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DISTINÇÃO ENTRE COISA JULGADA ILEGAL E INCONSTITUCIONAL

No documento Coisa julgada inconstitucional (páginas 58-64)

3 O PRINCÍPIO DA SEGURANÇA JURÍDICA COMO PARADIGMA PARA A

3.5 DISTINÇÃO ENTRE COISA JULGADA ILEGAL E INCONSTITUCIONAL

Já articulava Paulo Otero (apud BRANDÃO, 2005, p. 66) que “uma coisa é a decisão judicial violar a vontade do legislador, outra bem diferente será a violação da vontade do constituinte.” Nesse âmbito, para melhor compreensão do objeto desse trabalho, principalmente no que tange as modalidades processuais de impugnação da coisa julgada inconstitucional, forçoso destacar a distinção doutrinária entre a coisa julgada ilegal e a inconstitucional.

A toda evidência a coisa julgada ilegal não viola a Constituição, mas ocorre quando o comando da sentença que transitou em julgado ofende norma infraconstitucional (SILVA JUNIOR, 2009, p. 57-58). Nesse caso, como o direito brasileiro, segundo Marco Antonio Scmitt (1997 p. 338), preferiu a categoria da rescindibilidade à da nulidade de pleno direito, o meio apto a impugnar esse tipo de decisão se trata da ação rescisória com prazo de propositura de dois anos a contar do trânsito em julgado, com os seguintes efeitos:

A sentença rescindível existe, vale e é eficaz. Quando julgada procedente a rescisória, ela passa a “não ser”. Uma vez rescindida a sentença, ela deixa de “ser”

ex tunc, a partir da decisão. Assim sendo, a sentença rescindente é

preponderantemente constitutiva negativa, qualquer que seja a carga de eficácia da sentença rescindenda. (OLIVEIRA, 1997, p. 339).

Como se percebe, o que se rescinde é a sentença, não o processo, até porque, conforme já mencionado, até que a ação rescisória seja julgada, essa sentença produz efeitos.

No sentido oposto, a decisão judicial transitada em julgado desconforme à Constituição Federal padece de vício de inconstitucionalidade, ou por outras palavras, a coisa julgada inconstitucional apresenta uma ofensa direta à Magna Carta (TALAMINI, 2005, p. 406).

Por esse efeito, os atos decisórios que conflitam com o texto magno são carentes, em tese, de validade jurídica (BRANDÃO, 2005, p. 67). Quando o pronunciamento é eivado de vícios graves, “envenena” qualquer ato posterior a sua formação e enseja uma nulidade de pleno direito, capaz de afetar o plano da validade, e, por isso, um seguimento de doutrinadores impõem ao fenômeno da coisa julgada inconstitucional o vício da nulidade.

No entanto, outros como Teresa Arruda Alvim Wambier e José Miguel Garcia Medina (2003, p. 43) proclamam que a inconstitucionalidade da lei torna a decisão um mero “vazio” jurídico, pois, em que pese tenha se tornado formalmente definitiva, terá mera aparência de decisão judicial e carece de existência no mundo jurídico.

A depender do caminho quanto à natureza do vício que inquina a sentença de mérito que transita em julgado em contraposição à Lei Fundamental, Janaína Soares Noleto Castelo Branco (2009, p. 93-104) ressalta que os meios de impugnação serão diversos (por exemplo: ação declaratória de nulidade ou de inexistência), motivo pelo qual se torna relevante o próximo capítulo a fim distinguir os instrumentos processuais aptos a impugnar a coisa julgada inconstitucional.

4 TESES CONTRÁRIAS E FAVORÁVEIS À DESCONSIDERAÇÃO DA COISA JULGADA INCONSTITUCIONAL

Hodiernamente movimentos propõem discutir a desconsideração da coisa julgada proveniente da inconstitucionalidade, pois, não é difícil surgirem sentenças ou acórdãos fundamentados em uma determinada lei que posteriormente foi declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal no controle concentrado de constitucionalidade (BRANDÃO, 2005, p. 69).

Consoante esclarece Alexandre Freitas Câmara (2006, p. 485), em que pese a coisa julgada se identifique como imutabilidade e indiscutibilidade do conteúdo da sentença, casos há em que é preciso desconsiderá-la, consentindo que se discuta aquilo que já fora decidido pela sentença transitada em julgado.

