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É de conhecimento geral que o espaço escolar ocupa papel importante na formação dos sujeitos. As crianças, adolescentes e jovens passam a construir as suas identidades através da convivência e troca de experiências com os outros. Discutir sobre gênero em um ambiente em que muitos deles estão propícios a sofrer violências de gênero se torna imprescindível, pois, além de acolher os oprimidos, pode propor reflexões e mudanças de atitudes e pensamentos dos opressores, já que a construção da identidade nunca é um processo pronto e fechado.

Para Louro (1997), a escola se fundamenta na diferença e sua hierarquização entre os indivíduos, pois em uma ação distintiva “ela se incumbiu de separar os sujeitos — tornando aqueles que nela entravam distintos dos outros. Ela dividiu também, internamente, os que lá estavam, através de múltiplos mecanismos de classificação, ordenamento, hierarquização”. (LOURO, 1997, p. 57). Esses mecanismos de distinções são instituídos até hoje, por exemplo, através das composições de filas de meninos e filas de meninas, brincadeiras de meninos diferentes das brincadeiras de meninas etc. Essas separações que ordenam os sujeitos escolares dificultam a socialização que é fundamental para a construção das identidades. Também, favorecem o discurso que reproduz as desigualdades.

A literatura infanto-juvenil, enquanto gênero que está associado à sala de aula, é normalmente vista sob duas perspectivas: como teor didático ou mecanismo para a discussão de temas sociais, mediante a compreensão também da linguagem. Colomer (2017) se refere à função da literatura para crianças e jovens através dos seguintes objetivos: 1- Iniciar o acesso ao imaginário compartilhado por uma determinada sociedade; 2- Desenvolver o domínio da linguagem através das formas do texto e do discurso literário; e 3- Oferecer uma representação articulada do mundo que contribui como veículo de socialização entre sujeitos. Desse modo, objetivamos dar ênfase a esta representação como instrumento que promove a socialização entre os sujeitos.

Primordialmente, a literatura deve ser concebida pela escola como um meio de desenvolver as capacidades de criatividade e imaginação dos alunos e das alunas na interação com textos, considerando o conhecimento de mundo que já possuem. Este trajeto diz respeito, fundamentalmente, à orientação que se faz da seleção de obras literárias que levem em conta leituras prévias e o conhecimento de mundo, bem como as expectativas do público-leitor. Quando o ensino de literatura não segue esse curso, os desafios do professor e professora aparecem. As abordagens, por vezes vazias e inadequadas do texto literário, contribuem para que o aluno desenvolva uma compreensão limitada do fenômeno literário, bloqueando a ampliação de seus horizontes em atividades que, muitas vezes, se limitam apenas ao caráter formal da obra. Nota-se, neste contexto, o tratamento que a escola parece dar ao texto literário: aborda-o como objeto de análises superficiais e isoladas, como uma expressão artística que denota significação própria e não carece da atualização do aluno-leitor para interpretação. Nesse sentido,

Se as práticas escolares direcionadas à literatura acompanhassem as teorias literárias contemporâneas, não estaríamos analisando a obra literária nas escolas, segundo abordagens formalistas, estruturalistas, biográficas, entre outras. Se a teoria da literatura tivesse uma maior penetração em sala de aula, a voz do aluno, no ato da recepção textual, não seria recalcada pelos roteiros de interpretação, pelas fichas de leituras, pelos exercícios propostos pelos livros didáticos e pela leitura já instituída pelo professor (MARTINS, 2006, p. 84).

Por isso, a importância do estudo e da aplicação crítica de teorias literárias. O docente, então, tem o desafio de se atualizar sobre o que dizem essas teorias, visto que elas podem influenciar positivamente no contexto de sala de aula. É necessário, e de responsabilidade do docente, que ele confronte o aluno e a aluna com a diversidade de leituras do texto literário. Sobre isso, Beach & Marshall (apud MARTINS, 2006, p. 85) afirmam que o desafio do professor é ajudar os alunos a elaborar e rever interpretações iniciais, colaborando com a construção/reconstrução dessas interpretações e não apresentando leituras prontas. Para tanto, deve-se considerar, no ensino de literatura, a interação entre professor, aluno e texto literário. Essa interação deve promover discussões acerca das leituras apresentadas, abordando temas que permeiam a sociedade em que os alunos e alunas estão inseridos e que constituem a criação do texto.

A escola deve dar espaço à leitura do texto literário e à reflexão acerca das diferenças que permeiam a nossa sociedade almejando a compreensão da diversidade, para que a violência não pertença a este espaço de formação. Lins (2016) reitera que a escola não está isenta das violências de gênero e

Isso não se dá somente porque situações de violência também fazem parte do cotidiano de alunos e alunas, educadores e educadoras, mas porque a escola é o espaço que concebemos para estimular a reflexão, o aprendizado e o desenvolvimento de comportamentos mais compatíveis com a diversidade e a democracia. (LINS, 2016, p. 63).

