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1 Brasil, terra prometida

2.1 Jorge Mautner nos anos 70

2.2.2 Divisão do espólio

Com efeito, o reverso da suspeita sobre um fardo do “ismo”, como captura pelos poderes, foi a disputa histórica pelo legado do movimento. Posteriormente, o Tropicalismo se tornou “social e comercialmente” celebrado “nos seus aniversários.”134

Dessa maneira, criou-se uma divisão na história da moderna cultura artística brasileira que separava um antes e depois: pré-tropicalismo, tropicalismo e pós-tropicalismo.135

O que conferiu, paulatinamente, um aparato de prestígio aos participantes. Sem nenhuma pretensão de inventariar as comemorações, faremos a seguir algumas alusões sumárias a problemática da legitimação cultural da Tropicália. Para isso, levamos em conta que as comemorações buscam constituir uma “linguagem pública” normatizadora. O propósito desses rituais institucionais coletivos é identificar e filiar de acordo com interesses políticos.136

Em 1983, no aniversário do movimento, a oposição Tropicalismo/Tropicália é

133 Ibidem.p.131-134.

134 PATRIOTA, Rosângela. A cena tropicalista no Teatro Oficina. História, no 22, São Paulo.p.135-154. 135 CASTELO BRANCO, Edwar de Alencar. Todos os dias de Paupéria: Torquato Neto e a invenção

da tropicália. São Paulo: Annablume, 2005.p.118.

retomada por Luciano Figueiredo através da reminiscência da atuação combativa de Hélio Oiticica:

TROPICÁLIA foi e É TROPICÁLIA UMA INVENÇÃO! Certamente nunca um ismo. O que em seguida passou a ser chamado Tropicalismo é outra história. Seu Genial inventor, o maior artista brasileiro de todos os tempos, Hélio Oiticica, chamou TROPICÁLIA a esta sua obra que foi uma das estações-limite em sua trajetória, uma ESTAÇÃO PRIMEIRA, ao muito que se seguiu.137

Em 1987, na comemoração dos 20 anos da Tropicália realizado pelo SESC- Pompéia de São Paulo, o problema do nomeação acompanhou outras questões como a origem do movimento, a lista das obras e sujeitos que compõem o universo de realizações e a ligação com a antropofagia.

Nessa comemoração o escritor e designer Rogério Duarte, um dos integrantes do Tropicalismo, falava da inadequação do nome ao estado de coisas: “O Tropicalismo, embora ultrapasse o seu próprio nome, é a possibilidade da cultura e da vida do Brasil, porque nós somos mesmo tropicais.” Marcelo Nitsche argumentava que “com o nome Tropicália é batizado todo um período de descobertas dos valores nacionais.” Edélcio Mostaço entendia que o Tropicalismo “como gesto” devia ter as origens buscadas “no teatro”, destacando a atuação de Zé Celso.138

Na comemoração do aniversário de 30 anos, realizada na UnB, as problemáticas da nomeação, das conexões com os modernismos de 22 e da feição interartística do movimento ainda são discutidas. A essas questões foi acrescentado a leitura da Tropicália sob o prisma da globalização.

O político e jornalista Fernando Gabeira, participante da luta armada contra a ditadura, pede suas desculpas históricas pela anterior incompreensão do significado do movimento. Ele reavalia suas posições iniciais ao afirmar que “a base do Tropicalismo

137 FIGUEREIEDO, Luciano. Língua do Re. In: Leia Livros, setembro de 1983 apud COELHO,

Frederico. Eu, brasileiro, confesso minha culpa e meu pecado: cultura marginal no Brasil das décadas de 1960 e 1970. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.p.131.

era absolutamente correta”. Nessa perspectiva é aberta uma reflexão sobre a brasilidade: “Essa busca da identidade, essa busca do Brasil, o que é o Brasil, quem somos nós, porque nós somos diferentes e o que caracteriza a nossa diferença, no meu entender estava presente no Tropicalismo.” Assim, a atualidade do “movimento” estaria na sua capacidade de proporcionar a reflexão sobre o país a partir da esfera mundial: “ajudar a nos redefinirmos como cultura num momento de globalização.”139

