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Capítulo 1: A escravização do sujeito livre

1.3. Liberdade de contratação e vulnerabilidade social: os pilares da escravização neoliberal

1.3.1. A liberdade de contratar

Em sua obra New Slavery, Kevin Bales aponta a “escravidão por contrato” como uma das principais modalidades de escravidão contemporânea, tomando por base a realidade brasileira.

A escravidão por contrato mostra como relações de trabalho modernas são usadas para esconder a escravidão. São oferecidos contratos que garantem emprego, mas quando os trabalhadores são levados ao local de trabalho eles se veem escravizados. Esse é a segunda maior forma de escravidão hoje, mas também a que cresce mais rapidamente (BALES, 2004, p. 121, tradução nossa).

O autor acrescenta que no Brasil a “escravidão por contrato” prevalecente ampara- se na servidão por dívida que, num país com tanta pobreza, permite que populações miseráveis sejam incitadas a aceitarem “contratos verbais com base em falsas promessas de trabalho bem remunerado” (BALES, 2004, p. 121).

De fato, uma das modalidades de trabalho escravo mais recorrentes no Brasil é a servidão por dívida, que se proliferou na formação das fazendas pecuaristas localizadas nos estados do Pará e Mato Grosso (no arco do desmatamento e expansão agropecuária), com o aliciamento de trabalhadores socialmente vulneráveis, geralmente oriundos do nordeste do país. São casos em que recrutadores de mão de obra (“gatos”) aliciam trabalhadores mediante promessas enganosas de boas condições de trabalho e remuneração, levando-os para trabalhar em regiões remotas, criando, então, mecanismos de endividamento artificial e formas de controle e repressão para prendê-los ao trabalho por meses até a conclusão das tarefas.

Nessas circunstâncias, como já foi relatado fartamente pela literatura40, aqueles trabalhadores que tentam fugir ou resistir são tratados como se estivessem descumprindo o contrato (a palavra empenhada no momento do recrutamento), sendo que o trabalhador nessas condições muitas vezes “se considera subjetivamente devedor e, portanto, incapaz de violar o princípio moral em que apoia sua relação de trabalho” (MARTINS, 1999, p. 162). De modo geral,

[...] os fazendeiros utilizam ‘gatos’ ou recrutadores de mão de obra que percorrem as regiões de ciclo agrícola diferente, como o Nordeste, e aí, mediante promessas de bom trato e bom pagamento, aliciam trabalhadores disponíveis e os levam para regiões remotas. Para prendê-los ao trabalho,

criam mecanismos de endividamento artificial e formas de controle e repressão [...] para assegurar que o trabalhador não escapará e se submeterá ao trabalho até que a tarefa seja concluída. [...] Ao tentar fugir ou resistir contra a exploração embutida nessa relação, o trabalhador é tratado como se estivesse descumprindo o contrato, a palavra empenhada quando fora recrutado pelo ‘gato’. [...] Essa é, seguramente, uma das razões pelas quais o trabalhador teme e recusa sua libertação, pois se considera subjetivamente devedor e, portanto, incapaz de violar o princípio moral em que apoia sua relação de trabalho (MARTINS, 1999, p. 162).

No relato de um auditor fiscal que atuou em operações do Grupo Especial de Fiscalização Móvel em diversos estados na última década, a questão do sentimento de dívida do trabalhador também aparece nas experiências recentes de trabalho escravo:

A maioria não quer fugir, não acha que está sendo explorado, acha que é o trabalho. [...] E eles acham que estão devendo e têm que pagar. Eu falava ‘você não está devendo mais, o Estado chegou...’ (...) e o pessoal falava ‘não, eu sou homem, eu sou sujeito homem, eu tenho honra: eu pedi, eu comprei, eu tenho que pagar...

Ora, como vimos, um dos elementos que caracterizam as relações sociais de produção no capitalismo é sua mediação pela forma jurídica do contrato. No trabalho escravo do capitalismo consolidado aqui estudado não será diferente. O que se percebe, nos emblemáticos casos acima citados, como na parcela majoritária dos casos recentes, é a importância da mediação do contrato de trabalho para a efetividade das práticas contemporâneas de escravização.

Portanto, ainda que se trate de um contrato não escrito e firmado para ser descumprido (manipulado) pelo empregador, são muitas vezes as ideias de direitos e deveres recíprocos, de equivalência e de responsabilidade contratual, do trabalhador na qualidade de sujeito com capacidade jurídica (como se estivesse em pé de igualdade para negociar livremente com o empregador), que funcionam como mecanismos de controle da força de trabalho.

Nesse mesmo sentido, Ellman e Laacher também demonstram que a maior parte dos migrantes escravizados em Israel ali se encontra em razão de contratos firmados previamente em seu país de origem, o que definiria uma “relação normal entre empregado e empregador”. Porém, ao iniciarem suas atividades laborais, deparam-se com o descumprimento daquele contrato no que se refere a horas de descanso, salário, condições de trabalho etc., sendo que em alguns casos a subordinação do trabalhador é tão extrema que inclui proibição de sua saída do local de prestação dos serviços (2003, p. 22).

