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Escravidão como questão de desigualdade e exploração

Capítulo 1: A escravização do sujeito livre

1.1. Escravidão como questão de desigualdade e exploração

A incompreensão (ao menos parcial) do fenômeno da escravidão num país como o Brasil, fundado em relações escravocratas e colonialistas, é um grave entrave não apenas para as ciências sociais, como para o próprio desenvolvimento das instituições e relações humanas.

O objetivo deste capítulo é propor um ponto de partida teórico para o debate sobre a escravidão contemporânea alicerçado na exploração e na desigualdade, e não na afronta à liberdade. E, por conseguinte, abrir caminho para novos pontos de chegada em diversos temas correlatos: a relação entre a escravidão do Brasil Colônia e Império e a escravidão contemporânea, as especificidades da escravidão brasileira no contexto global e os pontos cruciais da atual disputa em torno do conceito de “trabalho análogo a de escravo” no país.

Na introdução de seu livro A abolição, Emília Viotti da Costa escreve:

O Brasil era o último país do mundo ocidental a eliminar a escravidão. Para a maioria dos parlamentares, que se tinham empenhado pela abolição, a questão estava encerrada. Os ex-escravos foram abandonados à sua própria sorte. Caberia a eles, daí por diante, converter sua emancipação em realidade. Se a lei lhes garantia o status jurídico de homens livres, ela não lhes fornecia os meios para tornar sua liberdade efetiva. A igualdade jurídica não era suficiente para eliminar as enormes distâncias sociais e os preconceitos que mais de trezentos anos de cativeiro haviam criado8. A Lei

Áurea abolia a escravidão mas não seu legado. Trezentos anos de

opressão não se eliminam com uma penada. A abolição foi apenas o primeiro passo na direção da emancipação do negro. Nem por isso deixou de ser uma conquista, se bem que de efeito limitado” (COSTA, E., 2010a, p. 12, grifo nosso).

8 “O fato é que, num momento em que o abolicionismo, mesmo que gradual, prometia a quimera da liberdade, já

o tema da igualdade estava outra vez em questão: não mais por causa do sistema escravocrata, mas agora em nome da ciência e da biologia, que determinavam de maneira categórica que ‘os homens não nasciam iguais’” (SCHWARTZ, L., 2018, p. 408).

A autora recupera também este interessante trecho de um dos discursos da Câmara dos Deputados dirigidos à Princesa Isabel (resposta à Fala do Trono), no bojo da aprovação da abolição da escravatura, em que os deputados afirmam:

Desfizemo-nos Senhora, do ominoso legado que apenas por constrangimento da indústria agrícola havíamos mantido até hoje, restituímos à

personalidade humana os foros integrais de sua dignidade em face do princípio de igualdade política; consagramos o da uniformidade da condição civil e eliminamos assim da legislação a única exceção repugnante

com a base moral do direito pátrio, e com o espírito liberal das instituições modernas (COSTA, E., 2010a, p. 11, grifo nosso).

Ao retomarmos essa lúcida leitura da abolição da escravidão no Brasil, queremos apenas nos firmar sobre quatro pontos cruciais, a fim de que possamos em seguida alcançar, sem distorções, nosso objeto de estudo propriamente dito, que é o trabalho escravo contemporâneo.

O primeiro ponto é que o abolicionismo, em última análise, não é uma questão de liberdade (apesar de também atingir a liberdade), mas fundamentalmente uma questão de igualdade. O cativeiro dos negros pela empresa colonial foi, de fato, a forma pela qual se praticou a escravidão à época, porém, não constitui a única forma possível de escravatura de uma população. A escravidão nada mais é do que a submissão de uma população por outra a uma condição de inferioridade que a obrigue a servir seus superiores. A forma como essa dominação se torna estrutura, prática e crença é histórica: varia no tempo e no espaço em consonância com as conformações sociais e as dinâmicas territoriais. Assim, cada modo de produção cria seus modos de escravizar e cada territorialidade encontrará, também, ainda que inscrita numa ordem global, suas especificidades, conforme estudaremos em seguida no caso do estado de Mato Grosso. Por outro lado, o estudo mais aprofundado do local nos ajudará a desvendar lógicas de exploração sistêmicas que transcendem as fronteiras do território estudado e podem nos auxiliar a compreender fenômenos mais abrangentes do mundo do trabalho.