Esses argumentos se armam no reforço da legitimidade e poder do Tropicalismo em pelo menos dois sentidos. Primeiro, por relacioná-lo a construção de uma memória de vitória dos tropicalistas sobre os pensamentos “limitados” dos nacionalismos de esquerda, pois o Tropicalismo, “transformado em monumento e lugar de memória”, se tornou a “verdadeira medida crítica para avaliar a cultura de esquerda.”140

A segunda razão está ligada a sua identificação com a abertura cultural brasileira para o mundo. Assim, Hélio Oiticica “passou a ser celebridade global” a partir de um processo de canonização. A visualização dos tropicalistas da “fase da cultura internacional capitalista na qual estavam inseridos” permitiu que o olhar contemporâneo se sentisse próximo “das possibilidades interpretativas que o Tropicalismo abriu. Mensageiro tempestuoso do porvir em sua época, ele” se tornou uma “relíquia sedutora do passado.”141 Nas décadas seguintes o movimento adquire

visibilidade não apenas no Brasil, mas também no mundo - principalmente no EUA.142

Desse modo, sobretudo a partir dos anos noventa, os “debates sobre o movimento tendem a dizer respeito à globalização e seu impacto sobre a cultura, a economia e a política brasileira.”143 Gilberto Gil reforça essa tendência ao propor a

Tropicália como “o primeiro movimento pós-moderno no Brasil, porque já advogava a

139 GABEIRA, Fernando. Fernando Gabeira. In: CYNTRÃO, Sylvia Helena. (org.) A Forma da Festa.

Tropicalismo: a explosão e seus estilhaços. Brasília: Editora Unb, 2000.p.73-85.

140 NAPOLITANO, Marcos. Coração Civil: A vida cultural brasileira sob o regime militar (1964-1985).

Ensaio histórico. São Paulo: Intermeios, 2017.p.147.

141 AGUILAR, Gonzalo. Hélio Oiticica, a asa branca do êxtase: arte brasileira de 1964-1980. Rio de

Janeiro: Anfiteatro, 2016.p.129-196.

142 DUNN, Christopher. Brutalidade Jardim: A tropicália e o surgimento da contracultura brasileira.

São Paulo: UNESP, 2009.p.232-236.

fragmentação, a dissociação, a simultaneidade”.144 Ele entende que o “‘holismo’

cultural” contemporâneo tem “o seu primeiro momento de visão no Tropicalismo, se tornou uma maneira natural de ver a cultura e a própria política do mundo de hoje.” O movimento teria antevisto “aquilo que o Edgar Morin e todos os estudiosos chamam de complexidade ou, como querem outros com suas nuanças semânticas, essa simultaneidade (em) que vivemos hoje.”145

Esse aspecto de mensagem multicultural do Tropicalismo também pode ser encontrado, em alguma medida, em Caetano Veloso. Ele chegou a enfatizar no legado tropicalista “as qualidades singulares da cultura brasileira”. Nesse sentido, paradoxalmente, o retrato do Tropicalismo “parece menos com uma crítica pesarosa das contradições da modernidade brasileira do que com um arauto de novas formas de produção cultural e modelos de sociabilidade para o novo milênio.”146 Essa situação

levou alguns a afirmarem que, no limite extremo, a Tropicália teria se tornado “uma ideologia cultural hegemônica no Brasil”.147

Essa configuração levou a crescente disputa por lugares de poder e autoridade de enunciação sobre a Tropicália. Tom Zé - como um daqueles que, por muito tempo, permaneceram à margem de algumas celebrações do Tropicalismo - forjou uma justa imagem dessas alterações após sua volta à cena através do auxílio do importante cantor e compositor norte-americano David Byrne em 1990. Ele afirmou: “David Byrne criou para mim uma nova vida e me tirou da sepultura onde eu fora enterrado na divisão do espólio do Tropicalismo.”148

Zé Celso, por sua vez, alertava em 1997 para que “a ideia da antropofagia ou do

144 GIL, Gilberto; ZAPPA. Regina. Gilberto Gil bem de perto. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,

2013.p.126.

145 GIL, Gilberto. Cultura Indômita. Tropicalismos e Tropicalidades. In: _____. OLIVEIRA, Ana. Disposições Amoráveis. São Paulo: Iya Omin, 2015.p.194.

