• Nenhum resultado encontrado

De todos os históricos de acolhimento narrados por Irmã karla, entre as 6 meninas com as quais realizei esta pesquisa, o histórico de Gérbera e Petúnia, irmãs, foi o que mais me marcou. Gérbera (06 anos – Figura 1) e Tulipa (07 anos – Figura 2) foram acolhidas, juntamente com sua irmã mais nova (04 anos) em 12 de fevereiro de 2014, completando em 2016, este ano, 2 anos de acolhimento. Pelos relatos da Irmã, dadas suas condições familiares, certamente ficarão na instituição até a maioridade, visto que seus pais, segundo ela, possuem ambos, lesões mentais, não apresentando condições de se ocuparem delas, assim como não se tem registro nenhum da família ampliada, no caso de tios, avós, primos, etc. Não ficou claro para mim que tipo de lesão cerebral seria essa, a qual os pais estão acometidos e porque não podem ficar com as 3 meninas acolhidas se após seu acolhimento tiveram um 4º filho que habita com eles?

191

Figura 1 - Gérbera e Figura 2 - Tulipa

Fonte: acervo do projeto,

Filhas de um casal de moradores de rua, a mãe bastante jovem, e o pai um senhor já de 60 anos que acabou “adotando” a jovem nas ruas, chegando a levar a suspeita de um incesto dada a grande diferença de idade, acreditavam ser ela sua filha, o que foi verificado como negativo, posteriormente, por meio de exame de D.N.A., Gérbera e Tulipa não possuíam nenhum registro civil até a data do acolhimento, sendo assim, eram crianças que “não existiam” para sociedade e, mesmo hoje, após a retirada de documentos, como certidão de nascimento ou de batismo, as variadas informações não coincidem, como o próprio nome das meninas, dos pais e as datas dos registros. Crianças que nasceram e cresceram sem identidade civil.

Os pais, enquanto moradores de rua foram vítimas de uma estelionatária que interessada nos benefícios sociais recebidos pelo casal os manteve em cárcere privado num barraco de madeira, de chão batido, com as aberturas, janelas cobertas por madeiras e a porta trancada, num terreno baldio desses qualquer. Não se sabe precisamente quanto tempo o casal e as crianças viveram nesse barraco insalubre, mas quando uma inspeção do Programa Saúde da Família (PSF) tomou conhecimento da construção de que havia crianças dentro, o estado em que as meninas foram encontradas era lastimável, não se sabendo como haviam resistido tanto tempo em meio a essas condições, no meio de fezes e excrementos, se alimentando de restos de comida, sem ver a luz do dia e sem nenhum tipo de contato social. Uma família mantida como animais por anos!

Logo que os agentes do PSF descobriram o barraco e a família, imediatamente o Ronda do Quarteirão e o Conselho Tutelar foram chamados e a polícia teve que invadir, arrombar a porta e as janelas para ter acesso às crianças que estavam completamente

192

desnutridas e infestadas de verminoses variadas. As meninas não só nunca haviam tido contato social, como não falavam praticamente nada e estavam extremamente sujas. Segundo Irmã Karla, a quantidade de lombrigas que havia nas meninas era assustadora, algo que nunca haviam visto em toda a história da instituição. Segundo a Irmã karla, a mãe, possui sérios problemas mentais e uma patologia de ordem sexual e teve as crianças nesse cárcere privado, não se sabendo como sobreviveu aos partos e aos variados abortos que teve ao longo desse confinamento.

Tulipa, a mais velha, certamente a que mais sofreu, é a que tem maiores sequelas segundo Irmã Karla. Sintomas que são observados pelas irmãs nos seus comportamentos e que estão sendo acompanhados e diagnosticados por um neurologista, pois nas palavras da Irmã, ela “não conecta as ideias”, além de ter comportamentos bastante agressivos e alguns de ordem sexual. É possível imaginar o que uma criança como ela presenciou em anos de confinamento, num barraco de duas peças, de terra batida, sem nenhuma condição de higiene?