No que diz respeito à realidade brasileira, nossa hipótese é de que, nas últimas décadas, o trabalho escravo estaria progressivamente abandonando tecnologias de mera imobilização da força de trabalho, para combiná-las com novas tecnologias neoliberais alicerçadas na mobilidade dos trabalhadores. Altera-se a forma de dominar e também as formas impostas de violência, que consistem cada vez menos em castigos físicos e assassinatos, passando a predominar a violência psicológica e os agravos físicos e mortes causados não por castigos, mas sim por doenças e acidentes de trabalho. Afasta-se, portanto, do predomínio do universo dos pistoleiros, da vigilância armada, das agressões físicas, para o predomínio do controle pela dívida, das condições degradantes de trabalho, das jornadas extenuantes, de novos atentados à saúde e à vida dos trabalhadores. Transita-se da visibilidade da violência direta para a invisibilidade da violência sistêmica e simbólica nos termos estudados por Žižek (2009) 41.

Casos como os relatados no estudo Contemporary slavery in UK demonstram que, também em outros contextos, as relações de escravização contemporânea muitas vezes não envolvem violência física; porém, as formas de controle da mão de obra utilizadas (retenção de documentos como passaporte, abuso de poder, condições extremas de alojamento e trabalho) funcionam como uma ameaça real (CRAIG et al, 2007, p. 12).

Ora, o trabalho escravo contemporâneo, à semelhança da escravidão colonial, também se utiliza de “ameaças, violência psicológica, coerção física, punições exemplares e até assassinatos” na “manutenção da ordem” (SCHWARTZ, R., 2008, p. 124). Porém, minha hipótese é de que o emprego da violência direta, apesar de persistir, tende a ceder espaço para o exercício de outras formas de violência na medida em que vão se consolidando novas formas de dominação.

Assim, se, no início da formação do mercado de trabalho e na ocupação de territórios por frentes pioneiras, a coação direta e a violência física eram invariavelmente empregadas, tais métodos primários de subjugar a força de trabalho na formação do capitalismo vão sendo substituídos por outras formas “politicamente mais viáveis e

41 Em seu livro Sobre la violencia, Slavoj Žižek mostra a visibilidade da violência subjetiva (aquela praticada

por um agente identificável), mas que tais arrebatos só podem ser compreendidos captando-se, por detrás deles, outros tipos de violência menos visíveis: a violência simbólica (encarnada na linguagem) e a violência sistêmica (violência inerente ao sistema e que abarca não só a violência física direta, mas também formas mais sutis de coerção que impõem relações de dominação e exploração). Contrapondo a violência subjetiva às demais modalidades de violência (aglutinadas no termo violência objetiva), Žižek demonstra por que elas não podem ser percebidas simultaneamente, a partir de um único ponto de vista, uma vez que a "violência objetiva é precisamente a violência inerente a este estado de coisas ‘normal’. A violência objetiva é invisível posto que sustenta a normalidade de nível zero contra aquilo que percebemos como subjetivamente violento” (ŽIŽEK, 2009, p. 10).

economicamente mais rentáveis [...], baseadas na gestação de um excedente de mão de obra, livre de débitos, mas também de propriedade e de instrumentos produtivos” (KOWARICK, 1987, p. 84). Trata-se dos indivíduos “soltos e solteiros” enunciados por Marx, “forçados a se venderem voluntariamente”, isto é, do trabalhador “obrigado a ser livre” produzido pelo capitalismo numa clara contradição: nega-se a liberdade individual em nome dessa mesma liberdade (NAVES, 2005, p. 28). Afinal, o sujeito só se torna livre de fato quando proprietário de mercadorias (e vendedor da mercadoria “força de trabalho”). Por isso, legiões de trabalhadores, vistos pelo direito como sujeitos livres, só se oferecem à subordinação do contrato de trabalho sob a coação do direito penal, da vulnerabilidade42 social e de noções de obrigação moral43.

De fato, a figura do contrato exerce um papel central na exploração do trabalho na atualidade. E não há como compreendermos o trabalho escravo contemporâneo sem entendermos mais profundamente o teor coercitivo dos contratos44 e o papel da ideologia jurídica fundada no voluntarismo45.

Arthur, um trabalhador retirado de situação de trabalho escravo na construção civil pelo Grupo Especial de Fiscalização Móvel, respondeu da seguinte forma quando lhe perguntei sobre como se sentia naquela situação (preso ou livre):

A escravidão não é só de corrente, não é só o preso que tem que trabalhar. Mesmo estando soltos estamos presos. Estamos presos no trabalho, porque se a gente sair vai morrer de fome. A gente é obrigado a ficar lá mesmo nessas condições para não deixar a família passar fome.

Vista sob este ângulo, a escravidão contemporânea predominante no Brasil parece utilizar-se, crescentemente, dos próprios mecanismos empregados na exploração legal dos trabalhadores no capitalismo contemporâneo. Para desenvolver esta linha de abordagem e testar as hipóteses apresentadas, abordarei nos próximos capítulos a morfologia da escravidão contemporânea no Brasil a partir da análise dos resultados de minha pesquisa qualitativa e quantitativa.

42 "A pobreza por si mesma gera uma gama de vulnerabilidades que demanda a priorização da satisfação de

necessidades práticas de curto prazo, em detrimento de estratégias de mais longo prazo para a acumulação e a obtenção de segurança” (WOOD, 2000, p. 19, apud PHILLIPS, 2013, p. 176, tradução nossa).

43 As disposições do direito só se amparam na repressão em última instância, sendo a norma interiorizada sob a

forma de ideologia moral (ALTHUSSER, 1999).

44 Ver Banaji (2003).

45 Segundo o que foi sedimentado pela filosofia do direito moderno, o contrato, célula elementar do direito