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Do boticário ao farmacêutico: organização, ensino e regulação da atividade

2 Capítulo II: O desenvolvimento histórico da Farmácia, estruturação do ensino

2.5 Síntese histórica da Farmácia e o ensino farmacêutico no Brasil

2.5.2 Do boticário ao farmacêutico: organização, ensino e regulação da atividade

Segundo Santos (1999), a partir do século XIX há uma transformação no referencial de influencia dos determinantes de profissionalização. A principal característica deste período diz respeito a uma presença maior do Estado, como mediador das demandas sociais e do sistema de produção; papel desempenhado através de ações reguladoras e de intervenção sobre a atividade farmacêutica, bem como de formulação de políticas públicas, em sintonia com duas vertentes com forte influência no discurso sanitário oficial emergente: a concepção higienista de polícia sanitária e a vertente da medicina social.

A transferência da Corte portuguesa para o Brasil foi o elemento impulsionador dessas transformações. Com a chegada da família Real, a história da Farmácia começou a ser alterada, através da regulamentação do ensino médico que ocorreu com a implantação dos cursos de cirurgia e anatomia nos hospitais militares de Salvador e posteriormente no Rio de Janeiro em 1808 e a criação da cadeira de matéria médica e Farmácia nesses cursos (EDLER, 2006). Em 1832, como resultado da reforma do ensino, as Academias Médico-cirúrgicas foram transformadas em Faculdades de medicina e os cursos de Farmácia foram oficialmente criados, subordinados aquelas faculdades (VOTTA, 1965).

Reorganizou-se o regimento legal sanitário e foi instituída em 1850 a Junta Central de Higiene Pública responsável pela fiscalização e aplicação da

legislação sanitária, pela fiscalização das atividades de preparo e comercialização de medicamentos e pelo controle de epidemias. Entretanto, como relata Edler (2006), “(...) boa parte dessa legislação era para inglês ver, como se dizia na época. Não se inspecionavam as boticas, nem a venda de remédios e drogas” (p. 59).

Apesar da tradição médica clássica na formação e da influência francesa a prática da medicina no oitocentos e das artes mecânicas que lhe davam suporte, a cirurgia e a Farmácia, consideradas hierarquicamente inferiores, encontrava-se permeada por “uma multiplicidade de práticas, conceitos e métodos reproduzidos de modo artesanal pelas diferentes etnias que aqui interagiam” (p. 58). Até fins do século XIX, o acesso à assistência médica encontrava-se concentrado na Corte do Rio de Janeiro, em Salvador e nos centros urbanos de algumas províncias. Como consequência, as regiões rurais e a maioria da população que dispunha de poucos recursos encontravam-se desassistidas à margem da medicina oficial e se via obrigada a recorrer aos dicionários médicos, aos curandeiros, cirurgiões-barbeiros e boticários (GUIMARAES, 2005; FIGUEIREDO, 1999).

As boticas eram muito procuradas pela população, proliferavam os remédios populares para todos os males. Os medicamentos eram adquiridos tanto nas boticas como em outros estabelecimentos comerciais

Na corte ou nas províncias pupulavam os vendedores ambulantes de remédios secretos. A população não associava competência terapêutica com os diplomas oficiais, e as autoridades faziam vista grossa à multiplicidade de anúncios que ofereciam, para os mais diversos males, remédios que prometiam curas imediatas (EDLER, 2006 p. 59).

A época também foi marcada pelo advento de grandes epidemias, febre amarela em 1849, cólera em 1855 e febres intermitentes que assolavam os centros urbanos desde o início do século.

A reforma do ensino médico ocorida em 1832, inspirada no modelo francês, consagrou o ensino na perspectiva anátomo-clínica, consolidando as bases para uma medicina experimental, mas também reforçando o pensamento higienista como formulador da política imperial de saúde pública. Por esta reforma, ficou estabelecido que ninguém poderia "curar, ter botica, ou partejar", sem título conferido ou aprovado pelas faculdades de medicina. Velloso (2006) informa que esta exigência obrigava os proprietários das Farmácias a pagarem farmacêuticos diplomados para assumirem a responsabilidade técnica de seus estabelecimentos

(prática, aliás, que se estendeu durante todo século XX e que ainda é muito comum no país). Porém a prática comum era que o farmacêutico dirigia-se à botica somente para receber os proventos correspondentes ao "aluguel" de seu nome, do seu diploma, deixando a manipulação e venda dos medicamentos a cargo de um prático, aprendiz ou sob responsabilidade do proprietário que se transformava num boticário "prático". Foram muitos os casos de farmacêuticos que abandonaram a profissão ou conciliaram as atividades farmacêuticas com a poesia, ou mesmo com a política, projetando-se na vida pública.

Caso exemplar foi o do poeta e membro da Academia Brasileira de Letras, Alberto de Oliveira, diplomado pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro em 1883. Exercia a profissão como farmacêutico responsável pela Farmácia Granado, no Rio de Janeiro, apenas durante as ausências do seu proprietário João Bernardo Coxito Granado. José do Patrocínio, que ficou conhecido como jornalista abolicionista, foi outro exemplo. Diplomando-se em Farmácia pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, em 1879, foi prático de botica na Santa Casa da Misericórdia do Rio de Janeiro, abandonando a profissão logo em seguida. (VELLOSO, 2006)

Em 1835 a Seção de Farmácia da Academia Imperial de Medicina propõe um plano de reorganização do curso de Farmácia daquelas faculdades, bem como a criação de escolas de Farmácia nas capitais das províncias de Pernambuco, Minas Gerais, São Paulo, Maranhão, Ceará e São Pedro do Sul, atual Rio Grande do Sul. Essas deveriam ficar subordinadas àquelas do Rio de Janeiro e da Bahia. Em 1839 surgiu na capital da província de Minas Gerais a Escola de Farmácia de Ouro Preto, a primeira e única independente do curso de medicina, como unidade individualizada na época.

Foi neste contexto que houve o incremento e desenvolvimento da pesquisa e do ensino na área da Farmácia, aos poucos se estruturava a profissão em torno de uma elite profissional que liderou a organização dos farmacêuticos em sociedades técnico-profissionais e de periódicos científicos. A pauta da categoria reinvindicava maior reconhecimento institucional no Império, buscava coibir a atividade dos leigos e maior autonomia, tanto no exercício profissional quanto na formação de novos farmacêuticos (EDLER, 2006).

Porém, no final do século XIX, como resultado do desenvolvimento de processos de isolamento de substâncias naturais, de síntese de compostos orgânicos e da realização de ensaios experimentais visando demonstrar o mecanismo de ação dessas substâncias, associados às mudanças sociais e

econômicas da revolução industrial acabaram por afastar o conhecimento e as práticas oficiais de saúde do pensamento hipocrático e do galenismo. As velhas boticas perderam o monopólio da produção de medicamentos, estes se multiplicaram e passaram a ser produzidos industrialmente. Aqueles estabelecimentos tiveram que passar por drásticas mudanças, algumas conseguiram transformar-se em laboratórios farmacêuticos para atender à demanda crescente de produção, outras passaram a comercializar os produtos industrializados e outras simplesmente deixarão de existir acompanhando o crepúsculo da produção artesanal de medicamentos e da Farmácia oficinal (EDLER, 2006).

2.5.3 A transição da Farmácia oficinal para a drogaria: desenvolvimento ou