146 DUNN, Christopher. Tropicália: modernidade, alegoria e contracultura. In: BASUALDO, Carlos.

(org.) Tropicália: Uma Revolução na Cultura Brasileira. São Paulo: Cosac Naify, 2007.p.61.

147 ALAMBERT, Francisco. A realidade tropical. In: NAPOLITANO, Marcos; CZAJKA, Rodrigo; SÁ

MOTTA, Rodrigo Patto (orgs.). Comunistas Brasileiros: cultura política e produção cultural. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2013.p.161.

tropicalismo” fosse considerada para além dos redutos musicais. Assim, ficaria claro que elas não se restringiriam ao “movimento dos baianos”. O Tropicalismo e a antropofagia fariam parte “de um movimento que pegou o Brasil todo em várias áreas.” Ele se coloca contra “os balanços que são feitos” ignorando o “aspecto de corpo sem órgãos da Tropicália.”149

Rogério Duarte chamaria atenção para a Tropicália “enquanto tentativa subversiva e transformadora” que “foi completamente esmagada”. Ela teria sido vencida pelo Tropicalismo, “de certa maneira, desprovido das suas implicações mais subversivas. Passa a ser fashion, se transforma num produto de consumo através de um adocicamento, de uma pasteurização, em que se absorvem elementos que já não eram mais tão tropicalistas”.150

Assim, segundo Rogério Duarte, o que se perdera era “uma preocupação muito mais profunda, ou seja, era um movimento totalizante de vanguarda, erudito também, que começou pelas artes plásticas e depois foi apropriada pela música popular através de Gil e Caetano”. O problema estaria na “deificação” dos cantores e compositores baianos, sendo esse o ponto onde “eles próprios começam a vacilar”. Contraposta a esse estado de coisas estaria “o outro lado da Tropicália”. Justamente aquele que foi reprimido.151

Rogério Duarte cita: “José Agrippino de Paula esquizofrênico; Torquato Neto, se suicidou com gás; Hélio Oiticica, overdose de cocaína; eu [Rogério Duarte], completamente marginalizado”. Teria acontecido “uma inversão de planos, ou seja, o que era o deflagrador passa a ser (...) o background.”152 Ele propõe, como Zé Celso,

uma crítica da restrição do movimento à “música popular” que mostraria como a

149 CORREIA, José Celso Martinez. Na boca do estômago [1997]. In: RUFFINELLI, Jorge; ROCHA,

João de Cezar de Castro (org.). Antropofagia Hoje? São Paulo: É Realizações, 2011.p.79.

150 DUARTE, Rogério. Tropicália revisitada. In: COHN, Sérgio. (org.). Rogério Duarte: encontros.

(Entrevistas). Rio de Janeiro: Azougue, 2009.p.224-225.

151 Ibid.

152 Ibid. Ideias reafirmadas pelo artista no documentário ROGÉRIO DUARTE, O TROPIKAOSLISTA. 88min. cor., son. Formato Digital. Direção: José Walter Lima. Produção: O2 Play,

“revolução gráfica” “foi abortada.” Afirmava ainda a necessidade de “acabar com esse uníssono e fazer uma Tropicália mais polifônica.”153

Nesse sentido, a luta pelos despojos foi marcada por concordâncias e discordâncias por quem são os líderes, núcleos, participantes, ideias fundantes, pais e filhos em um emaranhando onde discursos midiáticos e de memórias proliferam. Nesses extratos interpretativos o crítico e o apologético se tocam e se afastam.154

Contribuindo para formação de uma espécie de conflituosa “família” tropicalista dos quais podemos citar alguns membros.

Rogério Duarte, mesmo com suas críticas vindas de um dos lados menos focalizados do Tropicalismo, afirmaria: “Mas, desculpe a imodéstia, acho que eu sou o tropicalismo. Minha vida foi a encarnação do tropicalismo, que vivi como se fosse real, embora ele não tivesse acontecido.”155 Caetano Veloso foi considerado o “papa do

Tropicalismo” 156; Rita Lee via-se como “filha legítima do Tropicalismo”157; e Sérgio

Cassiano - participante do movimento manguebeat que foi muitas vezes relacionado a Tropicália - identificava-se tardiamente como “neto”.158 Diante disso, Jorge Mautner

afirmava seu lugar: “bondosamente Caetano e Gil me chamaram de pai, alguns diriam ‘o avô do Tropicalismo’.”159