O segundo ponto, que tem relação com o anterior, é que o racismo não é um subproduto da colonização europeia que permaneceu entre nós como legado nefasto do escravismo. O racismo é um sistema ideológico que se originou na Europa, simultaneamente e em conexão com o colonialismo, que serviu de fundamento legitimador da conquista e dominação de outros povos e territórios. A concepção da humanidade como subdivida em raças desiguais por natureza é o verdadeiro fundamento da escravidão de um ser humano por

outro (biologicamente iguais, uma vez que as raças são um construto social de dominação, mas não existem biologicamente).

O terceiro ponto é que a dignidade humana já era a fundamentação política e jurídica do abolicionismo no século XIX, não havendo que se falar em mudança do paradigma da “liberdade” para a “dignidade” no campo do combate ao trabalho escravo pelo direito contemporâneo brasileiro. Que a escravidão colonial atuasse contra a liberdade das vítimas e que a escravidão contemporânea opere cada vez mais através dessa liberdade, isso em nada afeta o coração da escravidão, que é crença de que há populações mais dignas do que outras. As formas pelas quais se expressa o desprezo pelas raças tidas como inferiores e os mecanismos encontrados para subjuga-las de modo a que produzam para os dominantes (as “raças senhoras”9) sofrem enormes variações ao longo da história. Por isso, a abolição da escravidão em 1888 deve ser entendida como a abolição de uma escravidão, não de todas as escravidões. Além disso, tratou-se de abolição formal que teve grande impacto, mas não poderia impedir relações escravistas de se reproduzirem às margens da lei.

O quarto ponto é que a escravidão tal qual era praticada no Brasil a partir do colonialismo (exercendo-se sobre os escravos todos os poderes do direito de propriedade) foi perdendo a força e sentido nas novas relações sociais que se impunham externa e internamente, encarnadas nos valores do liberalismo. A abolição em 1888 ocorria, portanto, num contexto de luta política, mas também de transformações da economia política em que as velhas formas de servidão e as novas necessidades de exploração entravam em choque.

Alguns paralelos importantes para a análise da escravidão contemporânea também podem ser estabelecidos retomando a condição de trabalhadores livres e escravos que coexistiam pouco antes da abolição. Emília Viotti da Costa (2010a) retrata o trabalhador nacional livre em meados do século XIX, quando a escravidão perdurava a despeito da proibição do tráfico e os preços dos escravos subiam:

O trabalhador nacional vivia na periferia dos latifúndios, em pequenas propriedades, dedicando-se à economia de subsistência e só esporadicamente se dispunha a trabalhar nas fazendas. Muitos eram moradores em fazendas, onde, em troca do usufruto da terra, desempenhavam algumas tarefas que os proprietários não consideravam adequadas a seus escravos, por exemplo, as

derrubadas de matas, que, por oferecerem risco de vida, eram em geral entregues aos trabalhadores livres (COSTA, E, 2010a, p. 34, grifo nosso).

9 Conceito utilizado por Pietro Basso em seu livro Razze schiave e razze signore (“Raças escravas e raças

Esta passagem é esclarecedora, porque nos remete diretamente à expansão agropecuária na região amazônica na segunda metade do século XX, em que a mesma atividade de derrubada de matas passa a ser, ao contrário, uma típica atividade dos novos escravos. Os motivos, todavia, permanecem os mesmos: trabalhos que oferecem maior risco de vida são entregues à “mão de obra considerada mais descartável”.

No Brasil do final do século XX e início do XXI, que é o período por nós estudado, observa-se claramente a fusão desses dois tipos abstratos de trabalhadores: o escravo vendido, comprado, utilizado e cuidado enquanto propriedade; e o trabalhador nacional livre que respondia por seu próprio risco de vida, mas que tinha algum acesso à terra poupando-o de explorações excessivas no mundo do trabalho heterônomo.

O escravo de hoje no Brasil, diferentemente do período colonial e imperial, é aquele que desempenha as atividades que oferecem maiores riscos à vida, agravos à saúde física e mental e remunerações que mal permitem sua sobrevivência, pois se trata, agora, de uma população de “escravos livres”, cuja morte não representa prejuízo econômico para seu empregador. Por outro lado, processos de expropriação de terra (dos camponeses, populações tradicionais e pequenos produtores) e concentração fundiária também contribuíram para a fusão destas duas figuras, eliminando o poder de resistência à exploração representado pelo acesso à terra e possibilidade de produção para subsistência.

