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Disputas em torno do conceito jurídico de “trabalho análogo ao de escravo” no Brasil

Capítulo 1: A escravização do sujeito livre

1.4. O trabalho escravo no ordenamento jurídico brasileiro

1.4.3. Disputas em torno do conceito jurídico de “trabalho análogo ao de escravo” no Brasil

A expressão “trabalho escravo”, que tomou corpo no Brasil para designar modalidades extremas de exploração do ser humano, foi uma construção crucial nas lutas sociais do fim do século XX no país, as quais conferiram visibilidade ao fenômeno da escravidão contemporânea e culminaram no reconhecimento das violações por parte do Estado e na construção de instrumentos jurídicos e políticos de enfrentamento de tais práticas. O Código Penal Brasileiro, em seu texto original datado de 1940, já tipificava como crime a conduta de “reduzir alguém à condição análoga à de escravo”. A vagueza da redação original dificultava o reconhecimento do crime pelas autoridades, ao não permitir uma diferenciação entre a conduta criminosa e outras irregularidades trabalhistas menos graves (NEVES, 2012, p. 42). Além disso, a redação ressoava ideias tradicionais de escravidão, evocando imagens de trabalhadores africanos do século XIX, acorrentados, açoitados e realizando atividades agrícolas desgastantes (LIMA, 2011, p. 199).

Portanto, a partir de 2003, para que se configurasse o crime de “reduzir alguém à condição análoga à de escravo”, tornou-se necessária a presença de uma das quatro condutas seguintes: 1) sujeitar alguém a trabalhos forçados; 2) sujeitar alguém a jornada exaustiva; 3) sujeitar alguém a condições degradantes de trabalho; 4) restringir, por qualquer meio, a sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto.

Foram criadas, no mesmo diploma, três hipóteses do crime por assimilação para as seguintes condutas (desde que realizadas com o fim de reter o trabalhador no local de trabalho): 1) cercear o uso de qualquer meio de transporte por parte dos trabalhadores; 2) manter vigilância ostensiva do local de trabalho; 3) apoderar-se de documentos ou objetos do trabalhador.

A nova redação foi uma importante conquista na luta de diversos atores sociais que perceberam que o combate e prevenção do trabalho escravo requeria a desvinculação

entre o conceito de “trabalho escravo contemporâneo” e a concepção tradicional de escravidão do Brasil colonial. Tal avanço ocorreu num contexto favorável às conquistas sociais, que combinava “cobrança da comunidade internacional, assunção do compromisso em âmbito externo, pressão dos movimentos populares e aumento do número de resgates pelos órgãos fiscalizadores, exigindo pronta resposta por parte do Estado” (CAVALCANTI, 2016, p. 101).

Entretanto, como veremos adiante, o instrumental jurídico criado com a nova redação do art. 149 do Código Penal abriu um espaço de luta de alcance muito maior, desafiando a própria conceituação da OIT, cuja Convenção n. 29 define “trabalho forçado” como “Todo trabalho ou serviço exigido de uma pessoa sob a ameaça de sanção e para o qual não se tenha oferecido voluntariamente”.

Para muitos juristas brasileiros, o conceito de “trabalho forçado” adotado pela OIT seria insuficiente para compreender as características recentes desse crime no país, cabendo à nossa legislação o papel de complementá-lo com outros institutos jurídicos mais abrangentes, atuais e adequados à nossa realidade (NEVES, 2012, p. 43-4).

E, de fato, o objetivo das Convenções n. 29 e 105 da OIT foi traçar conceitos amplos, mínimos denominadores comuns que vinculassem os países, de forma que cada qual deveria adaptar a sua legislação doméstica para abarcar as modalidades de trabalho forçado praticados em suas realidades específicas, ampliando e detalhando seu próprio conceito. Na publicação da OIT Combatendo o Trabalho Escravo Contemporâneo: o exemplo do Brasil, menciona-se justamente o grande desafio de se adaptar um conceito universal a circunstâncias nacionais diferenciadas, uma vez que “as vítimas e as formas usuais de coerção estão em constante mudança” (COSTA, P., 2009, p. 39-40). Um exemplo claro citado na referida publicação é a dívida, que se tornou um aspecto fundamental da coerção atrelada às práticas de trabalho forçado no Brasil, sendo, por essa razão, incorporada pela legislação nacional.

