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Encontro com Mário Schenberg

1 Brasil, terra prometida

4.2 Literatura romântico-revolucionária

4.2.3 Encontro com Mário Schenberg

Jorge Mautner, introduzido no campo letrado pela direita e lançado na revista Diálogo, consegue publicar seu primeiro livro, Deus da Chuva e da Morte em 1962. Nesse momento, ele frequenta a casa de Paulo Bonfim - poeta e intelectual paulistano de prestígio e próximo da casa dos Ferreira da Silva - que não apenas estabelece o contato com a editora Martins Fontes, por onde o livro é editado, mas também o apresenta na TV e no rádio.652 Entretanto, nosso escritor já alimentava sua conflituosa

relação com a utopia comunista.

No seu primeiro livro ele havia escrito: “Satanás gritou para mim: você, Mautner, com tudo isto, todos estes irracionalismos, vai acabar é no P.C e vai ser um dos membros mais integrados nele. Você achará um fascínio - aliás você já o sente - pela máquina maquiavélica, inflexível, da irretorquível lógica histórica.”653 No

fragmento Arthur Nuovo um personagem “sonha” com o “grande Barbudo da esperança

651 ROCHA, Glauber. Para Cacá Diegues. Paris, junho, 1973. In: BENTES, Ivana (org.) Glauber Rocha:

cartas ao mundo. São Paulo: Companhia das letras, 1997.p.457-458.

652 MAUTNER, Jorge. Kaos [1963]. In: Mitologia do Kaos. (v. 1). Rio de Janeiro: Azougue,

2002.p.586 ;615. Mautner convivia, no apartamento da Avenida Ipiranga de P. Bonfim, com: Câmara Cascudo, Manoelito de Ornellas, Guilherme de Almeida, etc. O anfitrião, ocupante da cadeira 35 da Academia Paulista de Letras, se queixou, em 2002: o pupilo “assim como como chegou a nossa casa, partiu um dia com seu bandolim e sua genialidade. Nunca mais nos encontramos (...). RASEC, César.

Jorge Mautner em Movimento. Salvador: Do autor, 2004.p.61-62. Em 2016 Mautner dedicou seu livro

MAUTNER, Jorge. Kaos Total. São Paulo: Companhia das Letras, 2016 a Bonfim.

653 Idem. Deus da Chuva e da Morte [1962]. In: Mitologia do Kaos. (vol. 1). Rio de Janeiro: Azougue,

(...) [que] olha com seu olhar messiânico o mar azul e lindo das Antilhas e no ar existe um cheiro de açúcar.”654 Ele sentia-se, em alguma medida, próximo do comunismo.

O ponto decisivo da viravolta partidária é o encontro com o físico, pensador da arte e importante político do PCB em São Paulo, Mário Schenberg. Essa opção política o afastou do patrocínio da intelectualidade conservadora com quem havia mantido estreito contato. Dessa forma, a escolha não deixou de ser feita a partir de uma outra caução.

Esse coup de foudre é narrado por Mautner em vários momentos. Ele nos fala, em 1984, como ocorreu esse contato:

Conheci o Prof. Mário Schenberg por volta de 1962. Eu participava de um movimento, o Kaos, e certa vez estava com José Roberto Aguilar na sede do movimento quando aparece o Prof. Mário Schenberg com seu charuto. E veio logo discutindo alguns pontos de vista sobre as coisas mais importantes, que meu surrealismo de então nem sonhava, como o Zen-budismo, Jesus etc. E o homem vinha com mais novidades do que todos nós. A Física Quântica e o Taoísmo, o Zen-budismo, o Surrealismo... era como se a história tivesse reencontrado tudo o que ela tinha aprendido... 655

Por ocasião da morte do cientista pernambucano ele nos dá o seguinte relato pessoal: “Quando eu me lembro do professor Mário Schenberg eu me lembro do meu pai. Por quê? Ora... ambos me ensinaram quase tudo que eu sei, tudo que sou. Além disso, ambos eram tão fascinantes que é difícil separá-los na minha memória.”656 O

físico judeu possibilitou a Mautner integrar o PCB ao inseri-lo na célula cultural do Comitê Central.

