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Ser e não ser livre : a morfologia do trabalho escravo contemporâneo em Mato Grosso

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(1)

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

GISELLE SAKAMOTO SOUZA VIANNA

SER E NÃO SER LIVRE: A MORFOLOGIA DO

TRABALHO ESCRAVO CONTEMPORÂNEO EM MATO

GROSSO

CAMPINAS 2019

(2)

Ser e não ser livre: a morfologia do trabalho escravo

contemporâneo em Mato Grosso

Tese apresentada ao Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas como parte dos requisitos exigidos para obtenção do título de Doutora em Sociologia.

Orientador: Prof. Dr. Sávio Machado Cavalcante

ESTE EXEMPLAR CORRESPONDE À

VERSÃO FINAL DA TESE

DEFENDIDA POR GISELLE

SAKAMOTO SOUZA VIANNA, E ORIENTADA PELO PROF. DR. SÁVIO MACHADO CAVALCANTE.

CAMPINAS 2019

(3)

Paulo Roberto de Oliveira - CRB 8/6272

Vianna, Giselle Sakamoto Souza,

V655s ViaSer e não ser livre : a morfologia do trabalho escravo contemporâneo em Mato Grosso / Giselle Sakamoto Souza Vianna. – Campinas, SP : [s.n.], 2019.

ViaOrientador: Sávio Machado Cavalcante.

ViaTese (doutorado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas.

Via1. Escravidão. 2. Trabalho escravo - Brasil. 3. Trabalho - Mato Grosso. 4. Trabalho escravo - Mato Grosso. I. Cavalcante, Sávio Machado, 1982-. II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. III. Título.

Informações para Biblioteca Digital

Título em outro idioma: To be and not to be free : the morphology of contemporary slavery

in Mato Grosso - Brazil

Palavras-chave em inglês:

Slavery

Slave labor - Brazil Labor - Mato Grosso Slave labor - Mato Grosso

Área de concentração: Sociologia Titulação: Doutora em Sociologia Banca examinadora:

Sávio Machado Cavalcante [Orientador] Bárbara Geraldo de Castro

Ricardo Luiz Coltro Antunes Marco Aurélio Silva de Santana Ricardo Rezende Figueira

Data de defesa: 29-03-2019

Programa de Pós-Graduação: Sociologia

Identificação e informações acadêmicas do(a) aluno(a)

- ORCID do autor: https://orcid.org/0000-0003-2479-4039 - Currículo Lattes do autor: http://lattes.cnpq.br/8638076109523781

(4)

INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

A Comissão Julgadora dos trabalhos de Defesa de Tese de Doutorado, composta pelos Professores Doutores a seguir descritos, em sessão pública realizada em 29 de março de 2019, considerou a candidata Giselle Sakamoto Souza Vianna aprovada.

Prof. Dr. Sávio Machado Cavalcante (IFCH - orientador) Profª. Drª Bárbara Geraldo de Castro (IFCH)

Profº. Dr. Ricardo Luiz Coltro Antunes (IFCH) Profº. Dr. Marco Aurélio Silva de Santana (UFRJ) Profº. Dr. Ricardo Rezende Figueira (UFRJ)

A Ata da Defesa, assinada pelos membros da Comissão Examinadora, consta no processo de vida acadêmica do aluno.

(5)

À minha irmã Candice, aos meus pais Midory e Bruno e a todas as pessoas que tecem a igualdade

(6)

Agradeço a todos que contribuíram para que esta pesquisa se concretizasse e que fizeram dela, acima de tudo, uma experiência encantadora de vida.

A todas as pessoas entrevistadas, que compartilharam comigo seu conhecimento, seu tempo, sua história. O encontro dos melhores caminhos na pesquisa sempre nasceu do encontro com as pessoas.

A meu querido orientador Sávio Cavalcante, que tanto me estimulou no desenvolvimento deste trabalho, animando-me com seu apoio, inspirando-me com suas inteligentes questões e ajudando-me com sua grande clareza. Sem sua admirável dedicação e companheirismo na reta final esta tese não teria os mesmos resultados.

Ao Ministério do Trabalho, onde tive o prazer de trabalhar por 10 anos em nome de algo em que acredito. Agradeço, especialmente, pela concessão da licença que me permitiu concluir esta pesquisa.

Ao querido professor Fernando Lourenço, que me orientou nos primeiros anos do doutorado, por todas as valiosas contribuições, incentivo e carinho. Foi através de suas aulas inspiradoras, sua confiança e seu olhar atento que descobri, fora e dentro de mim, o universo transformador da história oral.

Ao querido professor Márcio Naves, que me abriu o horizonte da vida acadêmica através de sua obra e dedicação. Foram os aprendizados durante sua orientação no programa de mestrado que permitiram, anos depois, que eu enxergasse no dia a dia da auditoria fiscal do trabalho, os problemas e hipóteses que deram início a este trabalho.

Ao querido professor Fabio Perocco, que me acolheu com tanto zelo na Università Ca’ Foscari e muito me ensinou e emocionou com suas aulas de Sociologia da Desigualdade.

Aos professores Bárbara Geraldo de Castro, Ricardo Luiz Coltro Antunes, Marco Aurélio Silva de Santana e Ricardo Rezende Figueira, pela dedicação com que leram esta tese e pelas valiosas contribuições e reflexões que me ofereceram durante a defesa.

A todas as instituições parceiras nesta pesquisa e no enfrentamento do trabalho escravo, em especial à Casa do Migrante – Cuiabá, Projeto Ação Integrada, Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais do Trabalho, Comissão Pastoral da Terra, Centro de Defesa da Vida e dos Direitos Humanos, Centro Burnier Fé e Justiça, Ministério Público, Secretaria de Segurança Pública de Mato Grosso e Missão Paz.

(7)

Mariana Faiad Alves, Antônio Rosa, Mônica Barros e aos professores Suely Kofes, Cesar Vaz de Carvalho, Vitale Joanoni Neto, Wanderlei Pignati, Luís Leão, Walter Zanin, Nico Pizzolato, pela generosidade com que me auxiliaram na trajetória do doutorado.

Aos meus amigos auditores-fiscais do trabalho, que fortalecem em mim a coragem de lutar por justiça social independentemente das circunstâncias. Em especial, agradeço a Valdiney Arruda e Amarildo Borges, que, além de me inspirarem com seu exemplo, apoiaram minha pesquisa desde o início. À Larissa Wanderley dos Santos Moreira, que tanto me ensinou e segue ensinando.

À UNICAMP, seus professores e funcionários, que forneceram as condições e estrutura para a realização deste trabalho.

A todos os meus amigos, que compartilharam comigo a alegria e os desafios destes anos transformadores de grande responsabilidade, mas de aprendizados de ação e leveza.

Às parcerias artísticas que me permitiram achar também palavras, melodia e harmonia para o “sentimento do mundo” que acompanha e transcende uma tese como esta. Em especial, agradeço aos meus queridos amigos Ana Moori, Wellington Souza, Sulaiman Damazio, Eduardo Lacerda, Cibely Zenari Guadalupe, Tâmis Parron, Carlos Lopes e Rafael Castelhano. À música de Antonio Vivaldi.

À minha família, origem de todo o amor que está nestas páginas. Agradeço de coração.

(8)

“Não se trata de ilusão, queixa ou lamento, Trata-se de substituir o lado pelo centro. O que é da pedra também pode ser do ar. O que é da caveira pertence ao corpo: Não se trata de ser ou não ser, Trata-se de ser e não ser”.

(Murilo Mendes, Pós-Poema, do livro Poesia Liberdade)

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A presente tese é um estudo das transformações na morfologia do trabalho escravo contemporâneo em Mato Grosso no último quartel do século XX e início do XXI, no contexto da transição da modernização conservadora da agropecuária para o agronegócio consolidado das últimas décadas. Busco uma compreensão das especificidades do fenômeno, apontando as continuidades e descontinuidades em relação à escravidão do período colonial. O ponto de partida da pesquisa é a identificação das novas formas de coerção impostas aos trabalhadores no contexto da universalização do status de sujeito de direito no Brasil pós-1888. Com base na premissa de que

trabalho livre e trabalho escravo não são formas opostas e que, pelo contrário, a nova escravização utiliza-se dos mesmos mecanismos empregados no trabalho assalariado não escravo, a pesquisa identifica o núcleo do trabalho escravo contemporâneo no amálgama entre vulnerabilidade social e liberdade formal, que é mobilizado para explorar e degradar os trabalhadores a condições que atentam contra sua vida e dignidade.