Ocorre que a ideia de uma coisa julgada suscetível de ser desconsiderada, ainda que de maneira excepcional, apresenta-se, como já mencionado em capítulo oportuno, no mínimo paradoxal, já que ela se define, como regra, justamente pelo elemento da intangibilidade. Daí é que correntes conservadoras advogam pela impossibilidade de desconsiderar a coisa julgada, ainda que eivada de inconstitucionalidades, em função do risco de eternização dos conflitos.

Observa-se, assim, um cenário autofágico do direito, haja vista que de um lado doutrinadores defendem o movimento da desconsideração da coisa julgada incosntitucional, e, de outro norte, há uma classe que deseja a qualquer custo preservá-la.

Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery (2007, p. 687) enfatizam que a ideia de desconsideração anda na contramão de um Estado Democrático de Direito e comparam tal proposta a Lei de Intervenção do Ministério Público no Processo Civil, assinada por Adolf Hitler, a qual pretendeu criar uma nova causa de rescindibilidade da sentença de mérito.

Desse modo, os doutrinadores são categóricos e extremistas ao defenderem que a desconsideração ofende a Carta Magna, pois deixa de aplicar a garantia fundamental do Estado de Direito, qual seja; a própria coisa julgada.

O eufemismo daqueles que obstaculizam a tese de desconsideração também se pauta no argumento de que o instituto da coisa julgada foi criado com vistas a propiciar a

segurança jurídica e que as possíveis aberturas aniquilariam a estabilidade social e o Estado de Direito (VALLE, 2010, p. 62-63).

Nessa linha de raciocínio, aduz Leonardo Oliveira Soares (2011, p. 90) que a “desconstituição extrassistêmica da denominada coisa julgada inconstitucional põe em risco o Estado Democrático de Direito que se procura proteger, de fato, pois atenta contra o princípio da segurança jurídica.”

Além disso, a coisa julgada estaria envolta de uma sacralização que se cunhou denominar princípio da intangibilidade, na máxima retórica de que sua proteção não pode ser alterada.

A sua impermeabilidade pode ser abalizada pelas palavras do Ministro falecido do Supremo Tribunal Federal Carlos Alberto Menezes de Direito (apud VALLE, 2010, p. 62):

Seria terrificante para o exercício da jurisdição que fosse abandonada a regra absoluta da coisa julgada que confere ao processo judicial força para garantir a convivência social, dirimindo os conflitos existentes. Se, fora dos casos nos quais a própria Lei retira a força da coisa julgada, pudesse o magistrado abrir as comportas dos feitos já julgados para rever as decisões não haveria como vencer o caos social que se instalaria.

Vê-se, pois, que as anomalias visíveis no conteúdo sentencial devem vigorar em nome de um suposto dogma absoluto da res iudicata.

Por último, a tese da não desconsideração também está pautada na noção de que há previsão constitucional da coisa julgada como garantia fundamental (art. 5º, XXXVI, Constituição Federal Brasileira). Luiz Guilherme Marinoni (2008, p. 68) julga que a interpretação literal do mencionado artigo induziria a falsa ideia de que somente contra o legislador a coisa julgada estaria protegida.

Entretanto, na visão do doutrinador, o fato do art. 5º, XXXVI da Constituição Federal Brasileira ter se reportado apenas ao legislador não implica concluir que a Constituição quis liberar o administrador e o juiz. Tal previsão não ocorreu porque a possibilidade do magistrado desconsiderá-la deve ser rara frente aos princípios do Estado de Direito e as regras do direito processual (MARINONI, 2008, p. 69).

Esses são, pois, os argumentos defendidos pelos teóricos contrários à ideia de desconsideração.

Em que pese tais argumentos, não se pode olvidar que “a inconstitucionalidade é o mais grave vício de que pode padecer um ato jurídico, não sendo possível aceitar a ideia de

que o trânsito em julgado de uma sentença que contraria a Constituição seja capaz de sanar tal vício que é, a toda evidência, insanável.” (CÂMARA, 2004, p. 16-17).

Partindo desse pressuposto, e, tendo em vista que o presente trabalho visa estudar os instrumentos processuais aptos a impugnar a coisa julgada inconstitucional, torna-se evidente que a premissa da qual parte essa investigação é a possibilidade da desconsideração da coisa julgada inconstitucional. Sendo assim, cumpre desconstruir o raciocínio proposto pela corrente contrária e apresentar os argumentos favoráveis à desconsideração.

