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Como esta pesquisa é desenvolvida com crianças em situação de acolhimento institucional, estamos tratando diretamente de um dos direitos fundamentais das

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crianças e dos adolescentes, preconizados pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), o direito à convivência familiar e comunitária:

Art. 19 – Toda criança ou adolescente tem direito a ser criado e educado no seio da sua família e, excepcionalmente, em família substituta, assegurada a convivência familiar e comunitária, em ambiente livre da presença de pessoas dependentes de substâncias entorpecentes.

Visto que as meninas-flor foram retiradas de sua família por meio de denúncia ao Conselho Tutelar e encaminhadas pelo Juiz responsável pela vara da infância do Maracanaú para a instituição Casa-Família, é preciso uma série de ações e cuidados para que elas não tenham esse direito violado, no sentido de que o estatuto estabelece que a medida de acolhimento só deva ser tomada em casos extremos, quando todas as demais opções forem esgotadas, e mesmo estando acolhida, todos os esforços devem ser empreendidos, no sentido de que a criança possa ser reintegrada à sua família novamente.

O ECA determina, no item Das Medidas de Proteção, no Artigo 98, que as medidas de proteção deverão ser aplicadas sempre quando houver violação dos direitos das crianças e adolescentes, por ação ou omissão da sociedade ou do Estado; falta, omissão, ou abuso dos pais ou responsáveis (o caso das meninas-flor) e, por fim, em função da própria conduta do jovem ou adolescente. Assim, o estatuto determina, no artigo 101, que ações devem ser tomadas em caso da violação dos direitos, sendo o acolhimento institucional, de nove medidas a serem seguidas nessa ordem, a oitava:

I - encaminhamento aos pais ou responsável, mediante termo de responsabilidade;

II - orientação, apoio e acompanhamento temporários;

III - matrícula e frequência obrigatórias em estabelecimento oficial de ensino fundamental;

IV - inclusão em programa comunitário ou oficial de auxílio à família, à criança e ao adolescente;

V - requisição de tratamento médico, psicológico ou psiquiátrico, em regime hospitalar ou ambulatorial;

VI - inclusão em programa oficial ou comunitário de auxílio, orientação e tratamento a alcoólatras e toxicômanos;

VII - acolhimento institucional;

VIII - inclusão em programa de acolhimento familiar;

Em caso de acolhimento institucional, a situação da criança ou do adolescente deve ser analisada e reavaliada, no máximo, a cada 6 meses, momento em que se deve decidir se a criança ou adolescente é reintegrado à sua família ou encaminhado a uma família substituta. O ECA preconiza que o máximo que uma criança ou adolescente

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deve ficar acolhida não poderá ser prolongado por mais de 2 anos, a menos que esteja comprovada a impossibilidade de retorno, com base no superior interesse da criança ou adolescente, fundamentada pela autoridade judiciária.

O acolhimento institucional e o acolhimento familiar são medidas provisórias e excepcionais, utilizáveis como forma de transição para a reintegração familiar ou, não sendo esta possível, para colocação em família substituta, não implicando privação de liberdade. No entanto, devido às consequências geradas pelo aumento das condições de pobreza da população brasileira, pode-se observar que a demanda aumentou e persistiu, e que foram criadas poucas alternativas para evitar a separação das crianças de suas famílias.

Por mais que hoje não se use mais os termos “internação”, nem “menor”, ou seja, a instituição deva acolher a criança temporariamente até que retorne à sua família, observa-se que ainda há uma ineficácia no atendimento das famílias, e muitas crianças passam mais de anos acolhidas, quando não ficam até a maioridade, o que é bem comum. Na Casa-Família, temos muitos casos de meninas que viveram na instituição até a maioridade13. Pelo que a diretora compartilhou comigo em entrevista, algumas das meninas-flor têm grande chance de ficar até a maioridade, visto que, segundo ela, as famílias não apresentam nenhuma possibilidade de as terem de volta, e por não estarem liberadas para a adoção.

Com relação ao acolhimento institucional, como forma de prevenir, foi elaborado o Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa do Direito de Crianças e Adolescentes à Convivência Familia r e Comunitária, com o objetivo de apresentar recomendações e diretrizes nacionais para ampliação de políticas públicas de apoio às famílias e também aprimoramento das medidas de proteção e adoção. Tal plano também nasceu de um processo participativo envolvendo representantes do governo, da sociedade civil organizada e de organismos internacionais, que compuseram uma Comissão Intersetorial, responsável pelos subsídios apresentados ao Conselho Nacional dos Direitos das Crianças e Adolescentes (CONANDA) e ao Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS).

Depois do histórico da institucionalização de crianças e adolescentes compartilhado anteriormente, penso que é difícil desconstruir os vícios dos sistemas e mesmo as visões, ou melhor, as cegueiras sociais. Por exemplo, a sociedade culpa as

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Tema discutido pela doutoranda Aline Soares Silva do Grupo de Pesquisa Dialogicidade, Formação Humana e Narrativas (DIAFHNA), em sua tese de doutorado em andamento.