O estudo desenvolve-se a partir de pesquisa de campo e análise documental, combinando análise quantitativa (construção de base de dados) e qualitativa nos relatórios de inspeções de trabalho escravo ocorridas em Mato Grosso entre 1995 e 2013. A análise combinada dos dados e das articulações teóricas levou-nos a constatar que, com a formação do mercado de trabalho, houve a substituição de práticas como o recrutamento forçado e a discriminação de direito por novas práticas de recrutamento por promessas enganosas e de discriminações de fato (com a permanência de racismos). Além disso, dentro do próprio período estudado foi possível observar algumas transformações importantes, como o exacerbamento de mecanismos de “exploração por interpelação” e adoecimento nas relações de produção. Enquanto acirra a violência física nas disputas pela terra (cada vez mais escassa), observa-se o declínio dos assassinatos de trabalhadores rurais (frequentes na região até a década de 1990) e a emergência de novas formas de controle sobre a força de trabalho (cada vez mais abundante e descartável).

Este novo cenário, aliado às transformações econômicas, inaugura novas formas de atentado contra a vida humana (deixar morrer no lugar de matar), que se revelam mais invisíveis porque biológicas, químicas, psíquicas: biopolíticas.

(10)

The present thesis addresses the transformations in the morphology of contemporary coerced labor in the state of Mato Grosso (Brazil) in the transition from the 20th to the 21st century. It encompasses the conservative modernization of agriculture to the consolidation of agribusiness in the recent decades. The objective of the research is understanding the specificities of the phenomenon, tracing back continuities and discontinuities to colonial slavery. It departs from the identification of new forms of coercion imposed on workers in the context of the universalization of the “subject in law” in 1888, with slavery emancipation in Brazil. Based on the premise that free labor and coerced labor are not opposed forms but, on the contrary, that new forms of slavery employ the same mechanisms of free labor markets, the research identifies the core of contemporary coerced labor in the combination of social vulnerability and formal liberty. This complex is mobilized in order to exploit and degrade workers to conditions which attempt against their lives and dignity.

The study builds on field and documental research. It combines qualitative analysis of coerced labor inspections reports in Mato Grosso from 1995 to 2013 with quantitative analysis, by developing an extensive database. The joint analysis of both data and theoretical frameworks led us to the realization that, with the establishment of labor market, practices such as forced recruitment and rights discrimination were replaced by new recruitment practices with false promises and de facto discrimination, with the persistence of racism.

Moreover, it was possible to observe within the timeframe of the study some important transformation, as the expansion of mechanisms of “exploitation by interpellation” and harms to laborers’ health. While physical violence increases in land disputes (due to growing land scarcity), we note a decline in the assassination rate of rural workers (which was high in the region until the 1990s) and the emergence of other types of control over the workforce (as workers become increasingly plentiful and disposable).

This new setting, coupled with transformations of the new economic development model, inaugurates new forms of attack against human life, which are more invisible due to their biological, chemical and psychical nature. They are fundamentally biopolitical.

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TABELAS

Tabela 1 - Transformações da escravidão

Tabela 2 - Participação do Brasil no Comércio Mundial de Alimentos

Tabela 3 - Presença dos elementos caracterizadores nos casos de trabalho escravo em MT

Tabela 4 - Frequência das modalidades de trabalho escravo nos casos constatados pela fiscalização – MT (1995-2013)

Tabela 5 – Frequência – Trabalho forçado em Mato Grosso (1995-2013) Tabela 6 - Totais e Frequência - Trabalho forçado x Menção trabalho forçado Tabela 7 - Brasil – Ocupação formal e informal

Tabela 8 – Origem da população de outras UF em Mato Grosso (2001-2009) Tabela 9 - Número de casos constatados de trabalho escravo por ano – MT

Tabela 10 - Número de vítimas de violência grave em conflitos no campo MT – por tipologia de vítima

Tabela 11 - Vítimas de violência grave em conflitos no campo MT – unificações Tabela 12 - Matriz produtiva e agravos à saúde dos trabalhadores MT

Tabela 13 - Migração standard x migração internacional Tabela 14 – Tráfico de pessoas e trabalho escravo

GRÁFICOS

Gráfico 1- Uso da terra em Mato Grosso

Gráfico 2 – Consumo de agrotóxicos em Mato Grosso

Gráfico 3 - Funções desempenhadas pelos trabalhadores resgatados de trabalho escravo – MT (1995-2013)

(12)

Gráfico 7 - Áreas para preparo e consumo de alimentos

Gráfico 8 - Trabalho forçado e menção a termo “trabalho forçado” – variação no tempo Gráfico 9 - Vigilância armada – variação no tempo

Gráfico 10 - Trabalho forçado

Gráfico 11 - Modalidades de trabalho escravo – variação no tempo Gráfico 12 – Formalização dos vínculos de trabalho

Gráfico 13 - Formas pactuadas de remuneração Gráfico 14 - Formas de recrutamento

Gráfico 15 - Recrutamento forçado x recrutamento contratual Gráfico 16 - População de Mato Grosso (1940-2010)

Gráfico 17 - População nascida em outra UF na composição da população de MT (1996 e 2001- 2009)

Gráfico 18 - Trabalhadores submetidos a trabalho escravo no Brasil com residência em Mato Grosso

Gráfico 19 – Trabalhadores escravizados em MT x trabalhadores escravizados no Brasil oriundos de MT

Gráfico 20 – Violência física ou grave ameaça – variação no tempo

Gráfico 21 - Conflitos no campo em Mato Grosso – variação no tempo (1995-2013)

Gráfico 22 - Número de vítimas de violência grave em conflitos no campo MT – variação no tempo Gráfico 23 - Vítimas de violência grave no campo MT – envolvidos diretos

Gráfico 24 - Vítimas de violência grave no campo MT – agentes de defesa de direitos Gráfico 25 - Quantidade de estabelecimentos rurais por tipo – MT

Gráfico 26 - Área ocupada por tipo de estabelecimento rural – MT Gráfico 27 – Bem jurídico violado

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Gráfico 29 – Vítimas de tráfico de pessoas por gênero – MT (2012-2018) Gráfico 30 – Ocorrências de tráfico de pessoas – MT (2012-2018) Gráfico 31 – Idade das vítimas de tráfico de pessoas – MT (2012-2018)

Gráfico 32 – Contratação direta ou indireta nos casos de trabalho escravo – MT (1995-2013)

FIGURAS

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AFESIP – Agir pour les Femmes en Situation Précaire AFT – Auditor Fiscal do Trabalho

AI - Auto(s) de infração ART – Artigo

CDVDH - Centro de Defesa da Vida e de Direitos Humanos CEJIL - Centro pela Justiça e o Direito Internacional

CETRAP – Comitê Estadual de Prevenção e Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas do Mato Grosso CID – Classificação Internacional de Doenças

CLT – Consolidação das Leis Trabalhistas CNI – Confederação Nacional da Indústria CNJ – Conselho Nacional de Justiça (CNJ)

COETRAE – Comissão Estadual para Erradicação do Trabalho Escravo CONATRAE – Comissão Nacional para Erradicação do Trabalho Escravo CPT – Comissão Pastoral Terra

CTPS – Carteira de Trabalho e da Previdência Social DETRAE – Divisão de Erradicação de Trabalho Escravo EMBRAPA – Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária EPI – Equipamento de Proteção Individual

GEFM – Grupo Especial de Fiscalização Móvel GERTRAF –

HA – Hectare(s)

IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística ILO – International Labor Organization

INCRA – Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária KM – Quilômetro(s)

LER – Lesões por esforços repetitivos

LGBT – Lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais ou transgêneros MAPA – Ministério da Agricultura