O Relatório Global da Organização Internacional do Trabalho de 2001 apontava dois elementos fundamentais caracterizadores do trabalho forçado contemporâneo: a coação e a negação da liberdade (SCHWARTZ, R., 2008). E, ainda hoje, o posicionamento da OIT é de que o involuntarismo e a coerção são os elementos nucleares na definição de “trabalho forçado”, que não se configuraria no caso de más condições de trabalho tais quais salários baixos, jornadas extensas, a não ser que tais circunstâncias fossem acompanhadas de um elemento coercitivo, como a manipulação de uma dívida, retenção de salário ou documentos, ameaças, violência ou confinamento de trabalhadores (COSTA, P., 2009, p. 10).

Entretanto, as construções doutrinárias e jurisprudenciais brasileiras apontam em outro sentido e, ao longo dos anos, foram consagrando uma definição de “trabalho em condições análogas à de escravo” que superou as limitações da conceituação antiga, adequando “a caracterização do trabalho escravo a novas formas de exploração do trabalho humano” (LIMA, 2011, p. 215), quer ampliando sua acepção do elemento coercitivo, quer avançando para além dele.

No cerne dos debates acerca da conceituação jurídica da escravidão contemporânea encontram-se intrincadas disputas políticas. Essa contraposição de posicionamentos pautou as discussões em torno da votação da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 57A, apresentada em 1999 e aprovada definitivamente em junho de 2013 no país.

A PEC 57A/1999, popularmente conhecida como a PEC do Trabalho Escravo, foi uma proposta de alteração do artigo 243 da Constituição Federal, para incluir entre o rol de propriedades passíveis de expropriação (para serem destinadas a reforma agrária e programas de habitação popular), sem indenização, aquelas em que fosse flagrado trabalho análogo ao de escravo.

Os pronunciamentos dos deputados na sessão ordinária da Câmara dos Deputados ocorrida em 07/02/2012, na qual se debateu a importância da votação da PEC, apagam as especificidades do trabalho escravo contemporâneo, traçando uma linha contínua homogênea entre a escravidão colonial e os “resíduos pré-capitalistas” que, segundo esse discurso, consubstanciaria o trabalho análogo ao de escravo do Brasil atual. O clamor pela importância da PEC foi assim justificado pelo deputado Arnaldo Jordy, que iniciou sua fala reportando a notícia de resgate de 52 trabalhadores em condição análoga a de escravos no município de Tailândia, no Pará:

Estamos há 124 anos da abolição da escravatura no Brasil, há 69 anos da instituição da CLT - Consolidação das Leis do Trabalho, e lamentavelmente, em pleno século XXI, ainda assistimos a relações pré-capitalistas de submissão humana a às mais dramáticas condições de vida e de trabalho. Portanto, renovo o apelo, que é de várias lideranças, para que, neste semestre, o mais breve possível, votemos a PEC do Trabalho Escravo, que agora, em abril, completa 11 anos aguardando a votação em segundo turno (Pronunciamentos – PEC do Trabalho Escravo, 2012, p. 10).

Na aprovação final da Emenda Constitucional no Senado Federal em 27/05/2013, que acompanhei durante a pesquisa de campo, os discursos dos senadores apenas contemplaram o trabalho escravo nas modalidades de “trabalho forçado” e “servidão por

dívida”. Se, hoje em dia, ninguém mais ousaria discursar em favor da escravidão, por outro lado, praticamente nenhum senador ousou defender que jornada exaustiva e trabalho degradante configuram modalidades de trabalho escravo observadas no Brasil.

Com efeito, durante o período da pesquisa esteve em trâmite o Projeto de Lei n. 432/2013, de autoria de Romero Jucá, propondo a restrição do conceito jurídico de “trabalho análogo ao de escravo”. Visava-se eliminar de seu conceito as modalidades “jornada exaustiva” e “trabalho degradante”. E, nas próprias falas de uma parcela dos senadores no dia 27 de maio daquele ano, estava explícito que o voto em favor da PEC, para muitos deles, estava condicionado à sua regulamentação, com o objetivo de alterar a definição legal de trabalho análogo ao de escravo.

Nos dias que se seguiram à aprovação da Emenda Constitucional, constatou-se um temor generalizado de que a regulamentação da Emenda Constitucional jamais ocorresse ou que fosse executada de forma a trazer um retrocesso para a luta contra o trabalho escravo. Movimentos sociais, Auditores Fiscais do Trabalho, Procuradores do Trabalho e Juízes do Trabalho têm advertido que a Emenda Constitucional será esvaziada caso a bancada ruralista no Congresso consiga aprovar um conceito mais brando de trabalho análogo ao de escravo.