A irmã menor de Gérbera e Tulipa, também acolhida, de 04 anos, apresenta, segundo as irmãs e a pedagoga que faz o acompanhamento escolar, grandes dificuldades de concentração e aprendizagem, inclusive não participou das atividades de desenho da pesquisa por não conseguir parar, acompanhar e desenvolver os desenhos. Apesar disso, sua presença sempre foi bem vinda ao ateliê. Já Gérbera e Tulipa participaram ativamente e ambas já desenhavam, com uma leve defasagem no desenvolvimento gráfico, mas que foram superando pouco a pouco com a frequência dos encontros semanais. Confesso que não vi comportamentos tão graves durante as oficinas, apenas dificuldades de aprendizagem, de concentração, de expressão escrita e oral, o que considero normal para crianças que viveram o que viveram, ou seja, que recentemente foram inseridas na escola e passaram a ter um contato social. Fisicamente as duas meninas têm uma estrutura corporal extremamente frágil, pouco desenvolvida, assim como uma grande carência afetiva, manifestada numa necessidade de atenção imensa.

Apesar de todo esse contexto insalubre em que a família foi encontrada, Irmã Karla afirma que há um grande afeto entre as crianças e seus pais e que elas nunca sofreram nenhum tipo de violência ou abuso sexual, somente foram criadas nesse ambiente completamente absurdo. Os pais hoje estão vivendo numa moradia social, e como coloquei no início, a mãe teve ainda outro filho e ambos recebem cuidados e ajuda da associação de bairro e dos vizinhos, pois segundo Irmã Karla não têm condições de morarem sozinhos e, muito menos, de criarem esta quarta criança. Por

193

conta disso, a Irmã afirma que eles não possuem condições de receberem de volta Gérbera, Tulipa e a irmã menor que estão acolhidas, desta forma tem grande probabilidade de viverem na instituição até alcançarem a maioridade. Os pais vêm na instituição raramente visitar as meninas, pois precisam de pessoas que os acompanhem, sendo a mãe a mais debilitada. Essa família não poderia ser mais bem acolhida? Como poderia ser assistida para receber as meninas de volta? Quem diagnosticou as debilidades mentais dos pais? Enfim, confesso que não me convenci completamente do fato de que as meninas viverão até a maioridade na instituição.

Tendo em vista este histórico de acolhimento, vemos o quanto essas meninas se desenvolveram em 2 anos na instituição, visto que tiveram que aprender tudo, como a falar, como fazer sua higiene. Hoje vão normalmente à escola como as outras crianças e participam das atividades normais da casa. Tanto Gérbera quanto Tulipa aparentam hoje ter saúde, e apesar das dificuldades de aprendizagem, estão em processo de alfabetização. Gérbera está sempre sorrindo, tem uma fala muito apurada e enquanto desenha fala muito, conta muitas coisas, é a criança que mais se expressa graficamente e oralmente no grupo, no entanto solicita atenção e carinho tempo inteiro. Durante os ateliês Gérbera passou o tempo inteiro “grudada” em mim, dificultando muitas vezes que eu desse atenção às outras meninas.

Já Tulipa é mais introspectiva, seu olhar é profundamente triste, mesmo quando sorri. Tanto no ato de desenhar quanto na fala, ela é retraída, tímida e realmente possui muita dificuldade de raciocínio e de entendimento, facilmente perceptíveis em seu comportamento quando realiza as atividades escolares. Apesar de tudo são crianças que sorriem, que brincam e que interagem no grupo, mostrando-se sempre interessadas em participar das atividades, envolvidas em suas criações e nas criações das outras meninas. Pelas narrativas de ambas pude acessar alguns aspectos de suas histórias de vida, no entanto Gérbera traz muitos elementos dessas vivências, misturando tudo, pois ainda não consegue ainda organizá-los e Tulipa é muito retraída, há muito silêncio e “não- ditos” na nossa interação, no entanto, nunca apresentou traços de agressividade durante as atividades coletivas, apesar de Irmã Karla compartilhar que ela é bastante agressiva no cotidiano, especialmente quando é contrariada, ou em situações em que precisa obedecer às regras da casa.

