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Disputas no processo de reconhecimento das famílias atingidas

O Decreto Presidencial 7.432/2010 institui que devem ser cadastrados os seguintes casos impactados por uma construção de hidrelétrica:

Art. 2o - O cadastro socioeconômico previsto no art. 1o deverá contemplar

os integrantes de populações sujeitos aos seguintes impactos:

I - perda de propriedade ou da posse de imóvel localizado no polígono do empreendimento;

II - perda da capacidade produtiva das terras de parcela remanescente de imóvel que faça limite com o polígono do empreendimento e por ele tenha sido parcialmente atingido;

III - perda de áreas de exercício da atividade pesqueira e dos recursos pesqueiros, inviabilizando a atividade extrativa ou produtiva;

IV - perda de fontes de renda e trabalho das quais os atingidos dependam economicamente, em virtude da ruptura de vínculo com áreas do polígono do empreendimento;

V - prejuízos comprovados às atividades produtivas locais, com inviabilização de estabelecimento;

VI - inviabilização do acesso ou de atividade de manejo dos recursos naturais e pesqueiros localizados nas áreas do polígono do empreendimento, incluindo as terras de domínio público e uso coletivo, afetando a renda, a subsistência e o modo de vida de populações; e

VII - prejuízos comprovados às atividades produtivas locais a jusante e a montante do reservatório, afetando a renda, a subsistência e o modo de vida de populações.

Parágrafo único. Para os efeitos do disposto neste Decreto, o polígono do empreendimento abrange áreas sujeitas à desapropriação ou negociação direta entre proprietário ou possuidor e empreendedor, incluindo as áreas reservadas ao canteiro de obras, ao enchimento do reservatório e à respectiva área de preservação permanente, às vias de acesso e às demais obras acessórias do empreendimento (BRASIL, 2010).

O levantamento realizado pela população local e suas organizações, como o MAB, contabilizou cinco mil famílias prejudicadas pela construção da hidrelétrica, de acordo com os termos do decreto presidencial. O consórcio CESTE, responsável pela hidrelétrica, indenizou 1287 famílias com base em estudo feito em 2001, antes da efetivação desse decreto.

Para compreender essa divergência de dados, podemos aproveitar a explicação de Carlos Vainer (2008) que destaca duas concepções de atingidos por barragens em voga nesses conflitos. Há uma concepção territorial-patrimonialista, adotada pelos empreendimentos e ancorada na legislação, que concebe como atingidos os proprietários das terras localizadas nas áreas alagadas. Outra perspectiva é a concepção hídrica, que compreende como atingidas

as populações tradicionais que vivem nas margens do rio e ali desenvolvem suas atividades econômicas, sociais e culturais. Essa concepção é reivindicada por atores como o MAB e outros que atuam em conjunto com as famílias atingidas.

De acordo com o relato das lideranças dos acampamentos, uma das formas de compensação pelo deslocamento se realizaria através de uma dívida que o consórcio construtor da UHE tem com a União, com o Estado brasileiro, de oito mil hectares de terra que foram alagadas e que devem ser ressarcidas ao Estado. No entanto, os tempos do Estado e seus trâmites legais e o tempo das necessidades das famílias de garantirem seu sustento são diferentes e incompatíveis. Dessa maneira, uma parte das famílias que alega não ter seus pleitos atendidos até o momento se manteve numa forma organizativa coletiva através do MAB. Outra parte se dispersou e foi em busca de saídas individuais para resolver sua situação, como buscar outros trabalhos, migrar para outras cidades.

A parcela de famílias que se manteve organizada com o MAB tem lançando mão de estratégias de enfrentamento e de resistência cotidiana para garantir seus pleitos. Depois de ficar um tempo num acampamento conjunto dirigido pelo MST e pelo MAB no município de Ananás/TO, essas cerca de 150 famílias decidiram ocupar as margens do lago da Usina Hidrelétrica em 2012, onde estão até o presente momento (junho de 2018).

Entre as razões apresentadas para não prosseguirem no acampamento com o MST estão a distância do rio e a falta de água. Por mais que considerassem uma estratégia importante a ocupação de latifúndios como forma de pressão junto ao governo para garantir suas reivindicações, essas famílias tinham uma trajetória de convivência com a água e se ressentiram principalmente da ausência da água como fonte de vida, pois muitos estavam ligados à atividade pesqueira, além do sentimento de ausência do lar e da vida que tinham antes. Essa percepção influenciou no momento em que decidiram se mudar para ocupar áreas do Ceste na beira do lago.

As famílias acampadas relatam que passam por muitos sofrimentos quando são retiradas de seus territórios, pois mudanças ambientais trouxeram grandes prejuízos materiais e psíquicos. O sofrimento se relaciona, principalmente, à descontinuidade das atividades exercidas, como a agricultura, a pesca, a coleta de frutas, lavar roupa no rio, acesso a ervas e plantas medicinais e a produção oleira. As famílias reclamam que não foi feito um projeto de desenvolvimento sustentável eficaz, capaz de garantir aos trabalhadores condições de re-territorialização e possibilidades de trabalho oferecidas pelo novo espaço. A única ação realizada pelo CESTE nesse sentido foi o fornecimento de cursos profissionalizantes e palestras voltadas para o empreendedorismo (MAB, 2013).

Quando indagados sobre como gostariam de ser indenizados pelo CESTE, a resposta foi sempre semelhante, como nesta entrevista concedida por D. Maria, registrada em Relatório do MAB (2013).

Eu num queria nada. Eu queria só na beira do rio isso assim. Eu não queria nem tudo que eu tinha antes. Eu queria que eles me desse... Eu queria nem que fosse assim uns 30, não uns 50 metro de largura com... uns 100 de cumprimento. Na barranca de um rio. Só a barranca. Só, porque aí só com um pedacinho de terra perto do rio eu plantava mais uma coisa, eu sobrevivia. Dava até pra eu plantar uns pés de mandioca, e comia. E ainda pescava sem sair de casa. Nem precisava saí de casa não (MAB, 2013, p. 30).

Educação, Cultura e Etnodesenvolvimento saberes em diálogo

Atualmente, existem sete acampamentos localizados nas áreas de reserva ambiental compradas pelo CESTE na beira do lago: um em Palmeiras do Tocantins, um em Barra do Ouro, dois acampamentos em Babaçulândia e três em Filadélfia. Para fins de nossa reflexão neste artigo, observarmos a dinâmica de ocupação no acampamento Coragem em Palmeiras do Tocantins e no acampamento Ilha Verde de Babaçulândia.

Acampamento Coragem: direito tradicional