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3.4 A acessibilidade digital e as lutas em busca da inclusão social

3.4.1 Dispositivos móveis, redes sociais e a constituição de comunidades digitais

O desenvolvimento e a expansão das tecnologias da informação e comunicação, em particular as conexões da internet, têm causado um grande impacto na forma como as pessoas estabelecem suas relações sociais e interagem umas com as outras. A difusão de dispositivos móveis e as diversas possibilidades de seus usos tornaram as redes sociais um fenômeno cada vez mais estudado em diversas áreas de conhecimento.

A noção de dispositivos móveis é aqui referida na perspectiva adotada pela Unesco como aqueles que incluem qualquer tecnologia portátil e conectada, como telefones celulares básicos, leitores eletrônicos, smartphones e tablets, além de tecnologias incorporadas como leitores de smartcard. (UNESCO, 2014a, p. 17). Segundo pesquisa realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2016, quase a totalidade (94,6%) dos 116,1 milhões de brasileiros que acessaram a internet utilizavam o celular como equipamento, conforme ilustrado na figura 4.

17 As hashtags são utilizadas para categorizar os conteúdos publicados nas redes sociais. Explicação completa. disponivel em: https://www.significados.com.br/hashtag/.

Figura 4 - Dados sobre consumo de internet no Brasil em 2016

Fonte: IBGE

#Pracegover –Imagem apresentando dados da utilização de internet no Brasil, sendo: 64,7% das pessoas de 10 anos ou mais de idade utilizam a internet; 63,8% dos homens e 65,5% das mulheres. Cerca de 85% dos jovens de 18 a 24 anos de idade e 25% das pessoas de 60 anos ou mais de idade utilizaram a internet. Cerca de 75% das pessoas de 10ª anos ou mais de idade que não acessaram a internet, não o fizeram por não saberem usá-la ou por falta de interesse. Equipamento utilizada para acessar a internet: 94,6% telefone celular; 63,7% microcomputador e 16,4% tablete. Finalidade do acesso à internet: 94,2% para trocar mensagens de texto, voz ou imagens por aplicativos diferentes de e-mail; 73,3% para conversar por chamadas de voz ou vídeo; 76,4% para assistir vídeos, programas, series e filmes e 69,3% para enviar ou receber e-mails. Fim da descrição.

No que tange às pessoas cegas, a interação com os dispositivos móveis possui alguns obstáculos visto que ainda necessita de grande apelo visual. Para que elas possam interagir adequadamente com esses dispositivos, há uma série de ferramentas de acessibilidade disponíveis nos sistemas operacionais destes aparelhos, tais como leitor de tela, lente de aumento e controle de contraste. O leitor de tela apresenta em voz as informações do sistema que estão em foco; já a lente de aumento é indicada para aquelas pessoas que possuem baixa visão, pois a função é ampliar os elementos gráficos da tela e o alto contraste inverte as suas cores. (SILVA; DAMACENO; BRAGA, 2015)

Os principais sistemas operacionais presentes nos smartphones já incorporaram acessibilidade nativa aos seus dispositivos. Sem eles seria quase impossível o acesso das PDV, pois praticamente todos os aparelhos fabricados recentemente utilizam tecnologia touch

screen19, nas quais o acesso à tela é realizado sem a utilização de um botão físico. O Android, sistema operacional móvel do Google, utiliza uma função chamada TalkBack, que funciona como um leitor do que está abaixo do dedo do usuário. Ao tocar na tela, o TalkBack descreve o que acabou de ser tocado e o usuário então dá um toque duplo para confirmar o comando. No sistema operacional iOS, presente nos dispositivos da Apple Inc, o recurso funciona de forma parecida e tem o nome de VoiceOver.

Sobretudo para as pessoas cegas, as pessoas surdas e com mobilidade reduzida nas mãos, as aplications Programings interfaces (API), tornam os ambientes da internet mais amigáveis, removendo possíveis barreiras de usabilidade, navegabilidade e interação. (SOUSA e SIQUEIRA, 2017). As API, conforme descrição do site de tecnologia Tecmundo20, é considerada a “matrix” dos aplicativos, ou seja, uma interface que roda por trás de tudo. Enquanto utilizamos determinados aplicativos ou sites, a API pode estar conectada a diversos outros sistemas e aplicativos, interligando as informações. Um exemplo é a utilização de comandos de voz para acesso a informações no computador.

Não foram encontradas pesquisas específicas que apresentassem dados sobre a utilização de dispositivos móveis, em especial smartphones, por pessoas com deficiência visual. No entanto, considerando as informações sobre o número de pessoas cegas divulgadas pelo IBGE no Censo de 2010, os dados sobre utilização da internet na pesquisa de 2016, o crescente número de aplicativos voltados a esse público e minha própria experiência empírica para realização dessa dissertação na qual convivi com grupos de pessoas com deficiência visual, infiro que dentre os 64% das pessoas com mais de 10 anos que utilizam internet no Brasil, estão incluídas muitas com deficiência visual. Em uma rápida pesquisa na rede social Facebook, é possível encontrar diversas páginas e grupos de discussão formados por esse público, o que demonstra que eles, assim com os videntes, acessam conteúdos virtualmente.