MATOPIBA – Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia MP – Ministério Público

MPF – Ministério Público Federal MPT – Ministério Público do Trabalho

MST – Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra MT – Mato Grosso

MTE – Ministério do Trabalho e Emprego NR – Norma Regulamentadora

OIT – Organização Internacional do Trabalho ONG – Organização não governamental

OXFAM – Oxford Committee for Famine Relief PEC – Projeto de Emenda Constitucional

PNAD – Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio PNPS – Política Nacional de Participação Social

SDH – Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República SEPLAN - Secretaria de Estado de Planejamento de Mato Grosso

(15)

SNCR – Sistema Nacional de Cadastro Rural STF – Supremo Tribunal Federal

STJ – Superior Tribunal de Justiça

SUDAM – Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia TE – Trabalho escravo

TST – Tribunal Superior do Trabalho UF – Unidade Federativa

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Introdução... 18

Nota Metodológica ... 24

Capítulo 1: A escravização do sujeito livre ... 34

1.1. Escravidão como questão de desigualdade e exploração ... 34

1.2. Trabalho livre e trabalho escravo ... 38

1.2.1. Liberdade e servidão na formação do mercado de trabalho assalariado ... 43

1.2.2. Escravidão e liberdade em tempos de universalização do sujeito de direito ... 47

1.2.3. Biopolítica e a nova economia das desigualdades ... 51

1.3. Liberdade de contratação e vulnerabilidade social: os pilares da escravização neoliberal ... 56

1.3.1. A liberdade de contratar ... 60

1.3.2. A vulnerabilidade social ... 64

1.3.3. Pilares do trabalho escravo contemporâneo: algumas hipóteses ... 70

1.4. O trabalho escravo no ordenamento jurídico brasileiro ... 75

1.4.1. Norma jurídica, relação jurídica e relação social ... 76

1.4.2. A luta por reconhecimento da existência de trabalho escravo no Brasil e a construção de políticas voltadas à sua erradicação ... 79

1.4.3. Disputas em torno do conceito jurídico de “trabalho análogo ao de escravo” no Brasil ... 85

Capítulo 2: A morfologia do trabalho escravo contemporâneo em Mato Grosso ... 95

2.1. Da nova ocupação ao agronegócio: transformações de um território em conflito ... 98

2.1.1. A reocupação recente de Mato Grosso ... 98

2.1.2. Transformações na economia de Mato Grosso e contexto global ... 111

2.1.3. As novas formas de escravização em Mato Grosso na virada para o século XXI ... 126

2.2. Os dados sobre trabalho escravo em Mato Grosso entre o fim do século XX e o início do século XXI... 130

2.2.1. Elementos caracterizadores do trabalho escravo contemporâneo e os dados das fiscalizações em Mato Grosso ... 132

2.2.1.1. O trabalho em condições degradantes ... 137

2.2.1.1.1. Água potável ... 142

2.2.1.1.2. Alojamento e moradia ... 143

2.2.1.1.3. Instalações sanitárias ... 144

2.2.1.1.4. Locais para preparo e consumo de alimentos ... 145

2.2.1.2. A servidão por dívida ... 146

2.2.1.3. O trabalho forçado revisitado ... 153

2.2.1.3.1. A vigilância armada, o isolamento geográfico e o cerceamento da liberdade dos trabalhadores ... 160

2.2.1.4. A jornada exaustiva ... 166

2.2.1.5. Tendências e composições das modalidades de trabalho escravo ... 173

2.2.2. Outras nuances da morfologia do trabalho escravo ... 176

2.2.2.1. Informalidade ... 176

2.2.2.2. Formas de remuneração e mais-valia ... 179

2.2.2.3. Formas de recrutamento ... 188

(17)

Capítulo 3: Novas violências e novas sobrevivências ... 224

3.1. Exaustão e degradação da vida ... 226

3.1.1. Trabalho escravo e bem jurídico tutelado ... 228

3.1.2. Vulneráveis e descartáveis: os trabalhadores e os novos padrões de adoecimento ... 236

3.1.3. Saúde, sofrimento e trabalho escravo: lutas em torno da vida ... 241

3.1.4. Interpelação e exploração: os limites negociados do corpo ... 249

3.2. Desigualdade e distância social... 250

3.2.1. Racismo e naturalização da indignidade ... 251

3.2.2. Discriminação nas relações de trabalho ... 258

3.2.2.1. Migração e discriminação ... 258

3.2.2.2. A discriminação entre sujeitos juridicamente iguais ... 263

3.2.3. A invisibilização dos explorados: as vítimas fora dos dados oficiais ... 271

3.2.3.1. Onde estão as mulheres escravizadas? ... 274

3.2.4. Subcontratação, intermediação e a erosão de responsabilidades patronais ... 283

3.3. Ser e não ser livre: dinâmicas de mobilização e imobilização dos trabalhadores ... 290

3.3.1. Ambivalências do sujeito livre ... 291

3.3.2. Livre para vir e para ir ... 295

3.3.3. Do fugir ao “não aguentar” ... 300

3.3.4. Liberdade, perigo e medo: sobrevivência calculada ... 307

3.4. Para além da liberdade formal ... 310

Conclusões... 317

(18)

INTRODUÇÃO

O estudo da realidade brasileira tem integrado constantemente o debate internacional sobre trabalho escravo contemporâneo. Nas décadas de 1970 a 1990, importantes denúncias e pesquisas sobre a peonagem e os mecanismos de servidão por dívida no Brasil, notadamente nas áreas de expansão agropecuária e desmatamento da Amazônia, não só tiveram o mérito de compreender a realidade local, mas também puderam lançar luz para a compreensão do trabalho escravo contemporâneo na economia global (ESTERCI, 2008; FIGUEIRA, 2004; MARTINS, 2009).

O debate iniciado naquela época, para o que nos interessa nesta pesquisa, foi de suma relevância por dois motivos principais. Primeiro, porque ajudou a consolidar o entendimento de que a servidão por dívida, apesar de apresentar elementos de coerção não necessariamente física, constitui modalidade de trabalho escravo. Em segundo lugar, porque demonstrou que, no Brasil do fim do século XX, aquela era a principal forma de escravização de trabalhadores, tanto que passou a integrar de forma taxativa a própria legislação brasileira sobre a matéria a partir de 2003.

Além do debate acerca dos mecanismos contemporâneos de escravização, a experiência brasileira também tem tido destaque nos debates acerca da conceituação legal do trabalho escravo contemporâneo, recebendo atenção especial por parte da Organização Internacional do Trabalho (OIT), cuja atuação no combate do “trabalho forçado” inclui recomendações para que os países, além de cumprirem os tratados sobre a matéria, também ampliem suas legislações domésticas, de forma a contemplar as facetas locais desse fenômeno complexo.

O objetivo desta pesquisa é atualizar, de forma articulada, esses dois debates: o debate sobre a morfologia da escravidão contemporânea no Brasil e aquele em torno da legislação brasileira que instrumentaliza o combate ao “trabalho análogo ao de escravo”.

Partimos da seguinte premissa: se num extremo temos as formas de exploração do trabalho consideradas indiscutivelmente como escravidão nas sociedades capitalistas (trabalho ao qual se é constrangido contra a vontade, mediante coação direta e cerceamento da liberdade de locomoção) e, do outro lado, temos as formas de exploração do trabalho socialmente aceitas pelo capitalismo (em que a extração da mais-valia é realizada dentro de certos limites e com a garantia de direitos mínimos estabelecidos por lutas históricas), o

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terreno entre essas duas realidades, atravessado por grandes disputas políticas de sentido e de institucionalização, é precisamente o das formas de exploração do trabalho que se constituem como escravização (por atentarem contra a liberdade, integridade física e/ou dignidade humanas) apesar de se utilizarem de práticas típicas do mercado de trabalho livre, como a liberdade de locomoção, o consentimento, o contrato.

