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Uma breve revisão dos trabalhos que utilizaram Fleck como referencial teórico

1 Capítulo I: Referenciais teóricos para uma aproximação do objeto de estudo

1.4 Uma breve revisão dos trabalhos que utilizaram Fleck como referencial teórico

O fato da elaboração teórica de Fleck construir-se sob a influência de sua formação e prática médica e do seu principal trabalho abordar a gênese e desenvolvimento de um fato científico; a partir de um estudo de caso na área da microbiologia, já demonstra a aplicabilidade da sua epistemologia no enfrentamento do problema do conhecimento e da pesquisa em ensino nas ciências da saúde. A proposição do estilo de pensamento como categoria central da epistemologia de Fleck, sua amplitude e flexibilidade permitem que a mesma seja aplicada na investigação de diferentes tipos de comunidades (DELIZOICOV et al., 1999). Em relação aos aspectos metodológicos, há relatos de diferentes abordagens (a meu ver complementares entre si) empregadas nos trabalhos que utilizaram Fleck em estudos da área, que incluem a combinação de procedimentos como a pesquisa documental para caracterização do estado da arte, entrevistas semi-estruturadas e análises histórico-epistemológicas para descrição e compreensão da produção do conhecimento (SLONGO, 2004; CUTOLO, 2001; KOIFMAN, 2001; DA ROS, 2000; BACKES, 1999).

Apresento a seguir uma breve revisão de alguns trabalhos que utilizaram o referencial fleckiano, como forma de ilustrar sua aplicabilidade para o problema da pesquisa.

Backes (1999) em sua Tese de doutorado objetiva analisar o processo de formação do enfermeiro, interessando-se particularmente pela influência dos estágios pré-profissionalizantes naquela formação. Ela utiliza as categorias fleckianas “estilo de pensamento” e “coletivo de pensamento”, articuladas ao conceito de “práxis”22, para caracterizar o estágio pré-profissional como um espaço

de práxis do ensino e da prática profissional de enfermagem.

Da Ros (2000) realizou um estudo sobre a produção acadêmica brasileira na área da Saúde Pública, direcionando sua pesquisa para a produção de dissertações, teses de doutorado, de livre docência e de cátedra das duas escolas mais tradicionais no país: a Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP), unidade vinculada à Fundação Instituto Oswaldo Cruz (FIOCRUZ) e Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (FSP/USP) no período compreendido entre 1948 a 1994.

A partir de um universo constituído de 858 resumos de teses e dissertações, ele desenvolveu seu procedimento de análise através da organização e categorização dos trabalhos de acordo com uma filiação (ou genealogia) entre pesquisadores seniores (um pesquisador experiente, frequentemente o orientador que dera inicio ou era reconhecido dentre os pares como pioneiro de uma determinada linha de pesquisa, ao que Da Ros chamou de “pai do estilo de pensamento”) e seus orientandos, bem como destes com outros pesquisadores- aprendizes que mantem a continuidade da linha de pesquisa, mantendo tendências, reproduzindo a abordagem do objeto de pesquisa herdadas do pesquisador que inaugurou o estilo. Com isto ele identificou 11 estilos de pensamento.

Cutolo (2001) utiliza Fleck para discutir a relação entre a concepção de saúde-doença e a formação médica. Ele sustenta que a concepção de saúde- doença constitui um elemento estruturador de um estilo de pensamento e este na sua dimensão de ver formativo acaba influenciando docentes e alunos no processo de formação. Ao estudar o currículo de graduação em Medicina da Universidade

Federal de Santa Catarina (UFSC), aquele autor identifica três concepções de saúde presentes no currículo: higienista-preventivista, médico-social e biologicista- organicista, com predomínio de um estilo contendo esta última concepção no currículo avaliado.

Uma análise interessante do processo de circulação inter e intracoletiva como parte da dinâmica de instauração, extensão e transformação de um estilo de pensamento, a partir do resgate histórico sobre o desenvolvimento do conceito de circulação sanguínea no corpo humano; bem como da divulgação deste tema nos ensinos fundamental e médio, está presente na Tese de Delizoicov, N. (2002). Leite (2004) também destaca a função da circulação intercoletiva de idéias ao formular a hipótese da influência de diferentes coletivos de pensamento, com os quais Gregor Mendel mantinha interlocução, no desenvolvimento da concepção mendeliana de hereditariedade.

Araújo (2002) utiliza Fleck para analisar a relação entre a formação do conhecimento médico especializado e sua utilidade na construção do conceito de doença. Toma como objeto de estudo a construção do conceito de fibromialgia e a categoria objeto-fronteira23 “(...) como instrumento para traduzir e articular a linguagem de comunicação entre diferentes coletivos”, para demonstrar a dificuldade de definição e diagnóstico de doenças com características psicossomáticas, em função do viés biomédico de abordagem dos pacientes.

