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4.2 Perspectivas para pensar as inter-relações dos sujeitos comunicantes cegos com as

4.2.1 Pensando a recepção e as mediações

As mediações, aqui consideradas principalmente, sob a perspectiva de Jesús Martín- Barbero, são determinantes para a compreensão dos processos comunicativos investigados neste trabalho. O conceito começou a ser utilizado a partir da década de 80, momento em que começam a surgir críticas em relação aos conceitos hegemônicos envolvendo os estudos da comunicação e da recepção.

Ainda em meados da década de 70, conforme explica Mattelart (1999), os debates relacionados às lógicas das indústrias culturais geraram disputas ideológicas entre pesquisadores, com destaque para as fortes críticas dos franceses em relação às teorias envolvendo a natureza da mercadoria cultural. Para eles, a indústria cultural não se configurava como uma única lógica, já que pode ser considerada amorfa e composta por elementos diversos que se diferenciam um dos outros. (BONITO, 2015, p. 99).

Com o lançamento do livro De los medios a las mediaciones, em 1987, Martín-Barbero colabora com a quebra de paradigmas clássicos de pesquisas no campo da comunicação. Até aquele momento, as vertentes científicas hegemônicas, praticadas na América Latina, estavam fortemente ligadas às tradições funcionalistas estadunidenses ou aos paradigmas da Escola de Frankfurt.

Para abordar as lógicas (no plural) dos usos devemos começar diferenciando nossa proposta daquela análise denominada "dos usos e gratificações", já que estamos tratando de retirar o estudo da recepção do espaço limitado por uma comunicação pensada em termos de mensagens que circulam, de efeitos e reações, para re-situar sua problemática no campo da cultura: dos conflitos articulados pela cultura, das mestiçagens que a tecem e dos anacronismos que a sustentam, e por fim, do modo com que a hegemonia trabalha e as resistências que ela mobiliza, do resgate, portanto, dos modos de apropriação e réplica das classes subalternas. (MARTIN-BARBERO, 1997, p. 300).

A proposta do autor é pertinente a esta pesquisa, pois parte do pressuposto de que os processos de comunicação sejam pensados a partir das mediações e não apenas dos meios. Deste modo, os “receptores” passam a ser vistos enquanto sujeitos produtores de sentidos.

Nesse sentido, o significado mais corrente de mediação está vinculado à ideia da intermediação, mas, também pode ser pensada como dimensões estruturantes dos processos comunicacionais e da produção de sentidos que aí se dá. Em sua pesquisa, primordialmente voltada à investigação na televisão, Martín-Barbero explica que as mediações podem ser entendidas como o lugar através do qual é possível perceber e compreender a interação entre os espaços da produção e da recepção, considerando os produtos midiáticos não só como fruto de estratégias comerciais e industriais, mas também como resultado de exigências culturais.

As teorias desenvolvidas na América Latina durante esse período abriram espaço para reavaliar o conceito de recepção e considerar as apropriações dos sujeitos no processo comunicativo. Para Jacks e Schmitz (2018, p. 117), trabalhar com a proposta de mediações culturais da comunicação “iluminou zonas opacas do processo de comunicação e abriu uma perspectiva de estudos das audiências que privilegiou o mundo da vida cotidiana e deu evidência empírica à atividade do receptor”. Sob esse aspecto, as mediações passam a ser vistas como um processo que ocorre entre a produção e a recepção, num espaço ocupado pelas dinâmicas culturais e interferem na maneira como os receptores se apropriam dos conteúdos ofertados.

Essa visão vai ao encontro do que diz Lopes (1996), ao afirmar que as pesquisas no campo da recepção “exigem pensar tanto o espaço da produção, como o tempo de consumo, ambos articulados pela cotidianidade do sujeito (usos/consumo/práticas) e pela especificidade dos dispositivos tecnológicos e discursivos da comunicação de massa” (1996, p. 43). A partir dessa nova configuração de análise metodológica, os estudos envolvendo a recepção não devem ser entendidos como uma proposta isolada que separe receptores, produtores e produtos comunicacionais. Deve-se considerar a complexidade e o contexto do processo comunicacional.

