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Dos direitos das crianças e dos adolescentes no Brasil

Para começar a contar um pouco sobre os direitos das crianças e dos adolescentes no Brasil, é preciso voltar um pouco no tempo; voltar ao Brasil nos anos 70, momento histórico em que se inicia uma grande revolução de ideias e posturas representadas pelos Movimentos Sociais. Em consequência dessas manifestações, vemos surgir um sentimento de urgência por mudanças, de crítica à miséria e à desigualdade social. Tal efervescência política, que começou com a campanha pela anistia ampla, geral e restrita, responsável, segundo Pinheiro (2006), como um marco na ampliação das conquistas democráticas do país e que levou a uma série de situações importantes, entre elas, a mobilização política para a defesa dos direitos das crianças e adolescentes.

Em 1987, é convocada a Assembleia Nacional Constituinte (ANC), responsável por restaurar as instituições democráticas para a participação na elaboração da Constituição Federal de 1988 (CF 88). Assim, é nesse cenário que diferentes atores sociais se organizam, como as Igrejas, representadas pelas Pastorais do Menor e Pastorais da Criança, diversas Organizações-Não-Governamentais (ONGs) ligadas às questões sobre as crianças e os adolescentes, estudantes, intelectuais e demais militantes e ativistas passam a participar diretamente das decisões políticas no que se refere à inserção de políticas de defesa dos direitos das crianças e adolescentes no Brasil.

Segundo Antônio Carlos Gomes da Costa (2011):

Neste momento o Fundo das Nações Unidas para a Infância - UNICEF e as demais organizações, Ordem dos Advogados do Brasil - OAB, Conferência Nacional dos Bispos do Brasil - CNBB, Sociedade Brasileira de Pediatria, Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua, Pastoral do Menor fizeram duas emendas apresentadas na Constituinte: As emendas Criança Prioridade Nacional e a emenda Criança e Constituinte. Estas duas emendas populares obtiveram o número de assinaturas necessárias para que fossem apresentadas à Constituinte como emenda de iniciativa popular9.

Segundo o autor, estas duas emendas teriam nascido a partir da Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança (CNUDC), como resultado do que vinha

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Curso Eca na Escola: Vídeo Aula 12 - A Constituição Federal de 1988 e o Estatuto da Criança e do Adolescente.

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sendo discutido pela Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU) desde 1979, que foi o Ano Internacional da Criança. Segundo o autor, é do conteúdo destas duas emendas que nasceu o artigo 227 da Constituição Federal de 1988, que insere a Doutrina de Proteção Integral à criança e ao adolescente:

É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão (Art. 227).

Convém colocar que já em 1959 tivemos a Declaração Universal dos Direitos da Criança (DUDC), no entanto, a declaração se apresenta apenas como um conjunto de intenções, não possui poder de execução. É somente a partir da Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança (CNUDC) que se sistematiza a Doutrina da Proteção Integral. A CNUDC vai ser responsável por sistematizar um conjunto de princípios que orientam a legislação relacionada às crianças e adolescentes, além de cobrar o comprometimento dos países que aderiram a esses princípios, garantindo a concretização e a implementação de instrumentos para a promoção e defesa dos direitos desse público. A partir daí, teremos a participação ativa da sociedade civil na elaboração e acompanhamento das políticas públicas (PINHEIRO, 2006, p. 89).

Segundo Benedito Rodrigues dos Santos (2011), que participou do processo de elaboração e do movimento para inserção do artigo 227 na Constituição Federal, foi daí que nasceu o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). O autor ressalta a intensa participação do Movimento Nacional dos Meninos e Meninas de Rua (MNMMR) que se transformou num movimento maior, de abrangência nacional, e também da Pastoral do Menor (p. 4). Foi um momento histórico em que, pela primeira vez, as crianças e adolescentes tiveram voz:

O Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua estava nesse processo de articulação nacional e ele já começou a se articular com um diferencial, que foi trazer as crianças e adolescentes para o movimento. O Movimento de Meninos de Rua foi oficialmente constituído em 1985, e em 1986 fez o Primeiro Encontro Nacional de Meninos e Meninas de Rua, em quem, pela primeira vez na história desse país, puderam eles mesmos (os próprios meninos e meninas de rua), se dirigir às autoridades brasileiras, se dirigir à imprensa dizendo: “nós somos violentados, nós queremos ser ouvidos” (SANTOS, 2011, p. 4-5).

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É nesse contexto, de efervescência dos Movimentos Sociais, que Pinheiro (2006) identifica a representação social de crianças e adolescentes como “Sujeitos de Direitos”: Essa representação social da criança e do adolescente – concebidos como sujeitos de direitos – emerge e se constitui no âmbito das lutas e dos movimentos sociais que se deram, no País, nos anos 1970-80, voltados para a reivindicação de direitos, contexto em que também se dá o agravamento da situação social, com o depauperamento das camadas populares, em consequência da “ressaca” do denominado “milagre econômico”: elevação dos indicadores econômicos e agravamento dos índices sociais, expressando pior qualidade de vida para a população (PINHEIRO, 2006, p. 84).