De fato, apesar da reconhecida proliferação do trabalho escravo por contrato – Kevin Bales (2004) o retrata como a modalidade que mais cresce em todo o globo – e dos longos debates sobre o trabalho escravo contemporâneo como fenômeno inscrito no modo de produção capitalista, pouco ainda se fez no sentido de articular essas duas análises para que se possa discutir a especificidade capitalista da forma contratual e suas implicações para a compreensão do fenômeno do trabalho escravo contemporâneo.

Para desenvolver o tema, optei por estudar o trabalho escravo em Mato Grosso, estado em que atuei como auditora-fiscal do trabalho de 2007 a 2015 e que sempre se manteve entre as regiões com maior incidência de trabalho escravo no Brasil das últimas décadas.

Nossa hipótese central é que a escravidão contemporânea em Mato Grosso vale-se de práticas e instrumentos típicos do mercado de trabalho capitalista, alicerçando-se na combinação de dois elementos principais: a liberdade formal e a vulnerabilidade social. Nas últimas décadas, o trabalho escravo estaria progressivamente abandonando tecnologias de imobilização violenta da força de trabalho, passando a caracterizar-se por novas tecnologias fundadas na mobilidade dos trabalhadores e em coerções sistêmicas. Neste sentido, busco captar as transformações na morfologia do trabalho escravo entre a década de 1990 e o início do presente século em território mato-grossense.

A metodologia utilizada na pesquisa consistiu na combinação de pesquisa quantitativa e qualitativa em diversas fontes documentais, bem como pesquisa de campo, incluindo entrevistas não diretivas com diversos atores envolvidos no contexto da escravidão contemporânea e seu enfrentamento.

Os principais documentos utilizados foram: 1) Dados de 1994-2017 veiculados nos Cadernos de Conflito no Campo da Comissão Pastoral da Terra (notadamente os dados sobre conflitos no campo, assassinatos, tentativas de assassinato e ameaças de morte); 2) Relatórios da Fiscalização de combate ao trabalho escravo de todos os casos constatados pelo Ministério do Trabalho em Mato Grosso entre 1995 e 2013, a partir dos quais foi construída uma base de dados para análise de diversas variáveis (forma de arregimentação de trabalhadores, informalidade, contratação direta x indireta, violência física contra

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trabalhadores, caracterização do “trabalho escravo” constatado pelo grupo de fiscalização, dentre outras).

As entrevistas foram realizadas entre 2013 e 2019, abrangendo: 1) trabalhadores que haviam vivenciado a escravidão contemporânea; 2) auditores-fiscais do trabalho; 3) agentes de entidades da sociedade civil comprometidas com a defesa dos trabalhadores; 4) autoridades públicas ligadas ao enfrentamento do tráfico de pessoas e trabalho escravo; 5) profissionais de entidades internacionais ligadas ao enfrentamento do trabalho escravo e temas correlatos.

A pesquisa de campo percorreu regiões de Mato Grosso, bem como alguns outros estados brasileiros (Bahia, Maranhão, Piauí, Tocantins, Pará, São Paulo) escolhidos por serem regiões de recrutamento de mão de obra para o Mato Grosso ou por apresentarem experiências complementares à pesquisa. Além disso, envolveu entrevistas e visitas a comunidades e entidades estrangeiras, que contribuíram para a compreensão do contexto global e das singularidades regionais do fenômeno estudado.

Assim, lastreando-se na pesquisa multimétodo, o presente estudo busca analisar a nova morfologia do trabalho escravo em Mato Grosso na transição do século XX para o XXI, no contexto da recente ocupação do estado e construção de uma nova ordem inscrita na economia global: da expropriação de suas populações, devastação do meio-ambiente e conversão da vegetação natural em pastos, até, num segundo momento, a consolidação do agronegócio.

Esta transição inscreve-se num processo global de reestruturação produtiva que, nos setores da agropecuária (que dão a tônica da economia mato-grossense), implicaram em transformações na organização da produção, nas relações sociais de produção, nas tecnologias de exploração dos meios de produção, na conformação das cadeias produtivas e na composição de força de seus componentes, inserindo-se no contexto da degradação flexível do trabalho.

Com o aporte dos estudos sobre biopolítica (FOUCAULT, 2005; AGAMBEN, 2007) e sobre a liberdade formal do sujeito de direito, analisamos a nova morfologia do trabalho escravo a partir dos relatórios da fiscalização do trabalho, entrevistas e experiências de campo. Assim, busca-se compreender como se transmutam as formas de escravizar a força de trabalho em tempos de acumulação flexível (ANTUNES, 2013, p. 21), caracterizados pela terceirização, informalidade, gestão pela descartabilidade, intensidade e extensão das jornadas de trabalho e por novas formas de exploração através de consentimentos manipulatórios (o

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que chamei de “exploração por interpelação”), dentre outras facetas da tendência de precarização geral do trabalho.

A partir do estudo da bibliografia, bem como de pesquisa documental e história oral, buscar-se-á discutir a noção de “trabalho análogo ao de escravo” – que constitui o conceito jurídico basilar do combate ao trabalho escravo contemporâneo no Brasil – compreendendo como o direito capitalista, ao universalizar o status de sujeito de direito a todos os seres humanos, torna-se mediador de novas formas de escravidão.

Partirei das continuidades e descontinuidades entre a chamada “escravidão tradicional”1 e a “escravidão contemporânea” para analisar em profundidade o que, segundo a hipótese desta pesquisa, constitui a fundamental especificidade do trabalho escravo pós-abolição oficial: com a separação entre os trabalhadores e sua força de trabalho e com a simultânea construção da liberdade formal capitalista, os trabalhadores de hoje são simultaneamente objetos e sujeitos. Eles são a força de trabalho (objeto/mercadoria) e também a parte contratual (sujeito de direito) que a vende. E é neste sentido que pretendo estudar as formas contemporâneas de escravizar.

O primeiro capítulo da tese trata da relação entre direito moderno e modo de produção capitalista, entre a forma jurídica e a mercadoria. A partir da obra de Pachukanis, discuto a emergência histórica da figura do sujeito de direito, o contratualismo e a liberdade formal, para tentar compreender como o direito capitalista, ao universalizar o status de sujeito de direito a todos os seres humanos, possibilita novos mecanismos de escravização. Tomando por base a experiência brasileira, adentro a temática da coerção e da liberdade nas relações sociais de produção mediadas pelo direito capitalista, buscando apontar alguns possíveis caminhos que vêm sendo abertos para se repensar o trabalho compulsório. Termino com uma breve exposição sobre o trabalho escravo no ordenamento jurídico brasileiro, que servirá de base para os estudos dos capítulos seguintes.

O segundo capítulo analisa as novas nuances do trabalho escravo em Mato Grosso na transição do século XX para o XXI. Nele apresento os principais resultados da pesquisa quantitativa, que consistiu na construção de uma base de dados a partir de informações coletadas em 180 relatórios de inspeção do trabalho que constataram situação de trabalho

1 Apesar da produtividade dos conceitos de “escravidão tradicional” e “escravidão contemporânea” utilizados

por muitos autores que estudam as singularidades do trabalho contemporâneo atual, é importante lembrar que o que se chama de “escravidão tradicional” é muitas vezes um universo de relações sociais muito mais vasto e heterogêneo, como mostrado pelos estudos historiográficos. A escravização de populações indígenas e mesmo a escravização africana anterior ao século XIX são alguns pontos fundamentais que não podem ser dissolvidos nestas categorias mais amplas.

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escravo em Mato Grosso. A análise dos dados é realizada sobre o pano de fundo das transformações da economia e dinâmicas sociais na região e seu contexto global.

A terceira parte discute a centralidade da vida dos trabalhadores e da reprodução da força de trabalho para a compreensão da morfologia da escravidão na era do ser humano descartável. Para tanto, analisaremos temas como as doenças ocupacionais, acidentes de trabalho, violências e outros atentados à vida dos trabalhadores, com o fim de compreender as novas formas de exploração, controle e descarte dessas populações. Algumas palavras serão dedicadas também à problemática da invisibilização do fenômeno da escravidão contemporânea, através de um enfoque em que se interseccionam questões de raça, classe e gênero. Neste tópico serão também analisados os tipos de trabalho escravo que ainda permanecem à margem da política de erradicação construída no país, algumas possíveis razões desses limites e os desafios à sua visibilidade. Por fim, concluo o capítulo com uma discussão sobre liberdade e a escravidão a partir das narrativas de resistência/agência2 dos trabalhadores em situações de escravidão e de produção coletiva de novas realidades. Saltaremos do sofrimento individual para o sofrimento social e encerraremos retomando a centralidade da discussão sobre erosão e sedimentação de solidariedades como resposta aos desafios de nosso tempo.

