO

2.1. MODERNIDADE E ESTADO NO BRASIL

O conceito de modernidade guarda relação com a emergência de instituições – mercado, Estado e esfera pública – que carregam consigo novos requisitos psicossociais e hierarquias de valor. Maneiras inéditas de classificação ancoradas numa racionalidade que supõe um novo sujeito. Entre os índices de modernidade, vale citar o respeito universal às normas, as regras do Estado centralizado, a gramática de direitos dos cidadãos, a maior importância da associação impessoal, como aquela entre agentes de mercado, em detrimento dos círculos primários de socialização e dos critérios pessoais de julgamento.

Tais práticas se materializam, por exemplo, no Estado racional-legal, dando origem a uma dominação baseada em regras, e não no poder pessoal. O conceito de cidadania, por exemplo, pressupõe, em alguma medida, um horizonte de igualdade de direitos. Mas a ordem competitiva também envolve hierarquias valorativas, inscritas em suas instituições basilares. Com destaque para o princípio do desempenho, para as disciplinas modernas que geram sujeitos produtivos no âmbito do mercado e regulam seus comportamentos. As hierarquias da

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vida moderna, embora opacas, selecionam os sujeitos, classificam-nos, produzem segmentações. Entre o produtivo e o não-produtivo, o que detém o conhecimento e o que não detém, o que está apto a ocupar uma posição e o que não está.

O conhecimento talvez seja o caso mais ilustrativo. A ocupação de posições no mercado de trabalho passa a depender da qualidade atribuída ao indivíduo, justificando o índice de acesso desigual a oportunidades. Por outro lado, o próprio Estado fixa critérios universais para reconhecimento dos sujeitos portadores de conhecimentos. A titulação chancelada pelo Estado é o dispositivo por meio do qual é reconhecida oficialmente determinada qualidade, como um pré-requisito para a ocupação de uma posição específica.

Ainda sobre o exemplo, na medida em que avançam os códigos impessoais, o decisivo não será mais (ou, ao menos, apenas) pertencer a uma rede de relações pessoais que assegure o trabalho. Também não é ter o prestígio baseado na experiência, mas portar um conhecimento baseado em formação que distingue um indivíduo do outro. Em outros termos, é preciso apreender a transição à modernidade não apenas em relação aos grandes eventos políticos ou econômicos, mas em termos de novos hábitos, culturas ou índices de prestígio, transitando para a esfera da impessoalidade.

Para dar concretude ao exemplo, em Sobrados e Mucambos, Gilberto Freyre relata tal transformação já no século XIX no Brasil, quando os filhos dos senhores de terra, diplomados no exterior ou nas nascentes faculdades de direito em Olinda e em São Paulo, passam a ocupar postos na burocracia e na igreja, tradicionalmente dispensados a seus próprios pais ou avós. O que Freyre está assinalando é o trânsito de critérios estritamente personalistas para a valorização do conhecimento como elemento-chave do acesso diferencial a oportunidades.

Com a ascensão social e política desses homens de vinte e trinta anos foi diminuindo o respeito pela velhice, que até aos princípios do século XIX fora um culto quase religioso, os avós de barba branca considerados os “numes da casa” ... Era o declínio do patriarcalismo. O desprestígio dos avós terríveis, suavizados agora em avós. O desprestígio dos “senhores pais” que começavam a ser simplesmente “pais” e até “papais”. Era o menino começando a se libertar da tirania do homem. O aluno começando a se libertar da tirania do mestre. O filho revoltando-se contra o pai. O neto contra o avô. Os moços assumindo lugares que se julgavam só dos velhos. Era o começo daquilo a que Joaquim Nabuco chamou de

neocracia: “a abdicação dos pais nos filhos, da idade madura na

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quando parece caracterizar, com seus excessos, toda transcrição do patriarcalismo para o individualismo (Freyre, 200-201, 2006).

Vale o registro de que estamos lidando com o pressuposto de que os dilemas da formação brasileira devem ser interpretados, sobretudo, sob a ideia de que o poder personalista se converte processualmente em novos critérios de dominação impessoais, cujas práticas são ancoradas institucionalmente. Não se trata, portanto, da defesa de que os problemas nacionais advêm de uma não-modernidade, de uma insistência em relações pré-modernas, que travam o caminho da modernidade.

Para essa tese, frequente entre os intérpretes do Brasil, é como se o país se transformasse, num processo de emergência e desenvolvimento das instituições modernas, mas os sujeitos seguissem operando com práticas personalistas (Souza, 2006b). O que tem como pressuposto uma teoria social que dissocia estrutura (ou instituições) e indivíduo.

Sob outra perspectiva, é evidente que o acesso diferencial a relações sociais pode explicar determinados fenômenos, mas os dilemas brasileiros se originam do próprio tipo de trânsito à modernidade. Esta se associa a novos padrões de dominação, que se realizam no funcionamento cotidiano das instituições, sobretudo Estado, mercado e esfera pública.

