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Relatos, negociações e discussões vinculadas à acessibilidade e consumo cultural

5.1 Processos comunicacionais do grupo Interação com AD no WhatsApp

5.1.3 Relatos, negociações e discussões vinculadas à acessibilidade e consumo cultural

observações foi possível identificar usos e apropriações comunicacionais voltadas à troca de experiências e de reflexões coletivas em torno de temáticas envolvendo a acessibilidade e os direitos das pessoas com deficiência. Muitas discussões se aprofundam e abordam outros aspectos que perpassam questões envolvendo o direito a ter acesso à cultura e ao entretenimento, nesse caso por meio da disponibilização da audiodescrição.

Nesses processos comunicacionais digitais, percebe-se que os sujeitos cegos vêm buscando problematizar as concepções históricas que se construíram em relação às pessoas com

deficiência, pois ainda existem a compreensão no imaginário popular de serem indivíduos incapazes. A necessidade de mudança nas representações sociais hegemônicas da figura do cego e a discussão sobre a terminologia adequada para se referir a esse grupo foi observada em diversas ocasiões. Para ilustrar, remeto a uma dessas conversas, ocorrida no dia 24/09/2018, em que um integrante do grupo fala sobre a terminologia utilizada em uma reportagem da emissora RBS TV:

Eu li a matéria e não gostei muito da abordagem deles, na realidade a mídia geralmente tende a fazer algo apelativo. Colocaram um nome inadequado (referindo-se ao nome da reportagem: “Olhos do Coração”), falaram em superação, sabe aqueles discursos mais capacitistas?! Também usaram umas duas vezes o termo inadequado “portador de deficiência”. Na realidade a gente percebe que eles fazem essas ações às avessas, porque eles deveriam primeiro consultar as pessoas com deficiência, que estão envolvidas no contexto para fazer direito. Eles tentam se promover muito com isso, falar em inclusão a partir de algo que eles não cuidam (R.B, Grupo Interação com AD, WhatsApp.).

Em outra ocasião, o grupo se mobilizou para solicitar à mesma emissora de televisão que incluísse a audiodescrição em uma reportagem que tratava sobre acessibilidade para PDV. As discussões em torno dessas duas pautas trouxeram mais uma vez questões relacionadas à falta de inclusão de pessoas com deficiência na construção de conteúdos que remetem a elas, o que reforça a necessidade de se respeitar o lema: Nada sobre nós, sem nós.

As reivindicações de direitos que já estão garantidos por lei, porém não são cumpridos na realidade, são temáticas que aparecem em diferentes momentos. Como situação permanente em suas vidas, as mensagens parecem ser a reedição de reivindicações antigas, o que se tem de novo é o ambiente comunicacional em que circulam. As publicações desse tipo foram recorrentes no grupo, o que demonstra que as apropriações deste ambiente digital têm possibilitado revitalizar e fortalecer a postura reivindicativa em torno dessas questões.

Figura 16 - Divulgação de mobilização por AD no Netflix

Fonte: Grupo Interação com AD, WhatsApp.

#Pracegover – na imagem vemos a tela do WhatsApp com o seguinte texto: “as pessoas com deficiência visual estão se mobilizando para pedia à Netflix que duble suas audiodescrições em outros idiomas. Se quiser nos ajudar, estamos fazendo posts com a hashtag “dublaaAD, e marcando a Netflix. Qualquer forma de divulgação é bem-vinda: vídeos, histories, textos, tuites, comentários no aplicativo...O importante é mostrar pra Netflix que ela possui muitos consumidores com deficiência visual, os quais têm direito à acessibilidade me âmbito comunicacional, conforme enuncia o capítulo IX do estatuto da pessoa com deficiência, lei número 13146/15, a qual confere à pessoa com deficiência direito à cultura e ao lazer em igualdade de oportunidades com as demais pessoas, sendo-lhe garantido o acesso a bens culturais em formato acessível. Atua...Ler mais” Fim da descrição.

Percebe-se que, para integrantes do grupo, mais do que um mecanismo de acessibilidade, a AD é entendida como uma porta de inclusão e cidadania no sentido de proporcionar às pessoas com deficiência visual a oportunidade de acesso ao conteúdo/espetáculo consumido por aquelas que enxergam. O relato a seguir, feito por um integrante após participar do 46º Festival de Cinema de Gramado, exemplifica isso:

Também agradecemos pela oportunidade de mais um ano poder passar pelo tapete vermelho, e poder interagir com os filmes com audiodescrição. Digo interagirmos porque podemos conversar com os videntes sobre as cenas do filme. (M.B, Grupo AD, WhatsApp).

Em outra ocasião, um dos participantes compartilhou uma informação sobre um evento divulgado no Facebook que afirmava disponibilizar AD para os visitantes com deficiência

visual. No entanto, o que era viabilizado não estava de acordo com as técnicas preconizadas pelos audiodescritores. A postagem rapidamente gerou uma discussão dentro grupo; alguns integrantes se mobilizaram e entraram em contato com os responsáveis do evento solicitando que a referência à audiodescrição fosse retirada da divulgação.