Ao longo da pesquisa, buscamos responder às seguintes questões: 1) quais os principais mecanismos de escravização na contemporaneidade em Mato Grosso? 2) Quais as principais transformações na morfologia do trabalho escravo entre os anos 1970 (primeiras denúncias de escravidão de peões na abertura de pastos e canaviais), anos 1990 (primeiras ações fiscalizatórias no Brasil) e a década atual? 3) Como esses processos se inscrevem no contexto da economia global e regional e nas transformações mais amplas do mundo do trabalho? 4) O que está por trás das recentes disputas sobre o conceito jurídico do “trabalho análogo ao de escravo” na legislação brasileira?

2 A perda de força no conceito de “resistência” no debate sobre a escravidão colonial aplica-se também no

presente caso. Segundo Tiago de Melo Gomes, tal perda de força teria ocorrido na década de 1990 e: “Não que isso tenha implicado a ausência de reconhecimento do fato de que grupos dominantes tentaram à exaustão suprimir (ou ao menos ‘civilizar’) práticas culturais dos grupos subalternos. Mas significou uma tentativa de ver nesses setores dominados algo mais do que uma vontade inabalável de manter inalteradas suas práticas. Parecia simples demais, àquela altura, imaginar que tantas pessoas se dispusessem a correr riscos apenas em função de manter inalteradas práticas supostamente centenárias, uma visão que enfatizava em demasia a intencionalidade política dessas atitudes e reduzia a complexidade dos processos a uma dicotomia entre ação dominante e resistência subalterna. Naquele contexto, parecia essencial notar que as ações desses sujeitos sociais (muitos dos quais afro-brasileiros pertencentes às camadas mais pobres da população) incluíam também a negociação, a afirmação e mesmo a reforma de suas práticas, caso se percebesse a possibilidade de serem menos incomodados pela polícia. Significou também notar que mesmo as ações dos grupos subalternos estão longe de ter sentidos únicos, e podem indicar modos muito distintos de compreensão no interior do mesmo grupo” (GOMES, T. 2016, p. 383-4).

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NOTA METODOLÓGICA

Esta tese amparou-se no emprego integrado de pesquisa documental e empírica, com destaque para a história oral. Neste tópico, exponho brevemente os problemas enfrentados durante a realização tanto da pesquisa documental quanto da pesquisa de campo, bem como as escolhas metodológicas assumidas ao longo dessas trajetórias.

A pesquisa enfoca a escravidão como parte integrante do modo de produção capitalista, mas objetiva compreender mais profundamente as especificidades das formas de escravizar que se configuram sob o capitalismo globalizado, bem como suas diferenciações em nível local.

Num contexto em que as determinações da economia política sobre a conceituação legal de "trabalho escravo" se fazem mais claras do que nunca e em que as argumentações tanto em prol da redução quanto da manutenção da amplitude deste conceito expresso no Código Penal exibem suas raízes nas lutas sociais, a história oral me pareceu um recurso extraordinário para a compreensão de como a tão debatida escravidão contemporânea tem sido percebida e vivenciada de fato pelos trabalhadores. E não só isso, as narrativas de diversos agentes contribuem também para o entendimento dos próprios mecanismos reais através dos quais as pessoas escravizam, são escravizadas, resistem à escravidão e lutam pela manutenção (muitas vezes silenciosa) ou pela exposição e erradicação do trabalho escravo.

Na realidade do encontro com os entrevistados, na realidade de minha participação e visitas realizadas em instituições atuantes no enfrentamento do trabalho escravo (pela prevenção, repressão e assistência às vítimas), na realidade de minha vivência nas operações do Grupo Especial de Fiscalização Móvel - GEFM3, na realidade dos casos concretos de escravização vivenciados e presenciados pelos entrevistados em seus diferentes papéis sociais: é no real, segundo Burawoy, que a teoria acadêmica e os saberes populares interagem para atualizar o conhecimento científico (BURAWOY, 2014, p. 48).

Esta pesquisa está inserida, portanto, no campo da sociologia reflexiva, uma vez que a ciência reflexiva

elege o diálogo como seu princípio definidor e a intersubjetividade entre participantes e observadores como sua premissa central. Isso une o que a ciência positiva separa: o participante e o observador, o conhecimento e o

3 O Grupo Especial de Fiscalização Móvel, criado em 1995 pelo Estado Brasileiro, consiste num grupo coordenado pela

auditoria fiscal do trabalho, que reúne auditores fiscais do trabalho, policiais e procuradores do trabalho e que realizam as operações de combate ao trabalho escravo.

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contexto social, a situação e sua posição no campo, a teoria popular e a acadêmica (BURAWOY, 2014, p. 63).

Metodologia na pesquisa documental

Os documentos analisados incluem relatórios de inspeção do trabalho da Auditoria Fiscal do Trabalho, dados da Comissão Pastoral da Terra, algumas peças judiciais referentes a casos de trabalho análogo a de escravo, documentos do Congresso Nacional relacionados a projetos de leis e emendas à constituição afetas à matéria, votos e discursos de congressistas, além de matérias de jornal que auxiliaram na composição do panorama histórico em que se insere o tema pesquisado.

Dentre todo material analisado, destaco os relatórios de inspeção do trabalho das operações de combate ao trabalho escravo realizadas por auditores-fiscais do trabalho no estado de Mato Grosso, que serão objeto de análise sistemática, representando um ponto fundamental desta pesquisa. Os relatórios aqui analisados compreendem a totalidade das operações de fiscalização de trabalho escravo em Mato Grosso desde a primeira operação em 1995 até o ano de 2013, conforme material disponibilizado pela Divisão de Erradicação do Trabalho Escravo (DETRAE) do extinto Ministério do Trabalho.

Num primeiro momento da pesquisa, dediquei-me a um contato preliminar com esse volumoso material, de modo a elaborar e testar e indicadores a serem utilizados na pesquisa quantitativa.

Dada a minha condição de ser auditora fiscal do trabalho e ter atuado em Mato Grosso por oito anos, inclusive no combate ao trabalho escravo, e já conhecer grande parte dos relatórios dos anos recentes, dediquei especial atenção à leitura dos relatórios mais antigos, com o objetivo de iniciar o estudo das transformações nas formas de escravizar e de fiscalizar ao longo dos anos.

Centrei os esforços iniciais na escolha, elaboração e reformulação das variáveis que vieram a compor a pesquisa quantitativa nos relatórios de fiscalização do GEFM. Ao todo, a análise quantitativa desse material compreendeu o desenvolvimento de 19 variáveis: a) atividade dos trabalhadores resgatados; b) forma de recrutamento; c) informalidade; d) terceirização, subcontratação e intermediação; e) fornecimento de água para consumo dos trabalhadores; f) locais para preparo e consumo de alimentos; g) instalações sanitárias; h)

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alojamento e moradia; i) modalidades de remuneração; j) trabalho forçado; k) condições degradantes de trabalho; l) jornadas exaustivas; m) servidão por dívida; n) vigilância armada; o) violência física ou grave ameaça contra trabalhadores; p) isolamento geográfico; q) menção do termo “forçado” na caraterização de trabalho escravo no relatório; r) menção do termo “degradante” na caracterização de trabalho escravo no relatório; s) bem jurídico violado. O processo de elaboração de cada uma dessas variáveis foi compilado na construção de um Livro de Códigos. Algumas outras variáveis inicialmente criadas acabaram sendo descartadas em razão de missing data e outras inconsistências, não tendo integrado o corpo analítico da tese.

