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2.4 Os movimentos exploratórios

2.4.1 Explorações em eventos culturais

Já no início da pesquisa, após reformular meu projeto e redefinir a temática em torno das pessoas com deficiência visual, comecei a frequentar eventos que disponibilizavam audiodescrição. Essas observações in loco tinham como primeiro objetivo explorar os contextos sociais e culturais vivenciados por esses sujeitos. Essa fase exploratória é importante para que possamos tensionar o que advém do campo empírico e o que coloca a teoria, de modo que os achados empíricos possibilitem “trabalhar na elaboração de configuração teóricas sensíveis aos objetos concretos da realidade comunicacional e suscitam o aprofundamento de dimensões que se revelam importantes na sua configuração” (BONIN, 2011, p. 40).

É pertinente lembrarmos a perspectiva de Maldonado (2011, p. 293) de que as técnicas de pesquisa empírica não são definidas a priori, antes de conceber e reconhecer um problema; elas vão sendo estruturadas na concepção, no planejamento e nos desafios operativos e conceituais que aparecem ao longo da pesquisa. Também é pertinente dizer que, em termos etnográfico-arquitetônicos, ao observar o ambiente empírico, não é suficiente apenas a descrição das formas e cores, não se pode ficar restrito ao formalismo de registrar números e apresentar aparências. Conforme nos orienta Maldonado (2014), é importante, pensarmos, por exemplo, nas características simbólicas do local, suas qualidades para facilitar os encontros comunicativos, suas propriedades acústicas para estabelecer relações ou provocar conflitos, seus ambientes íntimos e coletivos em conjunto com seu ethos comunicativo (MALDONADO, 2014, p. 23).

Nessa perspectiva, para que eu pudesse aproveitar e registrar todas as informações obtidas por meio das observações, trabalhei com um diário de campo que me acompanhou durante toda a fase de investigação. Mills (1975), ao explicar a importância do diário para o pesquisador, ressalta que ele não deve ser utilizado apenas para descrever determinados acontecimentos, mas também para a autorreflexão e registro de sentimentos em relação ao que está sendo vivenciado durante o processo de investigação. É salutar trazer também os choques e tudo o que está permeando a pesquisa, ir além do mero registro, manter a mente desperta e estimular o exercício da escrita. No meu diário de campo, me propus a incluir todas as

percepções e estranhamentos que foram surgindo com o avanço das observações e dos estudos teóricos.

Durante o período da pesquisa, participei de 6 eventos presenciais com audiodescrição, sendo eles: 3 espetáculos de teatro, 1 sessão de cinema e 2 shows musicais. Também participei de uma confraternização com algumas pessoas cegas e audiodescritores, ocorrida após um desses eventos. Nos espetáculos de teatro, a AD foi realizada ao vivo; nesse caso utilizei os mesmos aparelhos que as pessoas cegas usam para ter acesso a som. Já na exibição de cinema, a AD estava incorporada ao filme, assim como o recurso de legendas para as pessoas surdas, o que dispensa o recurso de fones. Nos shows a audiodescrição também foi feita ao vivo, de forma quase individual. A sessão acessível era restrita a um pequeno número de pessoas cegas (8), que precisavam se inscrever previamente. Havia uma mesa reservada para eles na qual duas audiodescritoras iam descrevendo os acontecimentos, os gestos dos cantores e o espaço físico onde o show acontecia.

Esses movimentos exploratórios geraram importantes reflexões envolvendo tanto o contexto comunicacional do grupo quanto o processo semiótico dos espetáculos e a acessibilidade dos ambientes onde eram apresentados. Essas percepções empíricas foram sendo constantemente tensionadas com o que era visto na teoria.

Foi possível constatar que o grupo de WhatsApp funciona com um importante cenário de divulgação e mobilização do grupo para participar desses eventos presenciais. As combinações de horários de chegada, rotas de acesso, transporte, inscrições e confraternizações posteriores aos espetáculos aconteciam sempre no ambiente online. Em todos os espetáculos, observei que as pessoas cegas chegavam em pequenos grupos ou acompanhadas de uma pessoa, algumas videntes, outras também cegas. A interação presencial ia acontecendo à medida em que eles se reconheciam pela voz ou então quando interpelados por algum vidente.

Em relação à apropriação e ao entendimento dos conteúdos descritos durante os eventos, a percepção é de que eles estão diretamente ligados e dependentes de algumas questões, tais como: roteiro e narrativa da audiodescrição, qualidade técnica dos aparelhos utilizados para ouvir a narração, acústica do ambiente e até mesmo a relação de tempo entre os acontecimentos durante os espetáculos. Como exemplo, trago a experiência do primeiro evento que acompanhei, uma peça de teatro performática, com poucos diálogos e muitas interações visuais. Nesse caso, a minha inferência é de que o desafio foi maior tanto para o audiodescritor que precisava transcrever momentos essencialmente visuais (movimentos dos atores, expressões faciais, conjunto de imagens transpostas) quanto para o espectador cego. Ao término

do evento, conversei com alguns e eles confirmaram a dificuldade de entendimento relatando, principalmente o fato de terem sido utilizadas músicas muito altas durante a performance, o que dificultou a escuta do que estava sendo narrado pela audiodescritora.

Em contrapartida, nos espetáculos em que a qualidade técnica convergiu com a narrativa fluída do espetáculo, foi possível observar que as percepções dos acontecimentos entre os cegos e videntes acontecia de forma muito parecida em termos de espaço/tempo. Os momentos de emoção e riso ocorriam de forma concomitante entre os dois públicos, o que sinaliza que, com acessibilidade, é possível dar condições para que os sujeitos cegos possam fruir os bens culturais produzidos no contexto vidente.