Os racismos e estigmas também são sobrepostos e recriados, de forma que nas últimas décadas, quando ouvimos relatos sobre fazendeiros que afirmam que “direito de maranhense é levar um tiro”10, no estudo da peonagem11 por exemplo, podemos perceber que muitas discriminações sofridas pelos nordestinos em razão de sua origem combinam de forma velada dominações de raça e de classe. A “ralé brasileira”, já presente na obra de Florestan Fernandes e estudada por Jessé Souza, origina-se da reunião destas diferentes populações já produzidas enquanto escórias da humanidade: a ralé europeia de “preguiçosos e subversivos”12 combinada com a ralé das populações ameríndias e africanas consideradas “primitivas”.

10 Aprisionados por promessas: a escravidão contemporânea no campo brasileiro (documentário). Brasil: Centro

pela Justiça e o Direito Internacional (CEJIL); Comissão Pastoral da Terra (CPT); Witness, 2006. Disponível em: http://escravonempensar.org.br/biblioteca/aprisionados-por-promessas/ (acesso em 18/04/2017).

11 A peonagem em Mato Grosso, como detalharemos um pouco mais no próximo capítulo, compreendeu

predominantemente trabalhadores nordestinos migrantes explorados em áreas de expansão da fronteira agropecuária.

12 Sobre os conflitos entre colonos e fazendeiros, Emília Viotti da Costa (2010, p. 35) expõe: “Queixavam-se de

que eram tratados como escravos, forçados a comprar mantimentos no armazém da fazenda onde tudo era mais caro, que não recebiam o que lhes era devido, que as contas eram fraudadas e que os fazendeiros lhes entregavam os cafezais em formação - os quais ainda não produziam ou cuja produção ainda era pequena -,

No contexto atual em que tantas escravidões, exclusões sociais e discriminações se renovam dando origem a neocolonialismos e neorracismos de diversos matizes e complexidades, a força da categoria “trabalho escravo” no Brasil é reveladora. Considerando que o racismo enquanto sistema de dominação moderno classifica como populações escravas (“raças escravas”, segundo Basso, 2000) os não-brancos, não-proprietários e não-homens, observamos que no Brasil aspectos estritamente raciais e de gênero permanecem à margem no debate sobre escravismo. Mulheres cis e transgênero ainda pouco aparecem nas estatísticas de “trabalho análogo ao de escravo”13. Muitas vezes, as atividades remuneradas que exercem (e nas quais são exploradas e escravizadas) mal são reconhecidas como “trabalho”. Além disso, as discriminações raciais contra populações não-brancas (con)fundem-se com as discriminações de classe, criando uma imprecisão compreensiva que, perversamente, viola- nos política e socialmente e afirma ideologicamente o ideário falacioso do Brasil como democracia racial.

Portanto, se no Brasil colônia a escravidão se fundamentava numa desigualdade jurídica, após 1888, com a universalização do status de sujeito de direito em nosso ordenamento jurídico, a escravidão continuará sendo uma questão de desigualdade. Uma desigualdade que, agora, é realizada contra o direito, mas também através dele, no bojo das novas dinâmicas entre formas de exploração e estruturas do Estado capitalista.

1.2. Trabalho livre e trabalho escravo

Esta pesquisa parte da premissa de que a dicotomia trabalho livre/trabalho escravo não se sustenta em termos absolutos, pois toda escravização tem um componente de “negociação” e de escolha do menor dos males (STEINFELD, 2001), assim como todo trabalho inserido no livre mercado está, no mínimo, balizado pela pressão elementar da busca por sobrevivência de uma classe que vive do trabalho e que raramente labora nas condições que deseja.

Se a relação entre trabalho livre e trabalho escravo não é a de duas categorias estanques e opostas, mas a de dois polos de um continuum que comporta vastas gradações, o que é chamado de “trabalho livre” ou de “trabalho escravo” atualmente é estabelecido por lei. reservando para seus escravos os cafezais mais produtivos. Os fazendeiros, por outro lado, acusavam os colonos de não respeitarem os termos do contrato, de serem preguiçosos e desordeiros - a ralé da Europa”.

13 Porém, como veremos, aparecem nos dados de tráfico de pessoas, daí a importância de integração dessas bases