Sim, aqui as crianças e os adolescentes não são mais vistos como “objetos”, mas como “sujeitos”, como cidadãos, tendo dois princípios fundamentais: a igualdade perante a lei e o respeito à diferença como os mais importantes, o que vai engendrar grandes rupturas diante da forma como as crianças e adolescentes são vistos na sociedade, assim como deverão ser tratados perante a lei. Agora, a punição e os castigos físicos não podem mais ser aceitos, deve-se instaurar o diálogo! O adolescente passa a ter o direito de se defender, passa a ter voz! Agora, não mais se trata de “menores”, mas de “crianças e adolescentes”, sujeitos de direitos, participantes de todo o processo de implementação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), aprovado por unanimidade no plenário da Câmara, em 1990. na presença das crianças! Um marco histórico inesquecível.

Pinheiro (2006) diferencia as “práticas de assistência”, pautadas pela Doutrina da Situação Irregular – Código de Menores de 1927 e de 1979, das práticas de “defesa dos direitos fundamentais”, pautados pela Doutrina da Proteção Integral, derivada da Declaração Universal dos Direitos da Criança (DUDC), preconizada pelas Organizações das nações Unidas (ONU), em 1989.

Segundo Paula (2011, p. 4), o objetivo do direito da criança e do adolescente é a proteção integral, que significa ter direito a um desenvolvimento saudável e íntegro. Garantir a proteção integral no sentido de fornecer ou conquistar os meios adequados para um desenvolvimento sadio e harmonioso e garantir uma vida livre de situações que possam levar à exploração, à crueldade, à opressão e à violência, visto que é impossível pensar no desenvolvimento saudável em situação de violência, e a situação de violência jamais vai levar a um desenvolvimento saudável.

Bom, até aqui tudo parece lindo, não é? Participação popular na elaboração das políticas públicas, leis e documentos importantes específicos em defesa dos direitos das

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crianças e dos adolescentes, mas e na prática? Como fazer funcionar? Como aplicar a lei? Como educar a população a respeito?

Sabemos que a justiça no Brasil, por vezes, é muito lenta; processos que deveriam ser julgados com urgência, por vezes, podem passar anos esperando julgamento, como no caso das adoções, em que temos listas de esperas imensas e uma morosidade da justiça, o que faz com que muitas crianças percam a oportunidade de serem adotadas, pois, muitas vezes, os pais adotivos preferem adotar bebês e, devido à demora, a criança cresce, e os pais, em muitos casos, desistem da adoção.

Pois voltando à questão prática, para a implementação do que o ECA preconiza, foi criada toda uma política de atendimento que, de acordo com o Artigo 68, se constitui de “um conjunto articulado de ações governamentais e não-governamentais, da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos municípios”. Para isso, foi criado o chamado Sistema de Garantia dos Direitos da Criança e do Adolescente (SGDCA), sua definição oficial encontra-se na Resolução 11310 do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA), de 19 de abril de 2006, que define, em seu artigo 1º, que o SGDCA:

[...] constitui-se na articulação e integração das instâncias públicas governamentais e da sociedade civil, na aplicação de instrumentos normativos e no funcionamento dos mecanismos de promoção, defesa e controle para a efetivação dos direitos humanos da criança e do adolescente, nos níveis Federal, Estadual, Distrital e Municipal.

Rezende (2011) afirma que o SGDCA é um sistema, portanto “não é uma instituição, mas uma forma de ação, na qual cada um conhece seu papel, além de conhecer o papel dos demais, percebendo e articulando as ligações, relações e complementaridades destes papéis” (p.3). E, como todo sistema, caracteriza-se por um conjunto de elementos interconectados, de modo a formar um todo organizado, prerrogativa que dialoga com a participação coletiva que gerou a criação do ECA, em consonância direta com a discussão internacional (Figura 1).

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A íntegra da Resolução pode ser encontrada em

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Figura 1: representação gráfica do Sistema de Garantias de Direitos da Criança e do Adolescente (SGDCA) por Murillo Digiácomo.

Fonte: http://www.crianca.mppr.mp.br/modules/conteudo/conteudo.php?conteudo=1166

Seguindo a Resolução citada, o SGDCA se organiza a partir de três eixos estratégicos de ação: eixo da promoção, da defesa e do controle dos direitos, representados por uma extensa gama de instituições e profissionais, que, de nenhuma forma, podem ser engessados como outros sistemas governamentais, como o Sistema Único de Saúde (SUS), por exemplo.

No eixo da promoção, Rezende (2011, p. 12 e 13) afirma que é praticamente impossível elencar quem é responsável, apenas indicar, em linhas gerais, que estão neste eixo “as ações ou atores que visam atender a satisfação das necessidades básicas de crianças e adolescentes”. Então, para cada necessidade básica (alimentação, vestuário, remédio, educação, profissionalização), teremos atores sociais e locais específicos de atendimento (ONGs, escolas, equipamentos de saúde, projetos específicos).