E, de fato, a articulação da bancada ruralista para o abrandamento do conceito legal de trabalho escravo já vem acompanhando há muito tempo as discussões parlamentares sobre o tema. A defesa da restrição do conceito de trabalho escravo faz-se sob a alegação de que a atual definição legal seria vaga, gerando insegurança jurídica.

Durante a tramitação da PEC 438/2001, Katia Abreu fez o seguinte pronunciamento em sessão da Câmara dos Deputados (INATOMI, 2016, p. 99):

Está havendo uma confusão entre infração trabalhista, trabalho degradante e trabalho forçado e escravo...são três situações completamente diferentes, embora as três estejam erradas. [Trabalho escravo] é obrigar alguém a estar onde não quer (Transcrição do Pronunciamento da Deputada Federal Kátia Abreu na Câmara dos Deputados, 26/05/2004).

No documento Cento e uma propostas para modernizar as relações trabalhistas, a Confederação Nacional da Indústria (CNI) também ataca as categorias “trabalho degradante” e “jornada exaustiva”:

Devido à ausência de critérios objetivos legais para caracterizar o trabalho escravo, associados a outros conceitos subjetivos de trabalho degradante e jornada exaustiva, empresas sérias têm sido injustamente punidas e expostas publicamente, com impactos relevantes na sua

imagem e sobrevivência (CNI, 2012, p. 84, apud FILGUEIRAS, 2015, p. 134).

Já os partidários da manutenção do conceito atual, acreditam que há outros interesses por trás do discurso da “insegurança jurídica”. Nas palavras de um integrante do Movimento Humanos Direitos:

A verdade é que quem afirma que não há clareza sobre o conceito de trabalho escravo é porque não concorda com o conceito. Se a grande maioria de empresários, no campo e na cidade, segue a lei e não utiliza trabalho escravo, a quem interessa tornar a legislação mais frouxa? A quem interessa proteger quem promove a concorrência desleal e o dumping social, cortando custos ilegalmente para ganhar competitividade através da exploração de seres humanos? [...] Por isso, exigimos, como cidadãos brasileiros, uma regulamentação que considere condições degradantes, jornada exaustiva, trabalho forçado ou servidão por dívida como elementos que definem trabalho análogo ao de escravo. Como está na Lei.

Xavier Plassat, liderança da Comissão Pastoral da Terra, sintetiza o que está em jogo: “abolir o trabalho escravo ou o conceito de trabalho escravo?”.

No prefácio da publicação da OIT Combatendo o Trabalho Escravo

Contemporâneo: o exemplo do Brasil, Laís Abramo e Roger Plant (à época, respectivamente

diretora da OIT-Brasil e chefe do Programa de Ação Especial para Combate de Trabalho Forçado da OIT) elogiam o vanguardismo brasileiro em dedicar a devida atenção a formas mais abrangentes de exploração do trabalho, através da inclusão, na concepção de “trabalho escravo”, da noção de “trabalho degradante”. Ressaltam o intuito de utilizar a experiência brasileira para contribuir com a proposição de soluções globais para o problema.

Ironicamente, enquanto na Conferência da OIT, em Genebra, a experiência brasileira no combate ao trabalho escravo era tida como referência, comemorando-se a notícia da aprovação da Emenda Constitucional no Brasil, simultaneamente a bancada ruralista brasileira trilhava, no Congresso Nacional, o caminho oposto, utilizando-se de uma interpretação restritiva do conceito da OIT para tentar limitar a definição legal brasileira de trabalho escravo, sob o argumento de que sua amplitude estaria em desacordo com as normas internacionais.

Um dos intentos de alteração do conceito jurídico de “trabalho análogo ao de escravo” materializou-se no texto do projeto de lei n. 432/2013, que propunha a exclusão das “jornadas exaustivas” e “condições degradantes de trabalho” da definição do crime. Durante a relatoria do senador Romero Jucá (também autor do projeto), foram apresentadas 10 emendas

propondo a reinclusão das jornadas exaustivas e condições degradantes de trabalho no conceito apresentado no projeto, as quais foram rejeitadas pelo relator com o seguinte fundamento: “ante a fluidez daquilo que se possa considerar como sendo jornada exaustiva ou condições degradantes de trabalho, não se recomenda a [sua] cristalização na lei” (Romero Jucá, Parecer da Relatoria, p. 2; 5).