É instigante perceber que a relação midiática envolvida neste processo está estreitamente relacionada com as culturas e com os universos socioeconômicos em que ela está inserida. Dentro desse entendimento, os sujeitos comunicantes são considerados tão importantes quanto os sistemas comunicacionais. Com os processos de digitalização os sujeitos que se inter-relacionam com os meios massivos “quebraram a sua condição de leitores, telespectadores e radiouvintes, optando por um agir comunicacional multidimensional, em especial na rede digital mundial e nas redes sociais de vida contemporânea”. (MALDONADO, 2009, p.06)

O modelo proposto por Martín-Barbero procura incluir as formas e instituições ligadas à comunicação em cada formação, as lógicas que regem os modos de mediação, além dos usos sociais dos produtos midiáticos. É importante considerar que esse conceito não nasce fechado, principalmente no que tange aos estudos no cenário digital. Ele pressupõe uma comunicação em processo, compreendida desde a cultura, o que significa deixar de pensá-la desde as disciplinas e desde os meios, rompendo com a redução da problemática da comunicação às tecnologias. (MARTÍN-BARBERO, 1997).

Apesar de o termo mediações ter sido amplamente discutido por Martín-Barbero, o autor afirma que nunca pretendeu definir o conceito:

Mediações remete, então, mais ao traço que conecta em rede os pontos e linhas dispersos, distintos e distantes que tecem um mapa que a uma realidade que se constata ou a um conceito que se têm e se manipula. Daí, minha tenaz resistência a definir mediações, e minha aposta por ir desdobrando-as e delimitando-as à medida que os processos de comunicação, as práticas culturais e os movimentos sociais iam se tornando aproximando, por meio da densa relação do mundo da produção midiática nas indústrias culturais com os mundos do consumo massivo, sim, mas diferenciado, ativo e cidadão. (2010a: 29, citado por LOPES, 2018, p. 49).

O autor propõe que a leitura das mediações seja feita através dos sucessivos mapas das mediações, apresentados nas introduções das diferentes reedições de De los medios a las mediaciones (1987a, 1998, 2010a, 2017). Para esta pesquisa, não iremos aprofundar a discussão acerca da cartografia Barberiana por entender que, embora seja um debate epistemologicamente rico e interessante, é demasiado extenso, exigindo um aprofundamento que foge do foco de nosso estudo. Para isso, existem outras pesquisas que se debruçam cuidadosamente sobre essa temática26.

26 Ver Lopes M. I, disponível em http://dx.doi.org/10.11606/issn.1982-8160.v12i1p39-63 e Jacks; Schmitz, disponível em http://dx.doi.org/10.11606/issn.1982-8160.v12i1p115-130

Para esta pesquisa, interessa pensar particularmente a mediação das competências culturais e midiáticas dos sujeitos cegos. Essas competências podem ser adquiridas por meio de diferentes processos de experiência que levam em conta o contato com os contextos vividos, com outras pessoas com a mesma particularidade, informações e memórias auditivas e sensoriais, além do acesso a conteúdos acessíveis, tais como audiodescrição e braile.

Trazendo essas reflexões para o contexto da pesquisa, ao falar em mediações para os sujeitos cegos, é importante levar em consideração que esse processo envolve diferentes aspectos visando, primeiramente, sua interação com o mundo vidente e com as pessoas que fazem parte dele. O desenvolvimento apurado de outros sentidos, tais como o tato, a fala e a audição são aspectos vinculados às competências dos sujeitos e que estão diretamente relacionados com a forma de receber e perceber as mensagens.

Hall (2003), assim como Martín-Barbero, ao se debruçar sobre os estudos envolvendo a recepção, propôs a desconstrução de modelos lineares e tradicionais de comunicação que identificavam o circuito Emissor – Mensagem – Receptor em uma perfeita transmissão de sentido. Concordo com o autor quando afirma que produzir uma mensagem não é uma atividade tão transparente como parece e que os modelos tradicionais ignoravam a complexa estrutura dessas relações. A teoria da recepção discutida por Hall (2003) possibilita a negociação e oposição a um texto, seja ele escrito, oral ou visual, por parte do receptor/audiência tornando a recepção um processo ativo em torno da significação. Nesse sentido, os significados estão relacionados com o contexto cultural de cada sujeito, bem como a interpretação dos signos.

O modelo de codificação e decodificação discutido por Hall (2003), defende que o processo de produção e recepção não é necessariamente simétrico. Nesse sentido, o significado de um texto localiza-se em um lugar entre a codificação/produção e a decodificação/recepção e, mesmo que o produtor emita a sua mensagem de determinada forma, o receptor pode recebê- la de outra.

