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Distinção entre elemento normativo do tipo, complemento

No documento Pedidos dessa obra: experteditora.com.br (páginas 70-74)

A investigação proposta nesse trabalho deve necessariamente ser iniciada com o debate sobre se existe alguma distinção entre o ob- jeto jurídico do dolo e a consciência da ilicitude. Em outras palavras, trata-se de perguntar se a cognição individual estaria dirigida a um elemento constitutivo do tipo penal ou à própria ilicitude da condu- ta nos casos que envolvam leis penais em branco, bem como quais são as características de cada um desses elementos. Para responder a essa pergunta, é essencial que seja realizada a distinção basilar entre o elemento normativo do tipo e a ilicitude da conduta praticada que irá repercutir no erro de proibição. Nesse sentido, destaca-se que a desco- berta dos elementos normativos do tipo ocorreu no contexto neokan- tista, em que foi ressaltado que o tipo penal não seria a mera descri- ção da conduta proibida, mas que também abrangeria elementos que exigiriam um juízo de valor no âmbito jurídico87. Assim, os elementos normativos do tipo são os termos ou expressões que demandam, para além da mera leitura, uma carga de interpretação para expressar ple- namente seu significado, como é no caso da expressão “terras de do- mínio público ou devolutas” no artigo analisado neste trabalho.

Por outro lado, o complemento da lei penal em branco é o ele- mento que dá conteúdo à norma penal proibitiva, estando expresso fora do tipo penal88. Por essa razão, inclusive, é que os elementos nor- mativos do tipo são diferenciados das leis penais em branco, tendo em vista que naqueles o tipo penal está completo, embora exija valoração pelo julgador, enquanto nessas o a completude do tipo penal exige a leitura de outros dispositivos legais ou atos normativos que estão fora

87 Nesse sentido, importantes considerações estão contidas na seguinte obra: MEZ- GER, Edmundo. Derecho penal: parte general. Trad. Ricardo C. Núñez. Buenos Aires: Editorial Bibliografía Argentina, 1958, p. 386-389.

88 PUPPE, Ingeborg. Error de hecho, error de derecho, error de subsunción. In: FRIS- CH, Wolfgang et al. El error en el Derecho Penal. 1 reimp. Buenos Aires: Ad-Hoc, 2010, p. 112.

da própria descrição da conduta proibida89. Assim, a ilicitude que é objeto da cognição humana no âmbito da culpabilidade pouco tem a ver com o elemento normativo do tipo ou com o complemento da lei penal em branco. Afinal, tendo como pressuposto que a consciência da ilicitude envolve o juízo paralelo na esfera do profano90, conforme defende a concepção intermediária sobre o objeto da consciência da ilicitude91, então teremos que admitir que ela não poderá ser referida à lei penal ou a seus elementos92, inclusive a seus elementos normati- vos, pois a isso incumbe o dolo. Trata-se do processo cognitivo sobre a permissividade – direta ou indireta – do sistema jurídico – e não do tipo penal específico ou da inexistência deste – em relação à conduta praticada. Dessa forma, a ilicitude de que estamos tratando está exata- mente onde não estão, ao menos diretamente, os elementos que cons- tituem o tipo penal objetivo, inclusive também seus elementos norma- tivos, considerando que é possível encontra-la também por meio do juízo negativo entre a lei expressa e à mera avaliação ética da conduta. No caso em exame neste trabalho, trata-se de uma hipótese de evidente erro de proibição indireto, em que X acreditada estar ampa- rado pela causa de justificação do exercício regular de direito93. Assim, é interessante perceber que X inclusive sabe da proibição de extração na área de domínio público, bem como de suas possíveis repercussões penais, mas não é isso, nem uma determinação legal, que o fazem acreditar que a conduta é permitida. Ao contrário, o que o fez acredi- tar nisso foi a informação de que a extração no local seria permitida excepcionalmente para a empresa, não estando essa informação ne- cessariamente amparada em algum dispositivo legal. A partir disso é possível concluirmos novamente, dessa vez diante do caso concreto, que a ilicitude que é objeto da consciência no âmbito da culpabilida- de não exige reconhecimento ou valoração sobre lei, mas sim sobre a

89 TIEDEMANN, Klaus. La ley penal en blanco: concepto y cuestiones conexas. In Revista Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo: Revista dos Tribunais, v. 10, n. 37, p. 73-97, jan/mar. 2002, p. 92

90 MEZGER, Edmundo. Derecho penal…, p. 386-389.

91 BRODT, Luís Augusto Sanzo. Novo estudo sobre a consciência da ilicitude. Porto Ale- gre: Núria Fabris, 2019.

92 MEZGER, Edmundo. Derecho penal…, p. 157-158.

93 SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito penal: parte geral. 8 ed. Florianópolis: Tirant lo Blanch, 2018, p. 273-278.

contrariedade entre a conduta e todo o sistema jurídico ou, de forma mais grossa e objetiva, a “incorreição” ou “injustiça” inerente à con- duta.

