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1 Brasil, terra prometida

4.1 Cultura Popular Revolucionária

4.1.4 Memórias do CPC

Em 1978, no período de abertura do regime de militar, é possível identificar uma revisão de percurso por parte de Ferreira Gullar. Sobre o período de engajamento no CPC ele nos diz:

Os erros cometidos nessa tentativa de levar arte e consciência política às massas proletárias, com o rebaixamento da qualidade estética, as sucessivas derrotas das esquerdas na América Latina, o drama desses longos anos de regime militar no Brasil, a clandestinidade, o exílio, todos esses fatores contribuíram, dia após dia, para corrigir a visão ingênua com que, nos primeiros momentos encarei as questões sociais e estéticas. (...) Sei que para o impasse da poesia e do homem não há soluções definitivas: pretendo que a poesia tenha a virtude de, em meio ao sofrimento e ao desamparo, acender uma luz qualquer. Uma luz que não nos é dada, que não desce dos céus, mas que nasce das mãos e do espírito dos homens.579

Esse julgamento não é uma exceção em meio a produção escrita sobre o CPC. A tentativa de abordá-lo no período anterior ao golpe civil-militar encontra inevitavelmente o problema das avaliações negativas que criaram extratos de memória. Esse processo tem seus começos logo após a instauração do regime de exceção de 1964 quando o programa de aliança das classes progressistas foi sendo recusado como eixo prático norteador.

Diante disso, foram tomando relevo várias dissidências no seio das esquerdas, tanto do ponto de vista da revisão do marxismo como dos que pregavam a luta armada. Na outra margem, a Tropicália, conforme discutido, colocava como alvo muitos dos principais estilemas da arte engajada. As ideias contraculturais se disseminavam gerando, em muitos casos, a ruptura com o que se havia feito até aquele momento.580

Olympio, 2010.

579 GULLAR, Ferreira. Uma Luz do Chão [1978]. In: ______. Poesia Completa, Teatro e Prosa. Rio

de Janeiro: Nova Aguilar, 2008.p.1070.

O citado ensaio de Roberto Schwarz realizava críticas severas contra a esquerda anti-imperialista. Ela seria regida por “uma espécie desdentada e parlamentar de marxismo patriótico, um complexo ideológico ao mesmo tempo combativo e de conciliação de classes, facilmente combinável com o populismo nacionalista”. A “noção de ‘povo’” era nada mais que “apologética e sentimentalizável, que abraçava indistintamente as massas trabalhadoras, o lumpenzinato, a intelligentsia, os magnatas nacionais e o exército.” E quanto aos cepecistas ele os condenava por não terem feito a devida revisão de suas estratégias políticas populistas.581

Assim, de modo geral, o “nacional-popular cepecista” tornou-se “símbolo de uma ação cultural autoritária, mistificadora”. Até mesmo a ação dos seus integrantes no pós-golpe passou a ser vista como “afeita às regras do mercado” e seu nacionalismo como passível de dissolver-se nos ideais ufanistas do regime ditatorial.582

Vianinha, um dos mais importantes personagens desse vanguardismo popular revolucionário, nesse mesmo período - que coincide simbolicamente com sua doença e morte aos trinta e oito anos - apontava os limites teóricos e práticos dos cepecistas:

Nós trabalhávamos em sindicatos, mas também com condições de trabalho realmente utópicas. Era quase que o prazer da existência dessas condições e dessa atmosfera, e a dedicação, a capacidade de nos dedicarmos a esse trabalho, isso era quase que mais importante que os resultados concretos, que os frutos reais. Era, vamos dizer, a paixão por uma atmosfera. A paixão pelo encontro do intelectual com o povo, que realmente para nós era incandescente e ao mesmo tempo romântico, informou muito mais a nós do que aos trabalhadores com que nós entravamos em contato. Eles continuavam com seus problemas salariais, de organização, de sindicatos, de lutas. E nós estávamos lá, dávamos uma pequena contribuição através de um espetáculo, mas aprendíamos muito mais com eles. (...) nós descobrimos que, a um certo momento, nós estávamos reduzindo esse

(1964-1968). In: _______; CZAJKA, Rodrigo; SÁ MOTTA, Rodrigo Patto (orgs.). Comunistas

Brasileiros: cultura política e produção cultural. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2013.p.326-327. 581 SCHWARZ, Roberto. Cultura e Política, 1964-1969. Alguns esquemas [1970]. In: O Pai de Família e outros estudos. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.p.73-100.

