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Encontro com a Bahia em Londres

1 Brasil, terra prometida

2.1 Jorge Mautner nos anos 70

2.1.2 Encontro com a Bahia em Londres

Entre sua volta momentânea e o retorno definitivo um encontro terá consequências para o reestabelecimento de Mautner no cenário intelectual brasileiro. A compreensão de sua atuação no campo musical é inseparável dessa viravolta. Em 1970 ele vai a Inglaterra onde conhece Caetano Veloso e Gilberto Gil. Mautner realiza na capital londrina seu único filme, O Demiurgo, que tem como atores principais

78 DIAS, Mauro. O brilho da estrela anti-sistema de estrelas. O Estado de São Paulo, p.42, 16 de Abril

de 2001.

79 PLASSE, Marcel. Jorge Mautner proclama: maldito, nunca mais. O Estado de São Paulo, p.42, 16 de

Abril de 2001.

80 Completam a discografia: Árvore da Vida (1988), Pedra Bruta (1993), Estilhaços de Paixão (1997), Ser da tempestade 40 Anos de Carreira (1999), Eu Não Peço Desculpas (2002) com Caetano Veloso,

Revirão (2007) e Não Há Abismo Em Que o Brasil Caiba (2019). Os registros de dois shows,

originalmente acontecidos respectivamente em 1972 e 1987, foram lançados como álbuns: Para Detonar

a Cidade (2014) e Jorge Mautner e Gilberto Gil: o poeta e o esfomeado (2015).

81 NAPOLITANO, Marcos. Cultura brasileira: (1950-1980). São Paulo: Contexto, 2001.p.108. 82 Idem. MPB: a trilha sonora da abertura política (1975/1982). Estudos Avançados 24 (69), 2010.p.391.

justamente os baianos. Estes não cansarão de narrar essa aproximação em um momento difícil de suas trajetórias, tornando público sua admiração pelo artista kaótico.

Caetano Veloso dirá que o encontro foi decisivo para sua “formação ideológica”. Junto com o seu antípoda intelectual, o poeta e filósofo Antônio Cícero, Mautner estimulava a “inteligência” do pensador baiano na condição de “irracionalista radical, chutador assistemático, exemplo vivo do que Décio Pignatari chamara de ‘nova barbárie’”. O anfitrião assistia, na casa 16 da Rua Redesdale, Mautner falar das lutas políticas mundiais, da filosofia alemã (Nietzsche e Heidegger, sobretudo) e narrar sua trajetória pessoal repleta de contradições. Mesmo sendo “influente na fase londrina” isso não teria impedido um “distanciamento crítico frequentemente temperado com gargalhadas.”83 Já o encontro com Gilberto Gil permitiu uma troca artística que se

manifestou nas parcerias em composições, bem como em shows e posicionamentos ideológicos comuns nos anos seguinte.84

Mautner descreveu mais de uma vez esses contatos como detonador de mudanças em sua trajetória:

Depois veio a primavera e eu e Ruth fomos pra Londres subitamente num avião a jato. E foi lá, foi lá que conheci Caetano Veloso e Gilberto Gil. (...) Com Caetano eu tocava (acompanhando fazendo ecos e fraseados) sambas antigos, de Noel e Caimmy, de Ismael e Ary Barroso, todo aquele repertório popular de Caetano. Com Gil eu tocava acompanhando o seu novo som africano-rock-heavy- brazilliance-electricity. Às vezes predominava o jazz, às vezes rock & baião. Falava-se muito de tudo. Inumeráveis discussões sobre Nietzsche, Hegel, estruturalismo, discos voadores, Dionisius e Apolo. Quando eu voltava para a casa do Arthur que me hospedava lá em Londres, eu vinha pela madrugada (eu e Ruth) pensando naquelas maravilhosas criaturas que eu havia conhecido. Eu, um mitólogo massagista e lavador de pratos em New York, de repente na

83 VELOSO, Caetano. Verdade tropical. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.p.433-442. Essa

relação de aprendizado com Jorge Mautner foi reafirmada no texto introdutória a edição comemorativa de 20 anos do livro: Idem. Verdade tropical. 3ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.p.20 e 38.

84 GIL, Gilberto; ZAPPA. Regina. Gilberto Gil bem de perto. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,

2013.p.151 e COHN, Sérgio. (org.). Gilberto Gil: encontros. (Entrevistas). Rio de Janeiro: Azougue, 2007. p.283-284.