Outro trabalho que fundamentou sua análise em Fleck foi o de Gomes (2002) e teve como objetivo caracterizar a construção do Estilo de Pensamento Odontológico acerca da etiologia da cárie. Os conceitos de causalidade da cárie e sua relação com a causalidade das doenças de maneira geral foram investigados do ponto de vista histórico-epistemológico, com a intenção de analisar a dinâmica de transformação do estilo nas últimas duas décadas e sua contradição com a tendência à persistência da teoria de causalidade estabelecida. Para a realização da pesquisa foram consultados livros clássicos na área de odontologia e artigos científicos publicados entre 1980 a 2001, coletados em base de dados específica (Pubmed).

23 STAR, S. L.; GRIESEMER, J. R. Institutional Ecology, Translations and Boundary Objects.

Um estudo de caso do curso de Medicina Veterinária da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), utilizando-se de pesquisa documental e entrevistas, fez parte da Tese de Pfuetzenreiter (2003). O trabalho teve como objetivo analisar o ensino de Medicina Veterinária da área denominada de “Preventiva e Saúde Pública”, procurando caracterizar e estabelecer uma relação entre possíveis estilos de pensamento e os campos de atuação do médico veterinário. Dividido em duas partes, o procedimento da pesquisa inicialmente faz uma análise histórica da evolução do ensino de Medicina Veterinária, para em seguida comparar a matriz curricular e ementas do curso de Medicina Veterinária da UDESC com as grades curriculares das escolas pioneiras no país. A segunda etapa do trabalho investiga a percepção de estudantes, professores e profissionais ligados ao Curso. A epistemologia de Fleck, como referencial para o trabalho, possibilitou a identificação de três “campos principais” da Medicina Veterinária: Clínica Veterinária, Medicina Veterinária Preventiva e Saúde Pública, e, Zootecnia e Produção Animal.

Com o objetivo de “(...) identificar, localizar e caracterizar a produção acadêmica em Ensino de Biologia desenvolvida em programas de pós-graduação (...)”, SLONGO (2004) realizou o inventário de teses e dissertações defendidas no período entre 1972 a 2000. Sua análise histórico-epistemológica busca no referencial teórico de Fleck, em especial nas categorias “estilo e coletivo de pensamento” e “circulação intercoletiva e intracoletiva de idéias”, a construção analítico-metodológica que permite explicitar as tendências temáticas e as metodologias de pesquisa naquela área ao longo do período estudado. Para atingir tal propósito, a autora faz uma revisão das pesquisas que tiveram como objeto de estudo o estado da arte da produção nas áreas de educação, educação matemática, ensino de física e ensino de ciências.

Em seguida, com base na aplicação da epistemologia de Fleck nos trabalhos de investigação na área da saúde e em educação científica, desenvolvidos no âmbito do Programa de Pós-graduação em Educação Científica e Tecnológica (PPGECT) da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC); Slongo delineia sua abordagem metodológica e categorias analíticas aplicadas no seu trabalho.

Os resultados obtidos permitiram caracterizar pressupostos, transformações que permearam a área de ensino de biologia; evidenciando processos de transição desde uma perspectiva empirista-positivista, “(...) para uma

pesquisa cujos problemas levam em conta tanto as atividades docentes como as dos alunos, mas tendo como pressupostos epistemológicos concepções não- empiristas” (SLONGO, 2004). Também argumenta que os grupos de pesquisadores em ensino de Biologia constituem coletivos de pensamento que compartilham pressupostos epistemológicos, educacionais e metodológicos que passaram por um processo de transformação à medida que a área de Ensino de Biologia foi se constituindo; concluindo que a tendência atual de pesquisa na área sofre uma forte influência de basicamente dois coletivos de pensamentos.

Tendo como pressuposto que a concepção de ciência do professor repercute na sua forma de ensinar os conteúdos científicos, como aqueles relacionados à Biologia Molecular, SCHEID (2006) utilizou a epistemologia de Ludwik Fleck para discutir a possível contribuição da História da Biologia na formação de professores de Ciências Biológicas. Além de investigar as concepções sobre a natureza da Ciência e o conhecimento que os estudantes de Biologia possuem sobre a história da Biologia Molecular; o trabalho apresenta, sob o referencial fleckiano, uma reflexão epistemológica sobre a construção de um fato científico crucial para a Ciência contemporânea: a proposição da estrutura do DNA. Ao analisar as concepções dos estudantes, a autora questiona percepções sobre as implicações éticas do uso das novas biotecnologias. Propõe algumas intervenções que contribuiriam para a formação de professores nesta área, de tal forma que pudesse “atender aos desafios que a educação científica apresenta na contemporaneidade”.

1.5 O OLHAR DO REFERENCAL TEÓRICO E A ABORDAGEM HISTÓRICO-