No que concerne à identificação dos elementos caracterizadores do trabalho escravo em cada caso analisado ao longo do período selecionado – um dos principais objetivos da pesquisa com relatórios de inspeção –, o trabalho aqui desenvolvido apontou que, nesta etapa, trabalhar apenas com categorias jurídicas poderia resultar em sérias inconsistências. Isso por um motivo muito simples: os conceitos jurídicos são objetos de interpretação pelos operadores do direito, pelos doutrinadores encarregados da elaboração das teorias jurídicas. São objetos de interpretação e objetos de disputa, a qual se dá tanto na teoria quanto na jurisprudência. A heterogeneidade dos entendimentos, portanto, é uma característica deste, como de todo fazer jurídico. Alia-se à heterogeneidade das interpretações também a heterogeneidade dos próprios fatos e a complexidade e pluralidade dos mecanismos de escravização.

Cito um exemplo para tornar a discussão mais inteligível: relatórios de fiscalizações que relatam um mesmo tipo de ocorrência, a violência física sofrida por trabalhadores, tiveram conclusões distintas quanto aos elementos de caracterização da “condição análoga a de escravo”. Em alguns casos, a agressão física a trabalhadores ensejou o enquadramento da situação como “trabalho forçado”. Em outros casos, o mesmo tipo de ocorrência (violência física) foi enquadrado como “trabalho em condição degradante”. E, de fato, a violência física é um fator de coação e degradação, interagindo com outros elementos de modo a desempenhar mais um ou outro papel nas engrenagens da escravização.

A complexidade desses dados, longe de inviabilizar a pesquisa, apenas tornou-a mais rica e desafiadora. Assim, optei por trabalhar com indicadores “pré-jurídicos” ao lado dos conceitos jurídicos. Trata-se das situações fáticas elementares presentes nas ocorrências de trabalho escravo contemporâneo e que são interpretadas e agrupadas de maneiras diversas pelos agentes, conforme a análise das circunstâncias de cada caso: vigilância armada, violência física, retenção de salário, desconto salarial indevido referente a obrigações do

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próprio empregador (fornecimento de ferramentas de trabalho, equipamentos de proteção individual etc.), dívidas contraídas pelos trabalhadores previamente ao início dos trabalhos, dívidas contraídas durante o trabalho, condições da água fornecida para consumo dos trabalhadores, situação dos alojamentos, extensão da jornada, dentre outros.

Os conceitos jurídicos, contudo, não foram abandonados. Foi preciso afastá-los por um momento para construir indicadores mais fortes que auxiliassem na compreensão da morfologia do trabalho escravo contemporâneo e na sua transformação ao longo das últimas duas décadas. Por outro lado, somente com o entrelaçamento entre elementos pré-jurídicos e elementos jurídicos presentes nos relatórios de fiscalização é possível apreender um componente crucial de meu objeto de estudo: as diversas interpretações de leis e fatos e as construções teóricas que formaram, ao longo de anos, as conceituações atuais de trabalho em “condição análoga a de escravo”. A história do trabalho escravo contemporâneo no Brasil não é apenas a história dos fatos, mas é também a história das interpretações.

Concomitantemente ao processo descrito acima, dei início a uma pesquisa qualitativa nesses mesmos documentos (relatórios de fiscalizações realizadas em Mato Grosso pelo Grupo Especial de Fiscalização Móvel de 1995 a 2013). Assim, entremeadas às entrevistas que realizei durante a pesquisa e às análises quantitativas, figuram trechos de depoimentos, descrições e análises contidas nos próprios relatórios de inspeção, conferindo às categorias analisadas maior concretude, contextualização e complexidade. Para as citações dos relatórios foram criados códigos, assim como foram utilizados codinomes toda vez que o nome de algum dos envolvidos aparecia nos trechos selecionados.

As informações sobre violência no campo foram coletadas na publicação Conflitos no Campo Brasil, organizada anualmente pela Comissão Pastoral da Terra, e posteriormente rearranjadas para análise.

Por fim, outras fontes foram utilizadas, a exemplo de trechos de peças judiciais, matérias jornalísticas e documentos do Congresso Nacional, com o intuito de compor o debate sobre o conceito de trabalho escravo contemporâneo também a partir de seus elementos políticos e jurídicos.

Metodologia na pesquisa de campo

As narrativas de trabalhadores, auditores, lideranças sociais, autoridades públicas e da população envolvida no contexto em que o trabalho escravo contemporâneo se

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materializa no Mato Grosso trazem à luz o que Joanoni Neto chamou de "memórias subterrâneas", que se oporiam à memória oficial dominante (JOANONI NETO, 2013, p. 187). Em muitos momentos, as narrativas dos agentes funcionam como contranarrativa em relação ao discurso oficial; em outros, a exemplo da interpretação dos Relatórios de Inspeção, desnudam o próprio teor de documentos confeccionados nos limites de sua razão prática. Em outros ainda, apenas escancaram as contradições dos sujeitos, dos pesquisadores e do próprio objeto de investigação.

O mais fascinante é que a história oral opera algo mais sutil do que a complementação ou a contraposição: ela vira a história do avesso. É no avesso que se desnudam as complexidades da agência e resistência das pessoas, o peso real de estruturas, culturas e símbolos no universo de uma vida; é no avesso que se enxergam as costuras a partir das quais se descortinam novos significados.

Minha opção por entrevistas não diretivas, mais próximas da conversa, fundamentou-se principalmente na intenção de evitar que os discursos dos trabalhadores entrevistados fossem meras repetições de seus depoimentos à fiscalização, polícia e sistema de justiça. Uma vez que atuo como auditora fiscal do trabalho e muitos dos contatos que me abriram as portas para conversar com trabalhadores resgatados de trabalho escravo têm relação com minha atividade profissional, principalmente minha passagem de 3 anos pela coordenação de combate ao trabalho escravo da Superintendência Regional do Trabalho e Emprego em Mato Grosso (SRTE/MT), concluí que as entrevistas não poderiam de modo algum representar, para o trabalhador, mais uma "colheita de depoimento" por uma auditora fiscal do trabalho. Em muitos casos, inclusive, eu já teria acesso ao seu "Termo de Declarações" contido no Relatório de Inspeção e a maior contribuição da pesquisa era justamente o oposto: buscar outras palavras, as palavras que não couberam nos procedimentos administrativos e no discurso oficial.

A questão de eu representar uma dupla autoridade, pesquisadora e auditora, mereceu um cuidado constante no campo. A partir de minhas percepções sobre as entrevistas realizadas e de leituras em metodologia de pesquisa, tornei-me consciente também da oportunidade e responsabilidade de minha intervenção no campo como agente com atribuições relacionadas ao objeto de pesquisa e não apenas como entrevistadora adstrita a objetivos acadêmicos.

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A assimetria da escravidão e as formas de entrevistar

Num estudo cujo objeto - a escravidão - nada mais é do que a assimetria extrema das relações sociais e seus componentes políticos, morais e ideológicos, pensar a entrevista como situação social torna-se imprescindível.

A discriminação racial e contra os pobres está na origem das desigualdades e da questão agrária brasileira (LOURENÇO, 2001, p. 196-198) e se faz presente não só nos fatos relatados nos relatórios de inspeção estudados, como também no próprio discurso de muitos dos trabalhadores entrevistados.

A escravização tem sempre um componente moral. Assim como um forte discurso de discriminação racial do negro acompanhou a escravidão colonial, também hoje a degradação dos trabalhadores pós-abolição é praticada costumeiramente sob alguma justificativa ideológica socialmente construída.

Além disso, o rebaixamento moral de si - com a introjeção da exclusão e estigmas sociais4 - é, sem dúvida, um dos principais elementos que vulnerabilizam o ser humano e o tornam mais suscetível à escravidão. Conforme aponta Figueira em sua pesquisa sobre trabalho escravo contemporâneo e peonagem no Pará e Mato Grosso, “Ser tratado como algo impuro, uma planta indesejável ou um animal repelente desqualifica a pessoa, degrada-a diante de si e do outro” (2004, p. 293).