Figura 17 - Conversa sobre AD em evento divulgado no Facebook

Fonte: Grupo Interação com AD, WhatsApp.

#Pracegover – na imagem vemos a tela do WhatsApp com o seguinte texto: “Importante reforçarmos aqui no grupo que este evento usa indevidamente a referência à audiodescrição. Trata-se de uma exposição com textos em áudio que nada tem a ver com o trabalho realizado por audiodescritores profissionais. A expressão audiodescrição parece estar sendo usada para promover e propagandear a exposição. Fim da descrição.

Podemos pensar no papel deste ambiente para a construção da cidadania em associação com a tomada de consciência dos cegos de seus direitos e especificamente, também, nas reivindicações perante as formas excludentes como são tratados pelos videntes. Neste sentido, por exemplo, uma integrante cega relata que, ao visitar uma exposição de arte em que havia uma atividade com audiodescrição, foi tratada “de igual para igual” pelos atendentes que eram videntes, sem “mimimi ou coitadismo”.

A atitude relatada deveria fazer parte do cotidiano das PcD, mas, infelizmente, as observações durante a construção dessa pesquisa demonstram que essa prática não é algo comum. Grande parte das manifestações dentro do grupo envolvendo questões relacionadas à forma com que as pessoas com deficiência são tratadas demonstra que ainda existe muito preconceito, desinformação e exclusão por parte da sociedade. A postagem abaixo é um exemplo disso.

Figura 18 - Outdoor em Curitiba

Fonte: Grupo Interação com AD, WhatsApp.

#Pracegover – na imagem vemos a tela do WhatsApp com o compartilhamento de uma notícia com o título: “Outdoor em rua de Curitiba pede pelo fim de privilégios para deficientes” Fim da descrição.

A mensagem gerou diversos comentários e reacendeu a discussão sobre a necessidade constante de reivindicar o cumprimento de direitos já adquiridos pelas PcD.

Figura 19 - Mensagem sobre privilégios

Fonte: Grupo Interação com AD, WhatsApp.

#Pracegover – na imagem vemos a tela do WhatsApp com a seguinte mensagem: “É muito absurdo mesmo! Primeiro que nós não temos privilégios e sim direitos adquiridos a muito custo! Segundo que quem tem privilégio são os políticos e ninguém faz nada sobre o assunto! Ou seja, as pessoas sempre focando em algo que não é o ponto principal! As pessoas não têm empatia nem discernimento para atacar o que realmente é um problema que traz consequências para toda a população! Fim da descrição.

A pauta envolvendo os direitos das PcD é frequente entre os integrantes do grupo. Por diversas vezes foram compartilhadas mensagens alertando sobre Projetos de Leis que afetavam negativamente suas vidas, assim como solicitações para fazerem parte de protestos ou de abaixo assinados contrários a determinadas ações governamentais ou de empresas privadas.

Fonte: Grupo Interação com AD, WhatsApp.

#Pracegover – na imagem vemos a tela do WhatsApp com mensagens de duas pessoas: “Obrigado pelas palavras! Estamos lutando muito. Parece que conseguimos tirar de pauta, ontem à noite pelo menos por enquanto, esse projeto de lei nefasto”. “São tantos direitos sendo deletados todos os dias que a gente mal consegue acompanhar. @Rafael, obrigada por chamar a atenção para esta questão” Fim da descrição.

A partir dessas observações, infiro que a rede social estudada está sendo apropriada por esses sujeitos comunicantes cegos também em favor da construção de um domínio contra hegemônico em que as apropriações da internet têm sido realizadas de forma mais crítica e política, em prol do fortalecimento de demais movimentos de luta e de resistência. Nesse contexto, redes sociais como o WhatsApp parecem figurar como cenário onde essas demandas ecoam e ganham força, traduzindo o anseio desses sujeitos em estabelecer acordos de cidadania com os demais.

É importante ressaltar que as socializações dentro do grupo Interação com AD seguem protocolos de uso que geram negociações, assim como acontece em outras redes sociais integradas por pessoas sem deficiência. Tais regras necessitam de adaptações dos integrantes, sobretudo dos videntes, visto que essa comunidade é feita por e para as pessoas cegas. A publicação de fotos, por exemplo, é permitida desde que acompanhada da descrição da imagem. Nesses casos são utilizadas hashtags que identificam o texto descritivo, conforme demonstrado na imagem seguinte.

Figura 21 - Imagem com descrição

Fonte: Grupo Interação com AD, WhatsApp.