582 NAPOLITANO, Marcos. Coração Civil: A vida cultural brasileira sob o regime militar (1964-1985).

trabalho e essas conquistas de cultura a ir para o sindicato e fazer uma peça chamada Auto do Tutu Tá no Fim, de dez minutos: defendendo uma pessoa ganhar o aumento de salário, e não sobre os problemas culturais muito mais profundos da sociedade brasileira.583

Com o mesmo intuito de avaliar o CPC, mas com tom humorado e irônico, o cineasta Arnaldo Jabor relembrava no ano de 1972 a “doidera conscientizadora que se apossou dos artistas” que pretendiam “transformar os operários e camponeses em revoadas de torsos heroicos”. A “crença na arte como força política” que caracterizava as atividades cepecista - “mambebice revolucionária” - legou, segundo ele, a entrada da “paisagem social” rural e urbana na cultura brasileira. Uma busca do povo, no rastro de 22, generosa ainda que ingênua.584

Nos anos seguintes, em muitos depoimentos dos participantes do CPC, encontramos avaliações que se afastam e se aproximam dessas visadas através de filiações, identificações e distinções.585 Nelas os adjetivos mais cáusticos convivem

com os mais complacentes. Parte dos antigos integrantes encaram as atividades como tendo algum respaldo apenas quando vistas sob o ângulo do momento anterior a deflagração da interrupção do período democrático.

A exemplo do que disse Carlos Estevam: “havia um reconhecimento dos problemas do país, vivia-se uma esperança, quase fundada numa certeza, de que o futuro ia ser melhor, mediante a ação e mobilização.”586 Entretanto, onde estava ausente

a compreensão das forças que indicavam que “por toda parte havia sinais do golpe.”587

Trata-se da frequente insistência de enfatizar a “visão romântica das coisas.”588 Esse

583 FILHO, Uduvaldo Vianna. Entrevista a Ivo Cardoso [1974]. In: PEIXOTO, Fernando (org.). Vianinha. Teatro. Televisão. Política. São Paulo: Brasiliense, 1983.p.177.

584 JABOR, Arnaldo. Debaixo da Terra, Pasquim, 4 de Janeiro de 1972 apud HOLANDA, Heloísa

Buarque de. Impressões de viagem: CPC, vanguarda e desbunde (1960-70). São Paulo: Brasiliense, 1981.p.28-29.

585 CATROGA, Fernando. Memória, História e Historiografia. Rio de Janeiro: FGV, 2015.p.29. 586 ESTEVAM, Carlos. Carlos Estevam. In: BARCELLOS, Jalusa. CPC da UNE: uma história de paixão

e consciência. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1994.p.72.

587 VEREZA, Carlos. Carlos Vereza. In: BARCELLOS, Jalusa. CPC da UNE: uma história de paixão e

consciência. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1994.p.131.

romantismo é um elemento caraterizador tão frequente quanto o sentimento de que o CPC foi um movimento abortado no momento em se preparava para rever suas posições e alcançar a consistência desejável para as ações culturais.589

A produção acadêmica em torno do CPC toma fôlego a partir de 1978. Os trabalhos pioneiros revelavam grande proximidade pessoal com o objeto de estudo. Já na década de oitenta - justamente a parcela mais ampla das pesquisas - foi demandada por universidades, órgãos culturais oficiais e mercado editorial.

Em parte esses novos estudos reduziram suas análises apenas a apreciação do Anteprojeto do Manifesto. O que gerou certa leitura homogeneizadora. Somam-se a essa camada interpretativa as obras que tomam caráter de apresentação panorâmica das atuações do CPC.590 De modo geral, mesmo em vista das pungentes críticas e

autocríticas retrospectivas, é possível vislumbrar o propósito em que se empenharam cepecistas: justiça social, liberdade, igualdade, autodeterminação nacional, etc.

Essas “boas intenções”, sob as quais pesam a memória do fracasso ou da insuficiência, não deixam de indicar o que foram aquelas agitações: encenações em público, improvisações em busca da revolução, a fuga da polícia, o desvio da censura, etc. Não ignorando essas “avaliações críticas” é possível ter em vista o “impacto dessa experiência” e os seus identificáveis equívocos.591

A abordagem da temporalidade agenciada pela sua produção literária é uma das muitas maneiras de pensar os lugares ocupados pelas atuações político-culturais do CPC na moderna cultura artística brasileira. Devemos então retomar em detalhes o problema do romantismo e do marxismo romântico que havíamos discutido a propósito dos surrealismos de São Paulo, mas agora a partir da esquerda cepecista.

uma história de paixão e consciência. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1994.p.241.

589 GULLAR, Ferreira. Ferreira Gullar. In: BARCELLOS, Jalusa. CPC da UNE: uma história de paixão

e consciência. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1994.p.216-217.

590 BETTI, Maria Silva. Uduvaldo Vianna Filho. São Paulo: Editora da USP, 1997.p.82-86 traça um

panorama dessa produção.

591 GARCIA, Miliandre. Do teatro militante à música engajada: A experiência do CPC da UNE (1958-