Primeiramente, a ideia de desmistificação não condiz com a instalação de uma ditadura nazista ou pelas avessas, como proclamam Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery (2007, p. 687). O que a tese avulta é reconhecer que a “declaração da nulidade da lei fulmina, por consequência lógica a validade da decisão baseada na lei declarada inconstitucional.” (MARINONI, 2008, p. 69). E, por essa razão, ao contrariarem a Carta Magna tais decisões são inválidas, acarretando a nulidade da coisa julgada que sobre elas se forme (MACHADO, 2005, p. 90).

Desse modo, em função da excepcionalidade e do vício que tais pronunciamentos carregam em seu bojo, é que devem ser expurgadas sem que isso açule os casos legais. De acordo com Lyts de Jesus Santos (2009, p. 308), o simples fato de ser possível se afastar a prevalência da coisa julgada, não significa que se multiplicarão as demandas a almejá-la, eis que a possibilidade de desconsideração é reconhecida apenas quando em choque contra decisum do Supremo Tribunal Federal, o que não geraria a instabilidade tão temida.

O escopo, portanto, segundo o pensamento de Carlos Valder do Nascimento (2005, p. 104) é “eliminar, extinguir, desfazer decisões anômalas incompatíveis, por sua natureza, com a concepção natural do ordenamento legal.”

De outro norte, não há como negar que o instituto da coisa julgada nasceu com a finalidade de garantir segurança jurídica às decisões judiciais como meio de reforçar a função estatal de solucionar o litígio. Porém, isso não significa crer que a segurança como qualidade havida no ordenamento deva suplantar a credibilidade da supremacia da Constituição Federal.

Dissertando sobre a matéria, Cármen Lúcia Antunes Rocha (2005, p. 184) exclama:

e se não se tivesse mais a certeza sequer de que a Constituição há que ser cumprida, acatada e mantida em sua respeitabilidade integral e a certeza de seu cumprimento total, mesmo que para tanto se tenha de desfazer os atos antes praticados pelo próprio Estado?

A resposta a tal questionamento não poderia ser outra: estar-se-ia diante da total insegurança jurídica. Assim, a coisa julgada eivada de inconstitucionalidades não se coaduna com a bandeira de Estado de Direito na medida em que a sua manutenção ofende a Magna Carta.

A segurança jurídica como bem lembra Gisele Mazzoni Welsch (2008, p. 69) não deve ser vislumbrada como fonte de se eternizarem injustiças, mas como um instrumento pelo qual seja possível defender-se de decisões judiciais que ferem a Constituição.

Já no tocante ao discurso da intangibilidade da coisa julgada é imperioso questionar se ainda que fosse verdadeira a regra romana segundo a qual a coisa julgada faz do preto branco, faria ela do inconstitucional nulo e insubsistente algo juridicamente intangível e subsistente? (ROCHA, 2005, p. 167).

Embora já se tenha demonstrado tal resposta no segundo capítulo, cumpre ratificar que a ideia de tolerar que a sentença, acobertada pelo manto da coisa julgada é ato jurisdicional intocável, impõe também observar a ideia segundo a qual todos os atos estatais são passíveis de desconstituição (NASCIMENTO, 2005, p. 41).

Ademais, indispensável trazer à baila que a tese de santificação da coisa julgada já se encontra superada, eis que o próprio legislador ao disciplinar as hipóteses de ação rescisória acolheu a possibilidade do dogma da res iudicata ceder espaço para a flexibilidade (DIAS, 1998, p. 39).

Por último, quanto ao discurso de que a coisa julgada é uma garantia fundamental, isso não implica em proibir a tese de desconsideração, mas apenas em alertar que a edição de leis supervenientes não pode modificar uma decisão transitada em julgado. No mesmo sentido, a coisa julgada só deverá ser mantida caso a decisão que a originou tenha sido prolatada com a mais absoluta consonância com a Constituição Federal.

Ora, se nem a lei é imune qualquer que seja o tempo decorrido desde a sua entrada em vigor, aos efeitos negativos da inconstitucionalidade, não haveria de ser a coisa julgada (S SSEKIND, 2009, p. 61).

Ao ensejo da conclusão dessas digressões defensivas, imperioso e válido se torna consignar que ao contrário do que imagina o doutrinador Araken de Assis (2002, p. 12), o “vírus do relativismo” não contaminará faltamente, todo o sistema judiciário, eis que a hipótese de desconsideração é excepcional (apenas quando ocorrer o fenômeno da coisa julgada inconstitucional).

No documento Coisa julgada inconstitucional (páginas 58-64)