Sousa e Siqueira (2017) argumentam que as plataformas de redes sociais, como Youtube, aplicativos de rádio e TV pela web, Twitter, Facebook e grupos de WhatsApp, têm se tornado lugares privilegiados para interação das pessoas com deficiência. O movimento social desse grupo de pessoas saiu do ativismo clássico, organizado, com uma pauta comum de reivindicações unificadas, para mergulhar no território difuso das redes sociais, ali onde já não

19 O termo refere-se geralmente ao toque no visor do dispositivo com o dedo ou a mão, que também podem reconhecer objetos, como uma caneta. Disponível em https://www.tecmundo.com.br/multitouch/177-o-que-e- touch-screen-.htm. Acesso em 09/03/19.

se tem necessariamente um palco presencial, mas um “palco simbólico”. (VISER, 2007, citado por SOUSA e SIQUEIRA, 2017).

Apesar disso, a professora Joana Belarmino de Sousa, que também é cega, diz que não se pode afirmar que a militância e o ativismo social estejam na linha de frente dos interesses desses coletivos pelo uso das redes sociais. Pesquisas anteriores demonstraram que muitos se conectam para a conversação informal, a busca por informações, motivados pelo convívio social, o “estar junto” ainda que virtualmente ou mesmo para a divulgação de produtos de interesse comercial. (SOUSA e SIQUEIRA, 2017, p. 120). Considerando que um dos pilares das redes sociais é conectar pessoas que têm interesses em comum, os grupos formados no aplicativo WhatsApp têm ganhado cada vez mais protagonismo no Brasil.

O WhatsApp, lançado em 2009, é um aplicativo multiplataforma de mensagens instantâneas e chamadas de voz para smartphones. Além de mensagens de texto, os usuários também podem enviar imagens, vídeos e documentos em PDF, bem como fazer ligações grátis por meio de uma conexão com a internet21. O aplicativo pode ser baixado gratuitamente em smartphones ou mesmo pelo site da empresa, bastando apenas possuir conexão com a Internet.

Para interagir com outros usuários, é necessário ter contatos telefônicos na agenda do celular e que também possuam o aplicativo. É possível o cadastro de um perfil de usuário com informações da conta, definições das formas de conversas, formas de notificação, lista de contatos. Os últimos números concretos divulgados pela empresa que administra o WhatsApp apontaram que em 2018 havia 1,5 bilhão de usuários ativos por mês no mundo. No Brasil esse número era de 120 milhões.22 O aplicativo permite a criação de grupos com até 256 integrantes, podendo dar origem a redes e comunidades digitais reunidas em torno dos mais variados assuntos.

As redes sociais podem ser pensadas, a partir das contribuições de Recuero (2006), como um conjunto de atores e suas relações. Para a pesquisadora, a análise de redes sociais busca a compreensão das estruturas sociais através dos padrões de conexão entre os indivíduos, surgidos principalmente em meio aos estudos sociológicos, anteriormente à “ciência das redes” (p. 36). A partir do entendimento que as relações entre esses sujeitos são provenientes de

21 Disponível em https://pt.wikipedia.org/wiki/WhatsApp. Acesso em 09/03/19.

22Informações divulgadas pelo jornal Folha de São Paulo. Disponível em https://www1.folha.uol.com.br/tec/2018/07/facebook-chega-a-127-milhoes-de-usuarios-mensais-no-brasil.shtml Acesso em 09/03/19.

processos de comunicação, torna-se fundamental estudar como tais trocas proporcionam o surgimento de grupos sociais.

Conforme argumenta a autora, existem diversos conceitos e estudos acerca do termo “comunidade”, sendo sempre associado a um grupo de pessoas. A mais famosa definição está nos trabalhos de Ferdinand Tönnies (1947 e 1995). Para Tönnies (1947), a “comunidade” representava o passado, a aldeia, a família, o calor, formado por um grupo de pessoas “idealizado”, com motivação afetiva e relações locais, íntimas. Um conceito que amplifica relações sociais como constituintes de laços fortes e de proximidade, baseadas na localização geográfica e na vida cotidiana, com valores partilhados. Já a “sociedade” seria o oposto, caracterizada pela frieza e o egoísmo, pelo distanciamento e pela técnica (RECUERO, 2006, p. 104).

A noção de comunidade constituída em torno de uma localidade geográfica das relações sociais sofre uma transformação após o surgimento da internet, embora ela não tenha sido a primeira responsável por esta modificação. Conforme lembra Recuero (2006) as cartas, o telefone e outros meios de comunicação mediada, embora fossem direcionados para indivíduos, iniciam as primeiras trocas comunicacionais, independentes da presença, sendo possível também a interação em grupo. Com a internet ampliou-se a mudança no sentido de lugar. Castells (2003, p. 106, citado por RECUERO, 2006) explica que o desaparecimento do “lugar” geográfico como forma de sociabilidade não é um elemento recente, mas que nada tem a ver com o advento exclusivo da internet.