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famílias pobres por não terem condições de criar seus filhos, mas quem cuida das famílias que precisam de cuidados? Outra questão que me parece pertinente salientar aqui é que quando se pensa em acolhimento institucional, imediatamente se pensa em crianças provenientes de famílias pobres, no entanto, há violências de todo tipo em todas as famílias, não importando a classe social; o diferencial está no tratamento dado a cada uma dessas instâncias, pois os casos de violação de direitos de crianças e adolescentes nas classes mais ricas são geralmente abafados, enquanto os casos nas famílias mais pobres são publicizados, e pior, são considerados responsabilidade delas mesmas! Como podemos ver nas palavras de Rizzini et al (2007, p. 18):

Na atualidade, ressaltam-se as competências da família, mas, na prática, com frequência, cobra-se dois pais que deem conta de criar seus filhos, mesmo que faltem políticas públicas que assegurem condições mínimas de vida digna: emprego, renda, segurança e apoio para aqueles que necessitem.

Se não tivéssemos tanta desigualdade social nesse país e se a Política Nacional de Assistência Social funcionasse como deveria, no atendimento às famílias necessitadas, talvez tivéssemos menos casos de institucionalização de crianças, pois estaríamos trabalhando na prevenção e na proteção, como propõe o Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa do Direito de Crianças e Adolescentes à Convivência Familiar e Comunitá ria. Mas, se não houver um trabalho de acompanhamento junto às famílias, continuaremos repetindo os mesmos erros, violando o direito que a criança tem de crescer em sua família, não importando sua configuração e sua comunidade.

Para que uma criança seja retirada de sua família, é preciso que seus direitos sejam violados, como no caso de violência intrafamiliar: violência física, abuso e exploração sexual, negligência, maus tratos, exploração do trabalho infantil, entre outros. Sim, esses problemas são graves e acontecem com frequência, no entanto, há outros problemas não tão graves ou explícitos, mas que, em longo prazo, geram obstáculos à permanência da criança em suas famílias, ou, em caso de retirada da mesma, ao seu retorno, como:

A inexistência ou ineficácia das políticas públicas, a falta de suporte à família no cuidado junto aos filhos, as dificuldades de gerar renda e de inserção no mercado de trabalho e a insuficiência de creches e escolas públicas de qualidade, em horário integral, com que os pais possam contar enquanto trabalham. O problema, portanto, é parte do quadro brasileiro mais amplo de desigualdade socioeconômica [...] (RIZZINI et al, 2007, p. 23).

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Como nos coloca Pinheiro (2015, p. 136), a questão do direito à convivência familiar e comunitária, quando violado, acaba por ferir uma série de outros direitos e suas violações: “violência (familiar, política, institucional, sexual); institucionalização fechada; dificuldade de acesso à Justiça e sua frequente morosidade; desvirtuamentos ainda existentes com referência à adoção nacional e internacional; tráfico de pessoas”. A autora defende a importância das práticas preventivas em detrimento das práticas reparadoras, no caso, aponta a importância para o trabalho social com toda a família, para que a ameaça não gere a violação dos direitos (p.144).

Nos casos narrados pela Irmã Karla sobre as meninas-flor, vemos claramente essas situações, as dificuldades das famílias em se auto-sustentar economicamente e as dificuldades dos pais derivadas disso, acarretando no uso de álcool e drogas, na prostituição, em problemas de saúde (como o HIV e outros); problemas que podem levar à negligência no trato das crianças, à exposição das mesmas a situações não apropriadas, a situações de exploração e violências diversas. As histórias destas meninas não se diferenciam dessas que generalizamos, mas devemos nos perguntar: as famílias dessas crianças foram atendidas, foram cuidadas, foram “acolhidas” pelo Estado, nas suas responsabilidades? Os membros da família também estão tendo seus direitos fundamentais violados pelo governo, mas ninguém faz nada, e a vida continua.

Pelas narrativas da Irmã Karla, a Casa-Família busca, na medida do possível, promover o contato das crianças com suas famílias e trabalha o máximo que pode para fortalecer ou reestruturar esses laços que foram enfraquecidos, procurando auxiliar as famílias, orientando caminhos, ou seja, acolhendo-as. Há realmente uma preocupação com o direito das meninas, uma busca de soluções, um trabalho coletivo. No entanto, ela relata que há muitos casos em que a família ampliada, ou seja, os demais familiares, como tios, avós ou outros parentes se eximem da responsabilidade, relegando à instituição o que elas deveriam fazer, ocupar-se de seus familiares.

Sinto claramente que, nesse capítulo, é como se conseguisse dar conta de abordar apenas a ponta do iceberg desse universo dos direitos das crianças e dos adolescentes, do direito à convivência familiar e comunitária no Brasil, ou seja, é de uma complexidade tamanha! Sem contar que, em alguns aspectos, é preciso ter conhecimento também das leis e dos dados a respeito da assistência social no país, para poder ter uma visão mais ampla da assistência às famílias, por exemplo.

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A seguir, um pouco sobre o acolhimento institucional no município de Maracanaú e sobre as características da Casa-Família Maria Mãe da Ternura, como uma Casa-Lar.