Nesta pesquisa buscaremos identificar configurações e lógicas do grupo analisado para, assim, direcionar um olhar mais aprofundado para as relações desses sujeitos com os processos comunicacionais e as marcas de mediações que aí se revelam, levando em consideração o seu contexto sociocultural.

Ao investigarmos o contexto das pessoas com deficiência visual, levamos em consideração a análise do cenário empírico que, no caso desta pesquisa, envolve a tecnologia, as redes sociais e o ambiente presencial. Considero que as interações realizadas entre os indivíduos nesses ambientes são atravessadas pelas significações geradas por cada um, de

maneira singular, e que estão relacionadas com a forma como eles se apropriam dos conteúdos. Dentro deste contexto, essas pessoas são consideradas sujeitos comunicantes, que desenvolvem um importante e complexo papel no processo de comunicação, sobretudo em suas relações e vínculos com os sistemas midiáticos.

Parto do entendimento de que nas pesquisas envolvendo processos de recepção midiática, a ideia de trabalhar os sujeitos comunicantes possibilita a problematização das relações entre meios e audiência, abarcando um contexto mais amplo no que tange ao circuito de produção, circulação e consumo. Nesse sentido, a mensagem é compreendida como uma forma cultural que possibilita diferentes decodificações e os “receptores” como sujeitos produtores de sentidos.

Nesse cenário, torna-se fundamental analisar que, para o desenvolvimento da pesquisa são necessários procedimentos que “considerem as particularidades dos contextos, das culturas, das linguagens e das modalidades comunicativas dos sujeitos cuja recepção/produção midiática queremos entender”. (BONIN, 2014, p. 47). Da mesma forma, é preciso conceber que os interlocutores, em contato com os sistemas midiáticos “são sujeitos complexos, de caráter histórico, social, cultural, políticos, ético, estético, técnico e psicológico que se constituem como sujeitos comunicantes em receptividade comunicativa”. (MALDONADO, 2014, p.37).

O processo de análise da recepção e das apropriações dos sujeitos comunicantes necessita de um estudo aprofundado dos grupos sociais e das comunidades focalizadas na pesquisa. Dessa forma, “torna-se fundamental para o pesquisador desenvolver um olhar metodológico sensível, atento às polaridades, às competências, aos sentidos, às lógicas e às visões de mundo dos indivíduos e grupos humanos”. (FOLLETO, 2016, p. 279).

Nessa conjuntura, a concepção de cidadania comunicativa é pertinente para amplificar o entendimento das dinâmicas e práticas dos sujeitos envolvidos no processo, além de interpretar os novos cenários midiáticos criados nas sociedades contemporâneas. Compartilho com Folleto (2016) a reflexão de que a noção de cidadania comunicativa se mostra instigante, enquanto dimensão teórica e política, para problematizar a centralidade das mídias nas relações contemporâneas, pondo em perspectiva a forma como os meios de comunicação apresentam a realidade social, e a maneira como essa construção incide nas demandas e necessidades dos sujeitos sociais. Neste viés, temos uma concepção cuja análise é focada na observação do papel dos meios no cotidiano dos sujeitos sociais.

Nesta pesquisa, interpretamos o conceito de cidadania de maneira ampla, não nos limitando ao viés dos direitos jurídicos dos cidadãos. Nesse sentido, ela é vista como instância

capaz de intensificar o desenvolvimento de culturas comunicacionais, sendo caracterizada nos embates dos diversos conflitos sociais, políticos e culturais, acentuados e potencializados através das lutas sociais e da midiatização das sociedades. (BONITO, 2015). Ela também é uma dimensão da práxis comunicativa dos sujeitos em suas lutas por acesso a bens, melhores condições de vida, entre outras dimensões.

As problematizações desenvolvidas sob esse viés nos mostram a necessidade de desenvolver estratégias teóricas e metodológicas que permitam investigar o processo comunicacional dos sujeitos em inter-relação com as mídias. Pensar em usos e apropriações padronizados, segundo interesses do produtor para o receptor, é considerar que a comunicação acontece de maneira linear e que a recepção é passiva e não pode reinterpretar os sentidos ofertados nos produtos de acordo com suas necessidades e seus modos de apropriação. Considero que esse processo é mais complexo, sendo atravessado por outras vivências e mediações, aspectos que precisam ser problematizados. No caso específico desta pesquisa, interessa refletir como ocorrem as produções de sentidos e a relação das pessoas cegas, enquanto sujeitos comunicantes, sobretudo pensadas nos vínculos com a cidadania.