Nesse sentido, tais dilemas são experimentados como um espaço de possibilidades para projetos em torno das transformações das instituições centrais da modernidade. Portanto, a questão a explicar é, admitindo que não há qualquer determinismo em torno da objetivação de padrões institucionais, como estes se constituem na construção de nossa modernidade. Especialmente, como a realidade das instituições hierarquiza os sujeitos e grupos diante dos requisitos que impõem. É sob esse aspecto que abordaremos o Estado que nasce em 1930, condutor do salto modernizador do Brasil, uma vez que tende a transformar em hegemônicos os interesses da indústria nacional, revolucionando a base econômica brasileira, mas também os códigos socioculturais e institucionais que organizam a vida nacional.

Assim, o Estado de 1930 é o condutor de um processo de transformação econômica11, mas também de crescente diferenciação e complexificação no tecido social brasileiro, em função

11 Transformação que envolvia a redução dos graus de dependência da dinâmica econômica nacional em relação à

demanda internacional por produtos primários, conforme assinala Tavares: “O que nos interessa assinalar, porém, é o fato de que essa reduzida atividadeindustrial, juntamente com o setor agrícola de subsistência, eram insuficientes para dar à

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da substituição da agricultura de exportação como atividade principal do Brasil. O aparelho estatal, na sua condição de condutor do desenvolvimento, internalizará em suas estruturas os instrumentos para reconhecer o estatuto e as aspirações de segmentos sociais e econômicos para além das elites agrárias, como os industriais, mas também setores assalariados médios emergentes e até das classes populares urbanas, num contexto de agitação política crescente.

O Estado não apenas organizará as relações entre as classes e suas frações, como as próprias hierarquias entre elas. Desse modo, o projeto modernizante envolve a diversificação da produção e da representação política no âmbito do Estado, mas jamais hegemoniza os setores populares. Suas demandas serão conduzidas para o interior do Estado, mas sua atividade sindical será controlada. No campo, a reforma agrária não será realizada e tampouco se estenderão aos trabalhadores da terra os novos direitos trabalhistas. Enfim, embora a burguesia industrial não faça sozinha a Revolução burguesa no Brasil, o caráter pluriclassista do projeto de modernização, puxado pelo Estado, logo se reverterá em hegemonia dos industriais, cujos interesses serão generalizados e convertidos em nacionais.

Assim, ainda que mantenha relações antigas como o monopólio da terra, o projeto modernizador da década de 1930 abre para o Brasil um período de mudanças, colocando em outro patamar as transformações políticas, econômicas e socioculturais iniciadas em 1808, com a chegada da Côrte. O projeto de 1930 solapava as bases restritas dos interesses agrário- exportadores como limites à organização política, social e econômica, fundando outra relação entre Estado e sociedade civil, de modo a acolher – hierarquicamente, vale repetir – as aspirações de setores emergentes (desde que ligados às razões de Estado) e seus códigos socioculturais. Nesse sentido, não se pode explicar a modernização brasileira por aquilo que ela mantém como pré-moderno, como uma espécie de essência que bloqueia o caminho a uma verdadeira revolução burguesa, estabelecendo a livre iniciativa e a universalidade da lei. É fundamental, para os nossos propósitos, levar em conta que o processo modernizador brasileiro induz a transformações no âmbito do Estado, fazendo-o acolher novas demandas e requisitos para o seu funcionamento, relacionados à sua condução do próprio processo de transformação das bases políticas, sociais e econômicas e mediação dos interesses e relações

atividade interna um dinamismo próprio. Assim, o crescimento econômico ficava basicamente atrelado ao comportamento da demanda externa por produtos primários, dando o caráter eminentemente dependente e reflexo de nossas economias” (Tavares, 2010, 42).

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entre classes e frações de classe. É nesse contexto que o planejamento emergirá no interior do Estado, conforme se verá a seguir.

Antes de passar adiante, vale fazer uma consideração. Em termos teóricos, a opção deste trabalho, conforme exposto anteriormente, é pela crítica às explicações sobre a formação brasileira baseadas num padrão dual (moderno x pré-moderno), como se a modernidade brasileira fosse às avessas, baseada na permanência de elementos arcaicos como a herança cultural oriunda do tipo de colonização ibérica. Todavia, é decisivo indagar pela eficácia social da tese da não-modernização, em função dos projetos políticos que informou. Não nos interessará a discussão minuciosa acerca dos escritos dos teóricos da formação brasileira, mas como teses a seu respeito são constitutivas do próprio imaginário brasileiro e, portanto, dos projetos políticos que informam perspectivas de mudanças sociais, buscando reformar o Estado, transformá-lo, dar maior dinâmica à sociedade civil, mais competitividade ao mercado e assim por diante. Este será um ponto decisivo, especialmente para o terceiro capítulo.