No renomado cientista Mautner encontrará um homem de esquerda anticonvencional. Como intelectual ele impunha sua autoridade no Partido Comunista

654 Ibidem.p.202.

655 Idem. MAIA, Dulce. Jorge Mautner e Dulce Maia. In: GUINSBURG, Gita K; GOLDFARB, José

Luiz. (org.). Mário Schenberg: Entre-Vistas. São Paulo: Perspectiva, 1984.p.90.

656 Idem. Mário Schenber, um memorial. Revista Shalom, março de 1991. In: COHN, Sérgio. (org.). Jorge Mautner: Encontros. (Entrevistas). Rio de Janeiro: Azougue, 2007. p.104-105.

sem aderir a qualquer dogmatismo.657 No campo científico M. Schenberg desenvolveu

importantes trabalhos na área de física moderna, com destaque para a mecânica quântica e a astrofísica. Ele foi criador, junto George Gamow, da conhecida teoria do Efeito Urca que trata da perda de energia nuclear dos átomos.658

M. Schenberg trabalhou com físicos de renome na Europa como Enrico Fermi e W. Pauli. Ele foi, ao mesmo tempo, um destacado crítico de arte publicando textos e participando de júris, inclusive das Bienais de São Paulo. Ele se interessava pelos modernismos, mas especialmente pelo que chamava de arte primitiva e arte mágico- fantástica que reconhecia em vários artistas como Teresa d’Amico, M. Gruber, J. R. Aguilar (amigo íntimo de Mautner), entre outros.659

As reflexões de M. Schenberg passavam por uma de suas referências fundamentais: o Taoísmo. Para ele esse pensamento pode ser compreendido como “uma concepção dialética do Cosmos como luta e mútua metamorfose de dois princípios opostos, o Yang e o Yin, integrados na unidade do Tao. Essa imagem conserva certamente um grande valor poético e existencial.”660 A essa dialética ele acrescentava

ainda a do marxismo que utilizava para interpretar a História.

Com interesses que iam desde as religiões antigas ao hermetismo e o Zen- budismo, o físico não deixava o homem de ciência divorciado do pensador das religiões e das artes. Nele as modernidades artística e cientifica não eram eternas rivais inconciliáveis. Tampouco o interesse pela religião significava um mergulho cego, irracional e abismal no Ser. Para M. Schenberg não se poderia desconsiderar os planos distintos a que pertencem arte e ciência. No entanto, ao mesmo tempo, asseverava: “O

657 RIDENTI, Marcelo. Em Busca do Povo Brasileiro: artistas da revolução, do CPC à Era da Tv. 2ª Ed.

São Paulo: Editora Unesp, 2014.p.52.

658 SCHENBERG, Mário. Diálogos com Mário Schenberg. São Paulo: Nova Stella, 1985.p.29-30. 659 Idem. Teoria e crítica de arte [1980]. In: COHN, Sérgio. (org.). Mário Schemberg: encontros.

(Entrevistas). Rio de Janeiro: Azougue, 2011. Schenberg foi próximo de importantes artistas brasileiros como Volpi, Lígia Clarck, F. Gullar, H. de Campos, D. Pignatari, Jorge Amado, etc. Ver seus depoimentos em: GUINSBURG, Gita K; GOLDFARB, José Luiz. (org.). Mário Schenberg: Entre-Vistas. São Paulo: Perspectiva, 1984.

660 SCHEMBERG, Mário. Reflexões sobre Jorge Mautner [1965]. In: COHN, Sérgio. (org.). Mário Schemberg: encontros. (Entrevistas). Rio de Janeiro: Azougue, 2011.p.19.

raciocínio é importante para provar as coisas, mas é a intuição que mostra a solução dos problemas.”661

M. Schenberg discutia as relações históricas entre arte e tecnologia em que se cruzam no horizonte explicativo estética, religião e a ciência do século XX;662

aproximava as descrição do universo feitas pela física moderna e pelas religiões orientais; e propunha a parafísica como convergência parapsicológica entre biologia e mecânica quântica, onde se constataria “que tudo é interligado.”663 Saltando da arte ao

hinduísmo ou da física dos quanta à cosmogonias orientais, ele mostrava as intersecções entre os diferentes modos de pensar.

A partir desse contato, Jorge Mautner pensará a relação ciência-mito-arte- política com instrumental menos excludente em relação ao que encontrou na casa da Rua José Clemente. O que resultará em toda sorte de combinações no seu pensamento. Desse modo, houve intensa troca intelectual entre Mário Schenberg e Jorge Mautner a partir de estilemas comuns aos dois: marxismo, religião, filosofia, arte e política. Os intensos diálogos deixariam marcas visíveis na literatura do Kaos. Assim, ficaria claro para o jovem escritor que havia a possibilidade de manter-se, concomitantemente, marxista e pensador heterodoxo.