Em concomitância com o exposto, Colomer (2017) assevera que a literatura infanto-juvenil amplia as possibilidades e “permite estabelecer uma visão distinta sobre o mundo, pôr-se no lugar do outro e ser capaz de adotar uma visão contrária, distanciar- se das palavras usuais ou da realidade em que alguém está imerso e vê-lo como se o contemplasse pela primeira vez.” (COLOMER, 2017, P.21). Para estimular a reflexão entre os alunos e alunas sobre a constituição de uma sociedade de diversidades, a leitura literária pode e deve ter espaço na sala de aula para contribuir e permitir reflexões sobre

a desigualdade humana, sobretudo no que diz respeito ao gênero, contribuindo para a formação crítica da identidade do sujeito leitor. Segundo Santos (2009)

Isso remete a pensar sobre a potencialidade da obra de arte como forma de reflexão sobre o ser humano e sua circunstância, auxiliando-o a ter mais segurança diante de suas próprias vivências. Para Lima (1969, p. 35) a obra literária “expressa uma visão articulada do tempo”, visão que oportuniza ao leitor “entendimento crítico da realidade. E quando dizemos crítico, pensamos em um ato que não se encerra em compreender, mas em atuar a partir dessa compreensão”. (SANTOS, 2009, p.157).

Assim, no que compete às discussões sobre gênero, o texto literário pode proporcionar ao leitor e leitora o entendimento e autoconhecimento que são importantes para que se constituam como agentes solidários em uma sociedade. Ainda, para Santos (2009), a potencialidade que a literatura possui é inerente, visto que a obra “permite ao leitor um trajeto de entendimento que, possivelmente, não alcançaria se fosse privado desse processo.”. (SANTOS, 2009).

Dessa forma, oferecer possibilidades de leituras para os alunos e alunas, através da criação artística que o texto literário possui, fomenta a compreensão dos traços que estão em constante transformação, como, por exemplo, a nova mulher do século XXI, que, em grande parte, é um ser ativo, trabalha, e que desfruta de sua vida e sexualidade, questionando regras sociais impostas, para tentar viver a “liberdade de ser e de agir” (SILVA, 2009. p. 211). Louro (1997) afirma que

É preciso notar que essa invisibilidade, produzida a partir de múltiplos discursos que caracterizaram a esfera do privado, o mundo doméstico, como o "verdadeiro" universo da mulher, já vinha sendo gradativamente rompida, por algumas mulheres. Sem dúvida, desde há muito tempo, as mulheres das classes trabalhadoras e camponesas exerciam atividades fora do lar, nas fábricas, nas oficinas e nas lavouras. Gradativamente, essas e outras mulheres passaram a ocupar também escritórios, lojas, escolas e hospitais. Suas atividades, no entanto, eram quase sempre (como são ainda hoje, em boa parte) rigidamente controladas e dirigidas por homens e geralmente representadas como secundárias, "de apoio", de assessoria ou auxílio, muitas vezes ligadas à assistência, ao cuidado ou à educação. As características dessas ocupações, bem como a ocultação do rotineiro trabalho doméstico, passavam agora a ser observadas. (LOURO, 1997, p. 17).

Não obstante, o contexto masculino também adquire um papel diferente daquele desenhado pela sociedade. Cada vez mais os homens passam a desempenhar, também, a função que era destinada apenas às mulheres. Atualmente, é comum vermos homens que se dedicam ao lar e ao cuidado das crianças. Trata-se, portanto, de uma nova relação entre homens e mulheres, resultante de um longo processo de mudanças

por que passa a nossa sociedade, o que leva à redefinição das atribuições para o masculino e para o feminino. Segundo Rocha-Coutinho (1994),

Desde sempre, em sua socialização a criança é colocada a desenhar atividades estereotipadas, forjando, paulatinamente, diferenças psicológicas e acentuando a assimetria entre os sexos. Assim, ao contrário dos homens, “as meninas eram encorajadas a serem dóceis, boazinhas, úteis, prestativas, cooperativas, cordiais, tolerantes, compreensivas, a não incomodarem as pessoas e a não dizer não”. Nessa dimensão, o sujeito feminino constitui-se sem discurso próprio, amorfo, repetindo estereótipos, construindo-se a identidade da mulher a partir da divisão entre público e privado, panorama em que se desenha, diversamente, o comportamento adequado ao homem e à mulher, cabendo a esta, aprender, muito cedo, a lição da desvalorização, que visa a sua sujeição à ideologia hegemônica. (ROCHA-COUTINHO, 1994, p.59).