4. Sobre a impossibilidade sistemática de que o dolo contenha

a consciência da ilicitude

Ainda na perspectiva causalista, dolo e culpa constituíam ele- mentos da culpabilidade, e toda valoração ético-jurídica realizável pela cognição humana estava contida no dolo94. Assim, a concepção predo- minante em algumas das vertentes causalistas era a de dolus malus, em que o dolo exigia, para que fosse caracterizado, a consciência da ilicitude95. Desde então, a referida concepção sofreu diversas críticas, especialmente pois essa dependência que o dolo tinha sobre a cons- ciência da ilicitude provocava graves dificuldades processuais e de po- lítica criminal, levando muitos crimes à total impunidade96. Afinal, se era difícil provar a cognição quanto aos elementos objetivos do tipo penal, tornava-se praticamente impossível fazê-lo sobre a valoração ético-jurídica feita pelo agente no momento da prática da conduta97.

Também por essa razão é que quando as teorias finalistas trou- xeram o dolo para o tipo penal, cingiram-se os componentes da cog- nição entre o elemento cognitivo do dolo, contido no tipo subjetivo e referido ao tipo objetivo, e a consciência da ilicitude, contida na culpa- bilidade e referida à contrariedade entre conduta e sistema jurídico98. Essa observação ocorreu em razão das críticas anteriormente citadas e também pela necessidade de que a sistematização da teoria do crime pudesse ocorrer de modo mais coerente. Afinal, parece-nos um exage- ro que o desvalor inerente ao injusto penal necessite da consciência da

94 TOLEDO, Francisco de Assis. O erro no direito penal. São Paulo: Saraiva, 1977, p. 54. 95 Nesse sentido, vide as importantes observações de: DIAS, Jorge de Figueiredo. O problema da consciência da ilicitude em direito penal. 6 ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2009, p. 157.

96 MUNHOZ NETTO, Alcides. A ignorância da antijuridicidade em matéria penal. Rio de Janeiro: Forense, 1978, p. 81.

97 MUNHOZ NETTO, Alcides. A ignorância..., p. 82. 98 TOLEDO, Francisco de Assis. O erro..., p. 70-71.

ilicitude, bastando a cognição mais breve e dentro dos limites estritos do tipo penal objetivo99. Quanto às leis penais em branco, a questão não é exatamente se o dolo pode conter essa espécie de valoração e ser referido a seu elemento de complementação, pois ele poderá. Ao contrário, trata-se de perguntar se para a caracterização do dolo é ne- cessário que o agente entenda que sua conduta contraria o sistema jurídico, conceito que não nos parece o mais adequado, apesar de ad- mitirmos que a diferença entre os objetos do dolo e da consciência da ilicitude se torna mais sutil nas leis penais em branco100. Vale ressaltar que o dolo pode abarcar valoração ético-social, como aquela da impu- tação objetiva, mas apenas se for referida a um tipo concreto e especí- fico, não de forma ampla como é o caso da ilicitude.

Assim, destaca-se que o dolo pode exigir valoração sobre o com- plemento da lei penal em branco, mas jamais poderá exigir ou conter a consciência da ilicitude ou, em outras palavras, a valoração sobre a contrariedade da conduta e todo o sistema jurídico. Por certo, vê-se que a consciência da ilicitude sequer depende do tipo penal objetivo ou de quaisquer dos elementos a ele inerentes, sendo mesmo irrele- vante se o tipo penal aplicável em determinado caso é uma lei penal em branco ou não. Grosso modo, a consciência da ilicitude independe da completude ou não da lei penal incriminadora e também de seu eventual elemento de complementação. Ou seja, no caso apresentado acima e no que concerne à consciência da ilicitude, não importa se X sabia ou não da autorização como constitutiva do tipo penal, mas sim se ele tinha alguma razão para acreditar que essa autorização tor- nava sua conduta permitida pelo sistema jurídico. O fato é o mesmo, a autorização, mas as duas formas com que pode atuar na cognição são totalmente distintas. Caso não exista a autorização, haverá erro de

99 ZAFFARONI, Eugenio Raul [et al.]. Derecho penal: parte general. 2ª ed. Buenos Aires: Ediar, 2002, p. 519.

100 Provavelmente essa sutileza se dá, pois, a circunstância fática que ensejou o erro pode ser a mesma: ausência de autorização para extrair as árvores. Mas a forma como ela repercute na consciência do indivíduo pode seguir dois caminhos distintos, inci- dindo diretamente no tipo penal objetivo ou de forma mais ampla, na ilicitude.

proibição desde que X tenha errado não quanto ao tipo do art. 50-A da Lei nº 9.605/1998, mas sim quanto à proibição101 de sua conduta.

No documento Pedidos dessa obra: experteditora.com.br (páginas 70-74)