Com seu professor Jorge Mautner pôde entender que “realismo socialista era uma bobagem stalinista”, mas também, por outro lado, que “nem o impressionismo, nem o cubismo, nem o surrealismo seriam fortes o suficiente para representarem o que significa a revolução no marxismo mundial e que isto só poderia ser feito em forma e conteúdo de mitologia.” A própria mitologia do Kaos seria, portanto, o complemento necessário ao materialismo histórico.664

No entanto, a adesão partidária de Jorge Mautner ao compromisso

661 Idem. O valor do pensamento [1984]. In: COHN, Sérgio. (org.). Mário Schemberg: encontros.

(Entrevistas). Rio de Janeiro: Azougue, 2011.p.150.

662 Idem. Arte e tecnologia [1973]. In: COHN, Sérgio. (org.). Mário Schemberg: encontros.

(Entrevistas). Rio de Janeiro: Azougue, 2011.p.150.

663 Idem. Diálogos com Mário Schenberg. São Paulo: Nova Stella, 1985.p.89.

664 MAUTNER, Jorge. Três décadas na Trincheira do Kaos [1989]. In: COHN, Sérgio. (org.). Jorge Mautner: Encontros. [Entrevistas]. Rio de Janeiro: Azougue, 2007.p.172.

revolucionário, via Schenberg, não foi realizado sem traumas. Esse evento está em permanente torção na sua escritura. Ele já havia intuído que as acusações e o desprezo da “chamada classe de intelectuais de esquerda”, onde “se é comunista ou nada”, era a manifestação da exigência de alinhamento muitas vezes intransigente.665

Os posicionamentos de Jorge Mautner nos livros e textos de jornal indicam que sua imagem de surrealista e beatnik o deslocou dentro da cultura política comunista. No Anteprojeto do Manifesto os escritores do tipo inconformado - como Mautner, Roberto Piva e Claudio Willer - eram alvos de rejeição, pois nos rebeldes eram criticados o que seriam “atos epidérmicos”, “a revolta dispersiva”, “a insatisfação inconsequente”, “a atitude negativa”, “o idealismo”, “as disposições subjetivas momentâneas”, “o descontrole dos meios expressivos” e a “recusa do povo”.666 No

Auto-Relatório, peça cepecista de 1963, há a crítica humorada as “deprecações iradas do jovem beatnik”.667

Embora tenha assumido a militância, Mautner discordava do pensamento hegemônico do CPC sobre a normatização da criação artística. Sem dúvida aquilo que ele escrevia só poderia parecer, sob o ponto de vista de uma arte popular revolucionária, como uma “orgia auto-destruidora das formas”.668 O literato do Kaos teria sido

diretamente criticado pelos cepecistas ao estigmatizarem o que fazia como “surrealismo alienado, fascismo, misticismo, ópio.”669

É também no processo de construção de sua literatura que Mautner expressava o quanto a esquerda teria rejeitado sua obra. Em seus textos afirma ser “ridicularizado

665 MAUTNER, Jorge. Deus da Chuva e da Morte [1962]. In: Mitologia do Kaos. (vol. 1). Rio de Janeiro:

Azougue, 2002.p.296.

666 ESTEVAM, Carlos. Anteprojeto do Manifesto do Centro de Cultura Popular, Redigido em março de

1962. In: HOLANDA, Heloísa Buarque de. Impressões de viagem: CPC, vanguarda e desbunde (1960- 70). São Paulo: Brasiliense, 1981.p.126-127.

667 BETTI, Maria Silva. Uduvaldo Vianna Filho. São Paulo: Editora da USP, 1997.p.119.

668 ESTEVAM, Carlos. Anteprojeto do Manifesto do Centro de Cultura Popular, Redigido em março de

1962. In: HOLANDA, Heloísa Buarque de. Impressões de viagem: CPC, vanguarda e desbunde (1960- 70). São Paulo: Brasiliense, 1981.p.137.