#Pracegover – na imagem vemos a tela do WhatsApp com a seguinte mensagem: “V Encontro nacional de mulheres cegas e com baixa visão – MBMC. De 24 a 27 de outubro de 2019. Local: Uninter Campus Garcez (Praça Osório – Centro – Curitiba). As vagas são limitadas. Inscreva-se já. Para solicitar inscrição e/ou mais informações entre em contato: inscriçãombmc@gmail.com” Abaixo do texto está a descrição da imagem de divulgação: “#Anúncio do V encontro, no canto superior esquerdo a logo (Flor em preto e branco com pétalas em formato de olhos). No centro o texto acima, fonte cor preta, de fundo com pouca opacidade o Museu Oscar Niemeyer conhecido como Museu do Olho devido a semelhança arquitetônica com o formato de um olho. No canto superior direito e inferior esquerdo está disposto a logo (cor branca e fundo preto) do MBMC, como uma estampa (padrão de repetição. Fim da descrição. Os processos comunicacionais observados no grupo não são isentos de conflitos e de negociações sobre as regras que regem as interações. A próxima imagem representa um dos conflitos que, com certa frequência, aparecem no grupo.

Figura 22 - Negociações sobre divulgação dentro do grupo

Fonte: Grupo Interação com AD, WhatsApp.

#Pracegover – na imagem vemos a tela do WhatsApp com mensagem de duas pessoas: Primeira mensagem: “Bah, não querendo ser chato, mas já sendo...comentários sobre filmes, eventos, notícias do pessoal da AD já deixam o grupo com um fluxo grande de mensagens. Acho que o espaço não serve pra bater papos. É impossível acompanhar o que realmente importa no meio de um monte de mensagens que não dizem respeito à finalidade do grupo. De repente seria uma boa criar um grupo pra bate papo...” segunda mensagem: “Tá certo, juliano! Da minha paetê está encerrado o bate papo”. Fim da descrição.

Neste caso específico, os integrantes procuraram em conjunto uma solução que fosse viável e agradável para a comunidade. Como solução, optaram por criar uma hashtag específica para identificar as mensagens relacionadas à divulgação de eventos, conforme exemplificado na postagem abaixo:

Figura 23 - #Divulgação

Fonte: Grupo Interação com AD, WhatsApp.

#Pracegover – na imagem vemos a tela do WhatsApp com mensagem de duas pessoas: Primeira mensagem: “Oi Rafael, Letícia, Lica!!!Legal essa solução sim, de adotarmos uma palavra vinculada às divulgações. Acho que facilita muito mesmo. Boa ideia. Só escolhermos uma palavra específica, que não seja muito comum, pra não misturar com outras ocorrências da palavra em outras conversas. Acho que algo como hashtag audesc por exemplo...Obrigado pelas considerações de vocês em tentarmos achar uma solução que fique bom pra todos.” Segunda mensagem: “bom dia, gente boa! Rafa, tu arrasou na solução! E se funciona bem nos dois sistemas, tudo beleza, sobre o indexador, sugiro #divulgação”. Fim da descrição.

Dentro dessa modalidade de análise, outra forma recorrente de uso do grupo Interação com AD são os relatos das experiências em relação aos eventos. Após cada espetáculo, tornou- se uma espécie de tradição o compartilhamento da vivência pessoal e das percepções em relação à apresentação, à qualidade da AD e às impressões sobre o local do evento, normalmente relacionando a questões envolvendo acessibilidade.

Figura 24 - Relato sobre espetáculo

Fonte: Grupo Interação com AD, WhatsApp.

#Pracegover – na imagem vemos a tela do WhatsApp com mensagem de duas pessoas: Primeira mensagem: “Boa tarde gente boa, o POA Jazz Festival foi sensacional! Shows excelentes, especialmente

no sábado, com as gringas Cyrille Aimée e Davina & The Vagabonds, muito diferentes entre si, mas com sonoridades incríveis! Tomara que ano que vem...” segunda mensagem: “foi excelente. Som fantástico, bandas ótimas, cerveja de qualidade e ad!!! Ingressos acessíveis, pela qualidade dos shows. Muito bom. Valeu Mimi!”. Fim da descrição

Esta modalidade de relato revela importantes percepções desses sujeitos em relação a um contexto no qual eles são os protagonistas. Aqui, a voz deles torna-se elemento essencial para gerar informações e, em um sistema de colaboração, auxiliar a construir ambientes acessíveis e adequados a suas particularidades. Em termos de cidadania, lembramos que na concepção apresentada por Cortina (2005) ela se constrói na cena democrática com base na autonomia, na ética e na participação ativa dos sujeitos nas relações considerando-se a cultura e os laços de pertença da comunidade.

Realmente o filme era bem paradinho, mas a AD ótima, muito clara, embora um pouco adiantada em relação ao filme. As vezes fazia a AD e depois as coisas aconteciam, mas não teve nada de sobreposição, a voz muito clara, a AD foi realmente muito boa (L. P, Grupo Interação com AD, WhatsApp).

O uso da rede social WhatsApp, por meio do grupo Interação com AD, parece colaborar para a construção desses laços de pertença e de um espaço democrático no qual esses sujeitos se sentem à vontade para expressar suas opiniões e experiências.

5.2 Os sujeitos comunicantes: trajetórias comunicacionais, midiáticas inter-relações com