Desde então, o Projeto de Lei entrou e saiu de regime de urgência, foi incluído e excluído da ordem do dia, sem ter sido objeto de votação pelo Plenário. Ao retornar à Comissão de Constituição e Justiça, na relatoria do senador Paulo Paim, houve novo parecer no sentido de reincorporar as hipóteses de jornadas exaustivas e de condições degradantes de trabalho ao conceito de trabalho análogo de escravo. Em seu parecer, Paim afirma que

[...] a restrição da liberdade de locomoção não se revela o único, nem o mais essencial, atributo para caracterização do trabalho em condições análogas à de escravo, porque não esgota o rol de comportamentos passíveis de retirar a dignidade inerente ao trabalho e à condição humana (Parecer do Relator, p. 6-7).

A votação do projeto foi adiada inúmeras vezes por pressão popular e mobilizações em torno de audiências públicas na Comissão de Direitos Humanos do Senado Federal, culminando em seu arquivamento no final de 2018.

Os últimos anos foram marcados pela realização de inúmeras audiências públicas, mobilizações de diversos movimentos sociais e instituições públicas em torno dos perigos de retrocesso da conceituação do trabalho análogo a de escravo e da importância de se fortalecer a política nacional de erradicação do trabalho escravo, bem como a diversas tentativas de se desarticular os instrumentos utilizados em seu combate.

O momento de realização deste trabalho, que teve início no ano de 2013, também acabou por imprimir sua influência sobre os rumos da pesquisa, uma vez que foi justamente entre 2013 e 2014 que as disputas acerca da conceituação legal de trabalho escravo se acirraram no Congresso Nacional, com enorme pressão da bancada ruralista e outros setores conservadores permeando os arranjos entre partidos na votação do projeto de emenda constitucional que ficou conhecido como "PEC do trabalho escravo".

O ano de 2013 também marca uma virada importante, pois foi a primeira vez no Brasil em que os trabalhadores resgatados de trabalho escravo no meio urbano (53% do total

de resgatados naquele ano) superaram, numericamente, os resgatados em atividades rurais (47% do total)64.

Foi justamente no curso dessa quebra de paradigma que as grandes construtoras passaram a ser alvos frequentes de flagrantes de trabalho escravo. Não demorou muito e, em dezembro de 2014, o setor da construção civil conseguiu que fosse suspensa a publicação da Lista Suja65 através de Ação Direta de Inconstitucionalidade julgada no STF. A suspensão perdurou por aproximadamente um ano e, conforme decisão do próprio Supremo, teria fim em maio de 2016, mas a força político-econômica do setor da construção civil, cujas conexões com a máquina pública foram expostas especialmente neste mesmo período, fez-se sentir na própria estrutura do Poder Executivo, criando-se entraves à concretização dessa medida aparentemente tão simples. Portanto, entre maio de 2016 e março de 2017, a publicação da lista foi interrompida, sendo retomada somente após derrota judicial do Ministério do Trabalho em ação proposta pelo Ministério Público do Trabalho.

Como se vê, apesar de posicionamento favorável ao combate ao trabalho escravo adotado pelo governo federal entre 1995 e 2016, ocorreram no período algumas tentativas de desarticular e desmoralizar as políticas públicas existentes através de canais externos ao Poder Executivo. Segundo relato dos auditores fiscais entrevistados, as duas principais investidas contra as políticas de enfrentamento do trabalho escravo até hoje teriam sido: a) em 2007, visita de comissão mista de senadores e deputados federais a usina onde haviam sido resgatados trabalhadores, com o objetivo de questionar os procedimentos adotados pela auditoria fiscal do trabalho; b) entre 2013 e 2016, suspensão da publicação da Lista Suja através de medidas judiciais.

Em ambos os casos, os ataques foram revertidos através de embates e pressão ampliada da sociedade brasileira e comunidade internacional. Nas palavras do auditor-fiscal Nelson:

A gente sempre teve momentos em que políticos tentaram desqualificar o trabalho do grupo móvel. Mas toda vez os fatos falaram mais alto. A realidade encontrada é tão vil que não conseguiram desqualificar. [...] Graças a todo esse processo histórico, há ainda hoje uma convicção de que o trabalho escravo existe, precisa ser combatido e tem o repúdio da sociedade

64 Dados do Ministério do Trabalho sistematizados pela Comissão Pastoral da Terra. Ver

http://reporterbrasil.org.br/2014/02/escravidao-urbana-passa-a-rural-pela-primeira-vez/.