Nas entrevistas que realizei entre 2014 e 2016, essa questão por vezes veio à tona, confrontando-me com alguns questionamentos metodológicos não apenas sobre a representação que as pessoas faziam de si, mas também sobre como, na situação da entrevista, a autodepreciação do trabalhador tido como "braçal" e "sem formação" estava necessariamente implicada no tipo de relação estabelecida com a minha figura acadêmica, associada à ideia de pessoa não só "formada" mas que "dita a formação". Afinal, é justamente nas relações assimétricas estabelecidas com diversas autoridades que se arrogam o monopólio do poder-saber que se forjam subjetividades obedientes e dóceis, alienadas de seus saberes, do valor técnico e político de tais saberes.

Muitos trabalhadores atribuem sua experiência de terem sido submetidos a trabalho escravo ao fato de não terem uma formação profissional e acadêmica específica. A indignidade das condições de trabalho é muitas vezes assim justificada, tanto por empregadores quanto por empregados. A produção da crença na indignidade e inferioridade

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de certos serviços e de quem os executa acaba servindo de justificativa para o injustificável: as condições indignas e inferiorizantes a que são submetidos esses trabalhadores no ambiente laboral.

Na entrevista com Antônio5, um trabalhador que havia sido vítima de trabalho escravo, essa problemática irrompeu de modo a provocar uma transformação em minha conduta de entrevistadora, o que se deu intuitivamente de início, mas posteriormente passou a uma opção metodológica conscientemente adotada para o restante da pesquisa de campo.

A conversa com Antônio ocorreu em 2015, na Casa do Migrante - Cuiabá, num momento em que ele participava de curso de operador de máquina em programa para qualificação de pessoas egressas do trabalho escravo (Projeto Ação Integrada). Ao longo de toda a conversa, ele me contava que havia sido tão vulnerável ao trabalho escravo por "não ter profissão certa". Antônio descrevia as condições degradantes em que havia laborado e afirmava: "Tem que fazer é isso, não tem profissão certa, aí nós era arriscado a pegar esse serviço".

Entremeavam-se dois dados da realidade: a constatação de que a baixa escolaridade é um fator de vulnerabilidade social e um juízo depreciativo sobre os trabalhos que não exigem qualificação formal. Num dos momentos do diálogo, a relação entre a desvalorização de seu próprio saber e a legitimação da dominação ficou mais clara. O trabalhador já havia descrito sua atividade: administrar o tempo e consumo de gasolina da motosserra, buscar gasolina, carregá-la para junto do operador de motosserra e acompanhar a derrubada das árvores, explicando que sabe quando deve realizar cada tarefa a partir dos diferentes sons do ronco da motosserra, fato esse que me impressionou. Em seguida, ao conversarmos sobre trabalho escravo, os assuntos se fundiram.

Antônio: Por isso que é difícil, eu considero isso tipo uma escravidão, que a gente para de ter aquela classificação de serviço... estudei um pouco né...estudei até a quarta série. Não tenho serviço certo, só a força mesmo. Giselle: Mas esse serviço que vocês fazem tem muita coisa que (...) exige um conhecimento bem específico, né.... Por exemplo se você me colocar pra ouvir aquele ronco... eu não vou saber que hora é pra trazer a gasolina. Isso é conhecimento.

Antônio: É, né?

5 O texto apresenta nomes fictícios para todos os trabalhadores vítimas de trabalho escravo que participaram da

pesquisa empírica ou que constam da documentação analisada. Os demais entrevistados também foram identificados por nomes fictícios sempre que assim optassem ou que a identificação de sua identidade pudesse acarretar riscos pessoais. Nos demais casos, quando os participantes expressamente optaram por serem identificados na tese, foram utilizados seus nomes reais.

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Mais adiante, ele retomou o assunto e me disse "E sobre a motosserra... você ficou admirada disso né...". Em seguida, relatou com detalhes a técnica que utilizava para saber quando buscar a gasolina e onde se posicionar na mata enquanto seu companheiro derrubava algumas árvores e o cuidado mútuo entre ele e seu companheiro de trabalho para não se acidentarem numa atividade tão perigosa, contando um episódio em que escapou da morte:

Só pelo barulho. Aí eu vou lá pro meu lado. Porque eu conheço. Eu fiz a base pelos minuto. No máximo é 30, 25, é a base do tanque cheio. Quando está dando 27. Eu marquei pelos minutos. Quando ele tá perto de mim eu vou lá pra frente. Os pau caindo pra tudo quanto é lado. Ele tava longe, muita bananeira brava. É igual essas bananeira comum, mas lá no mato é brava, não dá cacho não. E aí ele gritou "morreu, neguinho", aí eu saí correndo, senti só as folhas.

Perguntei a Antônio, muito descontraidamente, se ele achava que eu e o coordenador do projeto de qualificação profissional conseguiríamos executar a derrubada de árvores com motosserra. Ele, rindo muito, disse que não. Rimos os dois. Ao final da entrevista, também agradecemos os dois. Quando eu lhe disse "obrigada" por sua contribuição com a pesquisa, ele respondeu "Obrigado você por ter vindo aqui. Foi muito bom conversar com você".

O que percebi naquele momento da pesquisa foi que, em determinados contextos, meu silêncio poderia avalizar juízos de desprezo que aquelas pessoas - que estavam abrindo suas vidas para mim – aprenderam a fazer de si mesmas. E, mais além, um reforço da ideologia dominante do desprezo pelos pobres, pelos negros, pelas mulheres, pela população LGBT+, pelos nordestinos, pelos trabalhadores temporários, pelos trabalhadores ditos "braçais" reduzidos a apenas isso: braços. Foi quando passei a adotar assumidamente a conduta de emitir minha opinião ou propor algum questionamento e escutar a reação do(a) entrevistado(a) à minha intervenção toda vez que tais assuntos vinham à tona. As entrevistas que se seguiram foram, sem dúvida, as mais transformadoras.

Uma vez assumido que o(a) pesquisador(a) inevitavelmente interfere no campo e o transforma, não havendo neutralidade possível, restou-me a decisão sobre a melhor maneira de realizar a inevitável interferência. À intuição seguiu-se o aprofundamento do estudo metodológico, que se enraizou na sociologia reflexiva, segundo a qual a entrevista

não é simplesmente um estímulo destinado a revelar a verdadeira condição ou situação do entrevistado, mas sim uma intervenção em sua vida. A entrevista retira o entrevistado do seu próprio tempo e espaço e o sujeita ao tempo e espaço do entrevistador. Na visão da ciência reflexiva, a intervenção

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não somente é uma parte inevitável da pesquisa sociológica, mas uma virtude a ser explorada. É por reação mútua que nós descobrimos as propriedades da ordem social. Intervenções criam perturbações que não são ruídos a serem expurgados, mas músicas a serem apreciadas, transmitindo os segredos ocultos do mundo dos participantes (BURAWOY, 2014, p. 63). Muitas vezes o silêncio da pretensa neutralidade apenas endossa os valores dominantes e vigentes, inclusive a visão elitista que pode informar como as pessoas de classe mais baixa me enxergam, de baixo para cima, com o agravante de que o autoritarismo nas relações é justamente um dos assuntos das entrevistas. Infelizmente, no Brasil, a maior parte das relações se estabelece na verticalidade (de que a escravização do ser humano por outro ser humano é o caso extremo) a não ser que se faça justamente isso: uma intervenção.

Daí a importância da reflexividade que, "para James Clifford, entre outros, (...) é não só um instrumento de conhecimento, mas também de compensação das assimetrias (...) entre o pesquisador e os sujeitos que pesquisa" (GUBER, 2011, p. 134-135, tradução nossa).

Este tema é importantíssimo, principalmente quando lidamos com sujeitos constantemente submetidos a autoritarismos. Além disso, no caso dos trabalhadores desta pesquisa – pessoas cuja relação com as instituições públicas se dá, na maior parte das vezes, no formato do depoimento, do interrogatório e da oitiva –, a primeira tarefa da pesquisadora no encontro com estes sujeitos deve ser justamente quebrar sua expectativa. Falar de um novo lugar ou de novos lugares – e, quando possível, até desmoralizar, através do humor e da franqueza, o lugar da autoridade –, eis a ambição da metodologia empregada, com a convicção de que sem essa desconstrução não há como questionar as estruturas escravizantes do mundo do trabalho.