E aqui considero importante refletirmos sobre a questão da institucionalização. Sabemos da importância do direito da criança ao convívio familiar e comunitário, mas que soluções poderíamos ter com relação a casos como esses em que as crianças

194

estavam nessa situação desumana? Sendo os pais, considerados ambos debilitados mentalmente, explorados por terceiros, habitando um local completamente insalubre, como poderiam cuidar de seus filhos sem negar os demais direitos básicos, como a saúde e a educação, por exemplo? Estariam Gérbera e Tulipa melhor com seus pais ou na instituição? São questões que me coloco ao receber o histórico dessas crianças. Repito, se hoje seus pais habitam uma residência e cuidam do 4º filho, irmão das meninas, porque elas não poderiam habitar junto à família?

Sendo a família, considerada pela Constituição Federal, como a base da sociedade, esta deveria ser assistida e protegida, o que na realidade não acontece, e no caso de crianças como Gérbera e Tulipa, elas não só estão afastadas de sua família natural, pelos fatos que compartilhei aqui, como não podem ser adotadas. Como resolver esse dilema? Segundo Naves e Gazoni (2010, p. 75), “o poder familiar manifesta-se no dever dos pais de garantir aos filhos o sustento, a guarda e a educação, bem como a obrigação de fazer cumprir as determinações judiciais proferidas em função dos interesses e direitos da criança”, sendo o Estado responsável por suprir as insuficiências das famílias, sejam elas materiais ou de outra ordem. Diante da ineficiência do estado em assistir a essas famílias, como proteger essas crianças? Como garantir seus direitos e necessidades básicas?

Sobre a suspensão da guarda, Rizzini et al. (2007, p.89 e 90) afirma que algumas interpretações do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) podem levar a vários equívocos que podem ser irreparáveis na relação entre as crianças e suas famílias, o que acaba levando a um acolhimento demasiadamente longo, acima dos dois anos, o qual tem que ser evitado. Os autores mencionam, segundo pesquisa realizada pelo Instituto de Pesquisas Econômicas e Aplicadas (IPEA), que “87 % das crianças e adolescentes abrigados tinham família; porém, destes, somente 57% mantinham seus vínculos familiares”, fazendo uma crítica ao fato de que as instituições pesquisadas recebiam recursos do Governo Federal e que, portanto, estão desrespeitando o direito à convivência familiar e comunitária. Uma boa parte das instituições acaba mantendo uma linha assistencialista, que não fortalece o vínculo familiar e ainda vê-se muitos casos originados da pobreza e da miséria social, violando os artigos 19 e 23 do ECA que preveem, respectivamente o direito à convivência familiar e a garantia de que esse direito não possa ver violado por carência de recursos materiais.

Retomando Naves e Gazoni (2010, p. 122 e 123), o Plano Nacional de Promoção, Defesa e garantia do Direito da Criança e do Adolescente à Convivência

195

Familiar e Comunitária, já citado no Capítulo 3 desta tese, busca garantir esse direito tendo como estratégia um diagnóstico antecipado das situações de vulnerabilidade e a atenção psicossocial adequada, assim como um reordenamento das instituições de acolhimento, uma melhor regulamentação dos processos de adoção, processo extremamente burocrático e moroso, bem como a promoção de mudanças de atitude e a conscientização da sociedade em geral diante do tema. No entanto, são estratégias que ainda estão no plano do ideal, não havendo, nos últimos anos, evoluções significativas que alterassem esse quadro da institucionalização, pelo contrário, ainda se pensa em como ampliar as capacidades dos “abrigos”, para mais crianças em situação de abandono, maus tratos ou negligência por parte da família.