No eixo da defesa, temos as Varas da Infância e Juventude e equipes interprofissionais destas varas; varas criminais especializadas, tribunais do júri, comissões de adoção, tribunais e corregedorias de justiça; o Ministério Público e seus organismos como os centros de apoio operacional, as procuradorias e corregedorias e as Defensorias Públicas, serviços de assessoramento jurídico, assistência judiciária, advocacia geral da União, procuradorias gerais dos estados; polícias civis e militares, incluindo a polícia técnica, conselheiros tutelares e ouvidorias. Também se inclui aqui

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os Centros de Defesa de Crianças e Adolescentes (CEDECA) (REZENDE, 2011, p. 13 e 14).

Por fim, no eixo do controle dos direitos, a Resolução 113 indica que o controle será feito por “instâncias públicas colegiadas próprias, onde se assegure a paridade de participação de órgãos governamentais e entidades sociais”, ou seja, os conselhos devem ter o mesmo número de pessoas do governo e da sociedade civil. Se forem 10 conselheiros municipais, cinco serão indicados pelo prefeito e os outros cinco, representantes de ONGs, escolhidos pela comunidade. Além do próprio Conselho dos Direitos da Criança e do Adolescente, fazem parte deste eixo os demais conselhos setoriais de formulação e controle de políticas públicas, como o Conselho de Educação, Conselho de Saúde, Conselho de Assistência Social, antidrogas ou de segurança pública, além de conselhos que são mais controladores do que deliberadores, como o conselho da merenda escolar, por exemplo (Id., p. 15).

Dentre várias inovações derivadas da participação popular, os conselhos foram muito importantes, trazendo a possibilidade de participação da sociedade civil, em parceria com o Estado, para a defesa e proteção das crianças, como o Conselho Nacional dos Direitos das Crianças e Adolescentes (CONANDA), composto por 28 conselheiros, divididos em 14 representantes do Governo Federal e 14 representantes da sociedade civil, ambos eleitos a cada 2 anos; o Conselho Estadual dos Direitos da Criança e Adolescente (CEDCA), órgão colegiado que dispõe sobre a política Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente, que estabelece normas gerais de atendimento e defesa dos direitos das crianças e adolescentes, com poder de deliberação e controlador das ações em todos os níveis estaduais. Conta com 20 membros conselheiros, dos quais 10 representam órgãos governamentais indicados por seus titulares e os outros 10, eleitos em foro de entidade não governamentais, ambos têm mandato institucional de 2 anos. E, por fim, O Conselho Municipal dos Direitos da Criança e adolescente (COMDICA) é o principal espaço para discussão e formulação das políticas de atenção à infância e à adolescência no município. Formado por 22 membros, sendo 11 da sociedade civil e os outros 11 membros governamentais, também com mandato institucional de 2 (dois) anos.

A sociedade civil também se organiza, por meio de uma grande variedade de instituições dispostas em ONGs, Redes e Fóruns, nacionais, estaduais e municipais, como a Associação Nacional dos Centros de Defesa da Criança e do Adolescente (ANCED), Fórum Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Fórum DCA),

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em nível nacional e, em nível regional, Fórum Permanente das ONGs de Defesa dos Direitos de Crianças e Adolescentes (Fórum DCA) do Ceará, Centro de Defesa da Criança e do Adolescente (Cedeca) do Ceará, Fórum Cearense de Enfrentamento da Violência Sexual Contra Criança e Adolescentes, entre outros. Na Universidade Federal do Ceará (UFC), temos o Núcleo Cearense de Estudos e Pesquisas sobre a Criança (Nucepec), programa de extensão do Departamento de Psicologia da UFC, que atua a mais de 30 anos na defesa e promoção dos direitos de crianças e adolescentes, cumprindo com o compromisso social da Universidade11.

Enfim, percebe-se que tudo foi muito bem pensado e organizado de forma coletiva e participativa para que as crianças e os adolescentes tenham seus direitos preservados; uma vitória, depois de muita luta política! Quanta coisa já foi feita e pensada nesses últimos anos, e ainda lidamos com muitos problemas com relação à violação dos direitos das crianças. É preciso também contar com a formação das pessoas da sociedade civil, com a Educação em Direitos Humanos de professores, assistentes sociais e demais profissionais que trabalham nesse campo social da infância e da adolescência no Brasil.

Infelizmente, não poderia jamais esgotar esse assunto, pois é um mundo de informações, atores sociais, questões legais. O que nos falta, buscamos saber mais, buscamos aprender e buscamos educar os outros também. No item seguinte, trago um destaque para a importância da arte, da criação artística e da expressão enquanto um direito. Então, agora a gente “pula” pro próximo item!!!