Muitos pesquisadores compreendem que as interações através do computador estão possibilitando o surgimento de grupos sociais na internet, com características comunitárias. Recuero (2006) cita Rheingold (1995, p. 20), como um dos primeiros autores a efetivamente utilizar o conceito “comunidade virtual”, definindo-a como:

[...] agregados sociais que surgem da Rede [Internet], quando uma quantidade suficiente de gente leva adiante essas discussões públicas durante um tempo suficiente, com suficientes sentimentos humanos, para formar redes de relações pessoais no ciberespaço.

De acordo com essa definição, os elementos formadores da comunidade virtual seriam: as discussões públicas; as pessoas que se encontram e reencontram, ou que ainda, mantêm contato através da internet; o tempo; e o sentimento. Esses elementos combinados no ciberespaço poderiam ser formadores de redes de relações sociais, constituindo-se em

comunidades (RECUERO, 2006, p. 122). Reflito que elas que podem favorecer, também, o exercício da cidadania.

No entanto, conforme nos alerta Peruzzo (2018, p. 78), a internet e as redes sociais também se mostram como ambientes propícios para atitudes discriminatórias, insultos e circulação de informações falsas, atualmente tratadas como fake News. Nesse sentido, podemos dizer que não há uma distinção clara entre os acontecimentos nos ambientes virtual e físico, visto que para as pessoas conectadas ambos estariam interligados e passam a fazer parte da mesma dinâmica.

Nessa conjectura, entendo que alguns grupos formados por pessoas cegas nas redes sociais podem ser considerados uma comunidade digital. Eles estão reunidos com o objetivo de compartilhar interesses em comum, experiências pessoais ou debater pautas pontuais. Muitas dessas comunidades ampliaram sobremaneira o rol das suas demandas, colocando no centro desses interesses, o direito à comunicação acessível, assim como acessibilidade aos bens e serviços públicos e privados, além do pleno acesso a todos os bens e legados da sociedade informacional. (SOUSA e SIQUEIRA, 2017). Dentre esses grupos que considero como uma comunidade está o Interação com AD, objeto de referência deste trabalho e que será detalhado no subcapítulo seguinte.

Apesar dos inegáveis benefícios e facilidades proporcionados pelas redes sociais, concordo com Peruzzo (2018) quando atenta para o fato de que, junto com a liberdade de expressão, nesses canais também estão implicadas manipulações e liberdades vigiadas, tanto do ponto de vista político e ideológico quanto pessoal. Para a autora:

As configurações causadas pelo acelerado desenvolvimento tecnológico, que tanto impactam a vida nas sociedades, são mais bem compreendidas se tomadas no contexto dos mecanismos do capitalismo internacional, que de livre iniciativa se avoluma, de fato, em oligopólios, controladores dos fluxos de serviços, mercadorias e dados dos usuários das plataformas digitais (2018, p. 82)

Dessa forma, o poder e o controle do capital financeiro internacional no ciberespaço geram contradições. Por um lado, temos as privatizações e a monopolização de startups criadas inicialmente com o propósito de livre acesso. Alguns exemplos trazidos por Peruzzo (2018, p. 82) são a compra do Youtube e Waze pelo Google e do WhatsApp e Instagram pelo Facebook. Por outro lado, ao dominar os mercados, essas empresas prejudicam a concorrência e invadem a privacidade dos usuários, inclusive comercializando seus dados, como no caso do escândalo

envolvendo a empresa Facebook e a Cambridge Analytica no qual os dados de usuários norte- americanos foram utilizados a serviço da campanha presidencial do candidato Donald Trump23.

É preciso reconhecer que existem vantagens e desvantagens no processo de comunicação envolvendo as redes sociais, compreendendo que as tecnologias não são neutras, conforme nos lembra Martín-Barbero (2006). Ao mesmo tempo em que elas favorecem a troca de informação, o acesso ao conhecimento e a formação de comunidades e redes, também existe o controle e a manipulação de informações com diversos fins. Nesse ponto é pertinente a discussão de Celso Furtado (2002), apresentada na pesquisa de doutorado de Brignol (2010, p. 87):

Os objetivos que motivam o progresso tecnológico são com frequência contraditórios. Uns orientam-se para a destruição, outras para a preservação. Os avanços da técnica estão a serviço de uns e de outros. É engano imaginar que as técnicas são neutras, pois elas refletem as forças culturalmente dominantes (FURTADO, 2002, p. 38)

Nesta pesquisa, partimos do entendimento de que a tecnologia e todas as facilidades proporcionadas por ela precisam ser avaliadas dentro do contexto social, político e econômico em que está inserida, contemplando também os sujeitos que fazem parte desse processo.