A entrevista mais estruturada teria sido insuficiente, no caso de relações claramente assimétricas como as desta tese, para refundar a relação com o outro6. Algumas vezes, até mesmo nas entrevistas semiestruturadas, as estradas vicinais e picadas percorridas com certa liberdade e informalidade estão subordinadas à rodovia pavimentada pela tradição, pela posição claramente determinada do entrevistador e do entrevistado, aquele senhor do próprio saber e autor solitário do roteiro da interação com o entrevistado, que é reificado. A entrevista, como toda interação social, produz o elemento revolucionário da surpresa, mas, ao

6 "Assim como a observação participante pode seguir princípios positivos, as entrevistas podem seguir preceitos

da ciência reflexiva - o que eu chamo de método clínico. A psicanálise é o protótipo aqui, especialmente quando o psicanalista é visto como um antropólogo reflexivo (CHODOROW, 1999). A relação entre o analista e o analisado é dialógica e intervencionista. Cada qual reconstitui o outro. [...] O processo é o leitmofit da psicanálise" (BURAWOY, 2014, p. 89).

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se reportar a uma estrutura previamente construída, a uma direção estabelecida, a um diretor, é novamente subjugada pelo caminho do conhecido7.

A partir de tais reflexões, pratiquei uma entrevista menos estruturada, próxima da conversa. E, mais adiante, percebi que a riqueza das interações desestruturadas estava, primordialmente, no fato de elas serem também desestruturantes.

Afinal, "A entrevista é uma situação face a face onde se encontram distintas reflexividades, mas, também, onde se produz uma nova reflexividade" (GUBER, 2011, p. 70, tradução nossa). E, assim sendo, a não ser que se leve em consideração a própria estrutura das interações sociais e se questione as estruturas das entrevistas realizadas na pesquisa, a reflexividade produzida será uma reafirmação inconsciente de velhos autoritarismos que instituem o outro como escravo, como força braçal destituída de conhecimento; e o pesquisador, como detentor de todo saber válido, como único sujeito.

A estrutura mantida foi a dos procedimentos éticos: a exposição inicial feita por mim sobre os objetivos da pesquisa, o convite e esclarecimentos sobre a participação, a assinatura do termo de consentimento e a limitação de utilização do material ao permitido por cada participante. No texto aqui apresentado, a identidade dos entrevistados foi protegida, utilizando-se nomes fictícios nas citações de suas falas. Esta escolha, na versão da tese ora apresentada, estendeu-se a todos os participantes, inclusive aqueles que me haviam concedido permissão para divulgação de seus nomes.

7 Neste sentido, Portelli afirma que “entrevistas rigidamente estruturadas podem excluir elementos cuja

existência ou relevância fossem desconhecidas previamente para o entrevistador e não contempladas nas questões inventariadas. Tais entrevistas tendem a confirmar a moldura de referência prévia do historiador” (1997, p. 35).

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CAPÍTULO 1: A ESCRAVIZAÇÃO DO SUJEITO LIVRE

“Fomos expulsos da fazenda, como que culpados pela nossa vida, ou morte, não sei. Sem a menor direção de qualquer raio de sol. Se não sabíamos onde estávamos esse tempo todo, imagina agora saber para onde ir. E fomos...” (Xico Cruz, Conto Escravidão)

1.1. Escravidão como questão de desigualdade e exploração

A incompreensão (ao menos parcial) do fenômeno da escravidão num país como o Brasil, fundado em relações escravocratas e colonialistas, é um grave entrave não apenas para as ciências sociais, como para o próprio desenvolvimento das instituições e relações humanas.

O objetivo deste capítulo é propor um ponto de partida teórico para o debate sobre a escravidão contemporânea alicerçado na exploração e na desigualdade, e não na afronta à liberdade. E, por conseguinte, abrir caminho para novos pontos de chegada em diversos temas correlatos: a relação entre a escravidão do Brasil Colônia e Império e a escravidão contemporânea, as especificidades da escravidão brasileira no contexto global e os pontos cruciais da atual disputa em torno do conceito de “trabalho análogo a de escravo” no país.

Na introdução de seu livro A abolição, Emília Viotti da Costa escreve:

O Brasil era o último país do mundo ocidental a eliminar a escravidão. Para a maioria dos parlamentares, que se tinham empenhado pela abolição, a questão estava encerrada. Os ex-escravos foram abandonados à sua própria sorte. Caberia a eles, daí por diante, converter sua emancipação em realidade. Se a lei lhes garantia o status jurídico de homens livres, ela não lhes fornecia os meios para tornar sua liberdade efetiva. A igualdade jurídica não era suficiente para eliminar as enormes distâncias sociais e os preconceitos que mais de trezentos anos de cativeiro haviam criado8. A Lei

Áurea abolia a escravidão mas não seu legado. Trezentos anos de

opressão não se eliminam com uma penada. A abolição foi apenas o primeiro passo na direção da emancipação do negro. Nem por isso deixou de ser uma conquista, se bem que de efeito limitado” (COSTA, E., 2010a, p. 12, grifo nosso).

8 “O fato é que, num momento em que o abolicionismo, mesmo que gradual, prometia a quimera da liberdade, já

o tema da igualdade estava outra vez em questão: não mais por causa do sistema escravocrata, mas agora em nome da ciência e da biologia, que determinavam de maneira categórica que ‘os homens não nasciam iguais’” (SCHWARTZ, L., 2018, p. 408).

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A autora recupera também este interessante trecho de um dos discursos da Câmara dos Deputados dirigidos à Princesa Isabel (resposta à Fala do Trono), no bojo da aprovação da abolição da escravatura, em que os deputados afirmam:

Desfizemo-nos Senhora, do ominoso legado que apenas por constrangimento da indústria agrícola havíamos mantido até hoje, restituímos à

personalidade humana os foros integrais de sua dignidade em face do princípio de igualdade política; consagramos o da uniformidade da condição civil e eliminamos assim da legislação a única exceção repugnante

com a base moral do direito pátrio, e com o espírito liberal das instituições modernas (COSTA, E., 2010a, p. 11, grifo nosso).

Ao retomarmos essa lúcida leitura da abolição da escravidão no Brasil, queremos apenas nos firmar sobre quatro pontos cruciais, a fim de que possamos em seguida alcançar, sem distorções, nosso objeto de estudo propriamente dito, que é o trabalho escravo contemporâneo.

O primeiro ponto é que o abolicionismo, em última análise, não é uma questão de liberdade (apesar de também atingir a liberdade), mas fundamentalmente uma questão de igualdade. O cativeiro dos negros pela empresa colonial foi, de fato, a forma pela qual se praticou a escravidão à época, porém, não constitui a única forma possível de escravatura de uma população. A escravidão nada mais é do que a submissão de uma população por outra a uma condição de inferioridade que a obrigue a servir seus superiores. A forma como essa dominação se torna estrutura, prática e crença é histórica: varia no tempo e no espaço em consonância com as conformações sociais e as dinâmicas territoriais. Assim, cada modo de produção cria seus modos de escravizar e cada territorialidade encontrará, também, ainda que inscrita numa ordem global, suas especificidades, conforme estudaremos em seguida no caso do estado de Mato Grosso. Por outro lado, o estudo mais aprofundado do local nos ajudará a desvendar lógicas de exploração sistêmicas que transcendem as fronteiras do território estudado e podem nos auxiliar a compreender fenômenos mais abrangentes do mundo do trabalho.

O segundo ponto, que tem relação com o anterior, é que o racismo não é um subproduto da colonização europeia que permaneceu entre nós como legado nefasto do escravismo. O racismo é um sistema ideológico que se originou na Europa, simultaneamente e em conexão com o colonialismo, que serviu de fundamento legitimador da conquista e dominação de outros povos e territórios. A concepção da humanidade como subdivida em raças desiguais por natureza é o verdadeiro fundamento da escravidão de um ser humano por

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