669 MAUTNER, Jorge. Sobre as patrulhas ideológicas [1979]. In: COHN, Sérgio. (org.). Jorge Mautner:

e caçoado e criticado pelo realismo socialista”.670 Para alguns ele seria “VÍTIMA DA

PROPAGANDA EM TODOS OS SENTIDOS!”671, para outros um mistificador e

demagogo.672 Mas, o Kaos era, em todo caso, uma recusa da visão do CPC sobre a arte:

é a luta contra todos os dogmáticos e inimigos da vida que querem enquadrar a arte e a vida, que querem direções rígidas para a arte. A intuição é um dado do conhecimento. Não há limitações possíveis! A arte e a vida são impulsos, irrupções, explosões. Não se pode conter o grito em fórmula nenhuma! Liberdade total de expressão artística e existencial!673

Ele - mesmo fazendo parte institucionalmente da ala comunista - não se esquivava de realizar críticas aos cepecistas. De fato, seus julgamentos devem ser sopesadas a partir do fato de que em São Paulo o CPC teve uma atuação menos pungente do que no Rio de Janeiro. O que deve ter favorecido esse posicionamento mais direto. A atuação cepecista paulista - principalmente em sindicatos - estava próxima do PCB e do Grupo Arena e não da UNE. Também dividido em setores (cinema, teatro e artes plásticas) sua instabilidade e conflitos internos levaram ao seu fim antes de 1964.674

Mas, é uma das figuras de maior visibilidade do CPC carioca que levam Mautner a fazer as referências mais ríspidas. Contra Ferreira Gullar ele lança acusações em sua coluna Bilhete do Kaos no jornal Última Hora, em 1 de fevereiro de 1964:

Minha missão é destruir o CPC. Pois todo artista é um sado- masoquista. A consciência do artista sempre está se sentindo culpada, como se tivesse praticando um crime. Sendo assim, qualquer propaganda bem bolada atinge o artista, ele fica com medo de ser alienado, então se estraga. O maior crime que o CPC cometeu foi assassinar poetas e pintores em nome da revolução, enquanto se deve

670 Idem. Kaos [1963]. In: Mitologia do Kaos. (v. 1). Rio de Janeiro: Azougue, 2002.p.632. 671 Ibidem.p.607.

672 Idem. Vigarista Jorge [1965]. In: Mitologia do Kaos. (vol. 2). Rio de Janeiro: Azougue, 2002.p.88. 673 Ibidem.p.99.

674 Ver os depoimentos de Maurice Capovilla, Caio Graco e Gianfrancesco Guarnieri em BARCELLOS,

fazer o contrário, a revolução dentro da arte, dentro do próprio artista. O grave é que essa geração do CPC vai forjar a cultura de amanhã, conheço certo deles. Por isso minha missão é libertá-los da sanha de neuróticos, como Ferreira Gullar, por exemplo, que encontrou no suposto “esquerdismo” o remédio para a sua paranoia, e agem como se fossem santos, dividindo aqui, o bem e o mal, numa atitude de selvagerismo anticultural, que no fundo é uma frustração.675

Entretanto, essas afirmações não devem elidir o fato de que, ao ser contra o CPC, ele desejava ser um intelectual de esquerda que estivesse um passo à frente do que achava ser as ortodoxias. Pensava poder levar até as últimas consequências o romantismo revolucionário das esquerdas brasileiras de seu tempo. Assim, como veremos a seguir, no ideário do Kaos os dilemas da moderna cultura artística brasileira se mostram confrontados em uma dialética instável e errática, onde ideologias, formas literárias e temporalidades estão em jogo permanente.

675 MAUTNER, Jorge. Bilhetes do Kaos, sobre sexo, futebol e sangue. Jornal Última Hora, sábado, 1 de

fevereiro de 1964. In: COHN, Sérgio; DE FIORE, Juliano. (orgs.). Jorge Mautner. (Trajetória do Kaos). Rio de Janeiro: Azougue, 2002.

5 ESCRITURAS DO KAOS

De tudo escrito, amo apenas o que se escreve com o próprio sangue. Escreve com sangue: e verás que sangue é espírito.

F. Nietzsche. Assim Falou Zaratustra676

(...) escrever é demoníaco, é terrível Jorge Mautner677

Não se pode escrever sem a força do corpo. É preciso ser mais forte que si mesmo para abordar a escrita. Não é apenas a escrita, o escrito, é o grito das feras noturnas, de todos, de você e eu, os gritos dos cães.

Marguerite Duras678