65 O Cadastro dos Empregadores Infratores, popularmente conhecido por “Lista Suja”, é um instrumento de

combate ao trabalho escravo criado no Brasil em 2004, que consiste na divulgação da relação de pessoas físicas e jurídicas flagradas explorando trabalho escravo pela Fiscalização do Trabalho, após o trânsito em julgado administrativo de todos os processos na Secretaria de Inspeção do Trabalho. Esse tema será tratado mais detalhadamente no capítulo V do texto.

na sua maioria. O não retrocesso está ligado ao diálogo com a sociedade promovido pelas instituições de combate ao trabalho escravo. Os instrumentos precisam ser mantidos. E para um instrumento cair é necessário que toda essa cultura de repúdio ao trabalho escravo caia em descrédito. Alguns fizeram inclusive reportagem dizendo que o trabalho escravo é criação de auditor, tentando sensibilizar a sociedade contra esses atores e contra a publicação da “lista suja”. Isso não prosperou.

Também no tocante à comissão mista de parlamentares que visitaram a usina em 2007, o mesmo auditor conta que a senadora Kátia Abreu “levou os deputados e senadores e quando veio de lá ela ficou sozinha, porque todos acabaram ficando do lado da gente, do lado da realidade”.

A posse de Michel Temer como presidente do Brasil, em 2016, marca um novo período político em que os instrumentos de combate ao trabalho escravo passam a ser alvos de ataque aberto por parte do próprio Poder Executivo Federal e do próprio ministro do trabalho. A partir de então, intensificou-se um processo de desmonte dos direitos trabalhistas através de alterações legislativas promovidas pelo congresso nacional, alinhado à política do novo governo federal. A ampliação da terceirização, o primado do "negociado sobre o legislado", pautas que colocam em risco a própria sobrevida do direito do trabalho, foram efetivadas, culminando na reforma trabalhista de 2017 com a promulgação da Lei n. 13.467/17.

Em 16 de outubro de 2017, respondendo a pressões de setores econômicos e políticos, o então ministro do trabalho Ronaldo Nogueira tentou restringir o conceito de “trabalho escravo” através da Portaria nº 1.129. A norma foi alvo de fortíssimas críticas quanto a sua ilegalidade e ao retrocesso que representava para os direitos fundamentais, sofrendo suspensão por liminar do STF e terminando por ser substituída pela Portaria n. 1293 de 29 de dezembro de 2017, que reincorporou a seu texto o conceito de “trabalho em condições análogas a de escravo” vigente desde 2003.

Conforme noticiado pela Repórter Brasil:

A tentativa de dificultar a libertação de trabalhadores foi vista como moeda de troca entre o governo federal e a bancada ruralista para barrar a denúncia por organização criminosa e obstrução de Justiça contra Michel Temer na Câmara dos Deputados. Apresentada pela Procuradoria-Geral da República ao Supremo Tribunal Federal, ela foi rejeitada pelos parlamentares no dia 25 de outubro. Segundo fontes no Ministério do Planejamento, o texto da polêmica portaria atendeu também a demandas de empresas da construção civil. Por conta disso, o governo sofreu pesadas críticas da sociedade civil, da imprensa, de especialistas e agências das Nações Unidas, de organizações internacionais, de grandes empresas nacionais e estrangeiras, de políticos, procuradores, magistrados, entre outros. Investidores estrangeiros chegaram a afirmar que o país poderia sofrer sanções, uma vez que o enfraquecimento

no combate ao trabalho escravo reduziria a credibilidade sobre a qualidade social de produtos brasileiros. Ronaldo Nogueira pediu exoneração do cargo. Ele, que quer se preparar para tentar à reeleição como deputado federal pelo PTB no Rio Grande do Sul, sai com a imagem chamuscada pelo episódio da portaria do trabalho escravo e da engajada defesa pública que fez do texto (https://blogdosakamoto.blogosfera.uol.com.br/2017/12/29/governo-volta- atras-e-muda-portaria-que-dificultava-libertacao-de-escravos/).

Assim, apesar de terem sofrido tantos ataques nos anos recentes, os principais instrumentos de nossa política de erradicação do trabalho escravo ainda sobrevivem, amparados por grandes mobilizações nacionais e internacionais, que mostraram a força das redes construídas em torno dos planos de erradicação do trabalho escravo, a penetração das campanhas informativas, educacionais e preventivas no nível de conscientização popular sobre o fenômeno, bem como o amadurecimento de legislações e estudos sobre a escravidão