Bahia em plena Londres! (...) Os baianos são o mel, a bondade, a ternura, o cristianismo, a generosidade, o amor de um Brasil que só agora descobri através deles. Então eu disse para Caetano e Gil: - “VOCÊS ME TIRARAM DA LAMA.” 85

A “Europa do refugiado do nazismo, descendente de multinacionalidades caucasianas, mestiço produto da 2ª Guerra Mundial e por ela vacinado e ensinado, ressuscitado nas Américas, encontra ex-escravos historicamente falando, o negro Gil, e o mulato Caetano.”86 Com eles Mautner conhece “um Brasil diferente” que iria muito

além de São Paulo e do Rio de Janeiro.87

A nova amizade e coalizão de forças acontecia quando se desequilibrava, pelo menos inicialmente, aquelas feitas anteriormente e na primeira hora de eclosão da Tropicália. O momento, por exemplo, de críticas incisivas de Caetano aos poetas concretos.88 O que significava, no caso de Mautner, a oposição entre a nova e as velhas

alianças. Hélio Oiticica se manifestou contra ele no momento em que tentava rearticular sua produção artística a partir do exílio em Nova York.89 Torquato Neto, que por essa

mesma época se afastava de modo crítico de Gil e Caetano, dirá sobre o filme O Demiurgo: “a curtição de Mautner, o filme propriamente dito, não existe, é ridícula e paupérrima.”90 Guilherme Araújo, empresário dos baianos, também não demorou a se

indispor com a nova companhia.91

85 MAUTNER, Jorge. Caetano, Gil e Eu. Pasquim, 10 de junho de 1971. In: In: COHN, Sérgio; DE

FIORE, Juliano. (orgs.). Jorge Mautner. (Trajetória do Kaos). Rio de Janeiro: Azougue, 2002.

86 Idem. Panfletos da Nova Era [1980]. In: Mitologia do Kaos. (vol. 2). Rio de Janeiro: Azougue,

2002.p.21.

87 Idem. Bomtner. Por Jary Cardoso [1972]. In: COHN, Sérgio. (org.). Jorge Mautner: Encontros.

(Entrevistas). Rio de Janeiro: Azougue, 2007. p.28.

88 VELOSO, Caetano. Londres, outubro de 70. In: BENTES, Ivana (org.) Glauber Rocha: cartas ao

mundo. São Paulo: Companhia das letras, 1997.p.376 e Idem. Bondinho [1972]. In: Alegria, Alegria. Uma Caetanave organizada por Waly Salomão. Rio de Janeiro: Pedra Q Ronca, ?.p.122.

89 “Jorge influencia toda a família baiana. já viu, né!”. OITICICA, Hélio. Babylon; june 18, 71. In:

PIRES, Paulo Roberto (org.). Torquatália: do Lado de dentro. Rio de Janeiro: Rocco, 2004.p.218.

90 NETO, Torquato. 21, 7. [1971]. In: PIRES, Paulo Roberto (org.). Torquatália: do Lado de dentro.

Rio de Janeiro: Rocco, 2004.p.237.

91 MAUTNER, Jorge. Panfletos da Nova Era [1980]. In: Mitologia do Kaos. (vol. 2). Rio de Janeiro:

O literato do Kaos estave envolvido, ao lado de Caetano, nos polêmicos confrontos entre cineastas “marginais” e cinemanovistas.92 Juntos também abrem

dissidência com os membros do Pasquim. Nesse jornal ambos haviam colaborado intensamente. Entretanto, eles acabaram entrando em choque com Jaguar, Henfil e Millôr Fernandes que nomeavam pejorativamente os músicos vindos da Bahia de “baihunos”.93

Mautner participa assim ativamente dos principais debates e polêmicas em que estavam envolvidos os novos amigos. Contribuindo para que sua figura passasse a percorrer uma rede de conexões com o Tropicalismo. A associação entre o movimento de 67/68 e a contracultura também contribuía para essa ligação.94 Essa união não

deixava de envolver conflitos e demarcações político-estéticas em torno dos possíveis significados da Tropicália da qual Caetano e Gil foram os que obtiveram maior visibilidade. Desse modo, Mautner não estava imune a todos os efeitos problemáticos do processo de constituição histórica do movimento. Esse é o problema que retomaremos a seguir.

2.2 Tropicália: explosão e composição do monumento