Nesse fragmento, o autor mostra como o sujeito, por meio da socialização, é direcionado a compreender que há atividades distintas para o gênero feminino e masculino. Essa constatação possibilita a observação sobre o que se ensina à criança, alertando para a influência de um discurso patriarcal que pode moldar o seu pensamento. É por isso que se deve pensar na leitura de textos literários voltados para esse público como ferramenta para provocar reflexões críticas, na ótica de desenvolver um pensamento autônomo que compreenda o mundo em sua complexidade. Essa mudança de valores que ultrapassa uma cultura conservadora altera o modo como a literatura infanto-juvenil se comporta. Colomer (2017) pontua que

A mudança de valores supôs também ir além do considerado habitualmente “para crianças”, incorporando temas não tratados até então na literatura infantil e juvenil. Considerou-se que meninos e meninas deviam ser educados na complexidade da vida e já não se postulou a existência de um caminho pré-fixado de normas para resolver problemas claramente graduados desde a infância até a adolescência. (COLOMER, 2017, p.192 e 193)

Nesse sentido, considerando o ambiente escolar como um dos locais sociais em que a criança ou adolescente está boa parte do seu tempo, os discursos que circulam nessa instituição são formadores. Dessa maneira, o professor, a professora, como agentes mediadores, devem proporcionar a leitura de livros que permitem essas reflexões de valores. Sobre isso, Jover-Faleiros (2013) afirma que

O leitor está, pois, diante da obra, que é o mundo em escala reduzida em sua complexidade, mas ela (a obra), diferentemente dele (o mundo), guarda certa estabilidade – podemos afirmar que o ato da leitura implica relativa atualização do texto em seu contexto de recepção- e estabelece com ela uma relação que é em certa medida solitária, individual [...], mas em permanente diálogo porque a linguagem é uma dimensão coletiva, social e histórica (porque mundo). Parece-me claro que ensinar a ler literatura pressupõe uma visão, uma figuração dos leitores que se pretende formar. (JOVER- FALEIROS, 2013, p.115).

Trabalhar com a leitura da obra literária permite a recorrente atualização do texto, visto que o leitor, a partir de sua leitura, se adequa ao cenário de recepção e faz constante relação com o seu conhecimento de mundo. Portanto, o educador, a educadora, por meio da seleção de leituras com objetivos previamente determinados, podem fazer com que o leitor-criança/adolescente perceba o que é pertinente no texto. As leituras devem possibilitar a este leitor um contato autônomo com o texto para que consiga relacionar o que foi lido/interpretado com o seu contexto social e conhecimento de mundo, concordando ou não com as ideias veiculadas na obra.

Dessa forma, a utilização do texto literário pode contribuir para que a escola seja um local de inclusão, propondo o contato com as diversidades e o contexto social em que os alunos e as alunas estão inseridos. Lins (2016) pontua que todos e todas podem ser agentes participantes deste projeto de inclusão na escola, contribuindo para que as discussões sobre as diversidades sejam realizadas em um ambiente acolhedor aos oprimidos e oprimidas e de reflexão sobre a constituição das identidades de gênero que fazem parte da sociedade.

A leitura de textos literários em sala de aula permite que, através da discussão e da compreensão sobre diversidades, o aluno e a aluna possam se identificar com o conteúdo trabalhado. Assim, a escolha de livros deve considerar o texto literário que precisa dar indícios de correspondência do conteúdo com o meio em que o discente está inserido. Por este motivo, validando as reflexões discutidas até aqui, o livro “Bisa Bia,

Bisa Bel” (1981), de Ana Maria Machado, pode corresponder às premissas discutidas

sobre o trabalho com o texto literário na sala de aula.

Essa obra constitui o corpus utilizado para a construção e elaboração do produto deste trabalho dissertativo, pois desenvolve um enredo pertinente para promover discussões capazes de propiciar uma formação humanizadora pela literatura infanto- juvenil, com foco no gênero como sistema estruturante da desigualdade entre homens e mulheres.

A autora veicula em sua obra ideias feministas, pois a tríade de personagens é composta por mulheres, duas delas, Isabel e Neta Beta, emancipadas e com discursos autônomos, confrontando àquela, Beatriz, que é marcada pela cultura patriarcal.

No tópico seguinte, com o fim de promovermos, por meio da obra, uma educação literária pautada na interação criativa do leitor com o texto, formando leitores e cidadãos nesse processo, apresentamos alguns aspectos da teoria da recepção e do letramento literário.

2.4 – A RECEPÇÃO DO LEITOR E A FORMAÇÃO PELO LETRAMENTO