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PRINCÍPIOS NORTEADORES DA DECISÃO JUDICIAL

3.4 DO PREJUÍZO AO PRINCÍPIO IGUALITÁRIO E DEMOCRÁTICO

“É verdade que, ao lidar com reivindicações individuais, as autoridades adotam tanto quanto possível, uma escala prioritária de necessidades”250.

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O princípio da isonomia estaria sendo ferido todas as vezes que uma decisão judicial determinasse a concretização de um direito fundamental social prestacional de modo casuístico (caso concreto, microjustiça) e esta decisão não pudesse ser estendida a todos por falta de recursos; ademais, os recursos financeiros dispendidos para apenas um indivíduo desfalcaria os cofres públicos não permitindo a realização de uma política pública de caráter geral e universal. Nesses casos o Judiciário estaria ferindo de morte o princípio igualitário, conferindo não um direito no caso concreto, mas sim privilégios que não podem ser estendidos a todos. Logo, uma crítica recorrente na doutrina repousa no argumento que o controle judicial resultaria, na decisão de casos concretos, prejuízo ao princípio igualitário e democrático. É interessante ventilar conceitos como microjustiça e macrojustiça, esta entendemos como a decisão judicial que concretiza os direitos fundamentais sociais prestacionais de todos aqueles que encontram-se em situação semelhante e aquela seria utilizada apenas concretizando o direito para o caso individual, particularizado. Alhures ventilamos que o Judiciário está pronto e legitimado para concretizar os direitos em tela no caso concreto particularizado (microjustiça), concorda com esse pensamento Gustavo Amaral quando ventila que “o Judiciário está aparelhado para decidir casos concretos, lides específicas que lhe são postas. Trata ele, portanto, da microjustiça do caso concreto”251; mas embora haja dificuldades em concretizar os direitos sociais de todos (macrojustiça)252, não se deve retirar do Judiciário essa prerrogativa, haja vista paradigmáticos casos concretos encontrados na Jurisprudência253.

Gustavo Amaral leciona que: “a justiça do caso concreto deve ser sempre aquela que possa ser assegurada a todos que estão ou possam vir a estar em

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AMARAL, Gustavo. Direito, escassez & escolha. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 38. 252

“Apenas a disseminação da tutela coletiva proporciona o adequado tratamento do quantum a ser reconhecido a cada credor de direito prestacional, já que o magistrado passa a ter a responsabilidade de apreciar a questão sob uma ótica macroscópica ao mesmo tempo em que se garante, na máxima extensão possível, o acesso à justiça”. GOUVÊA, Marcos Maselli. O controle judicial das omissões

administrativas. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 386-7.

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Especialmente os que envolvem o direito fundamental social prestacional à saúde cujas decisões são (quase) sempre favoráveis aos autores das ações e sobre elas discorreremos no capítulo 4 dessa dissertação.

situação similar, sob pena de quebrar-se a isonomia”254 e por esse autor defender a afastabilidade do Judiciário nas questões que envolvam “escolhas trágicas”, ventila que os critérios adotados no âmbito da micro e macrojustiça resulta em “escolhas individuais racionais que produzem um resultado coletivo irracional”255.

Lopes concorda com as assertivas de Amaral quando ventila que para que exista a prestação do serviço é preciso ter os meios suficientes para tal e não fazer preferências entre os indivíduos, em sua dicção expõe:

“Prestá-lo a quem tiver tido a oportunidade e a sorte de obter uma decisão judicial e abandonar a imensa fila de espera? Seria isto viável de fato e de direito, se o serviço público deve pautar-se pela sua universalidade, impessoalidade e pelo atendimento a quem dele mais precisar e cronologicamente anteceder os outros?”256.

Esse argumento utilizado pelo professor de história do direito da USP certamente se refere, haja vista a falta de especificação, ao caso de transplantes donde alguém no final da fila pode ser atendido antes, pelo seu grave estado de saúde e pela impossibilidade da espera, por determinação judicial.

A decisão judicial que concretiza um direito fundamental social prestacional a determinado indivíduo nos estritos limites da lide em análise (microjustiça) não lesiona o princípio da igualdade pelo argumento de não ser possível estender esse direito concretizado a todos os outros que estejam em situação semelhante; se acolhêssemos essa crítica estaríamos afastando a tutela jurisdicional daquele que recorreu ao Judiciário em nome de todos aqueles que não recorreram, é como se disséssemos não à concretização de um direito ao indivíduo pelo fato dessa decisão abrir um precedente difícil (ou impossível) de concretização erga omnes.

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AMARAL, Gustavo. Direito, escassez & escolha. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 39. 255

Ibidem, p. 175. 256

LOPES, José Reinaldo de Lima. Direito subjetivo e direitos sociais: o dilema do Judiciário no

Estado social de direito. In: Direitos humanos, direitos sociais e justiça, (org.) José Eduardo Faria.

Tal discussão já fora apreciada pelo STJ no RMS (recurso em mandado de segurança) nº 11.183/PR257, Rel. Min. José Delgado, donde litigavam o Estado do Paraná e uma cidadã portadora de doença degenerativa, qual seja, esclerose lateral amiotrófica (ELA) e que necessitava de medicamento indispensável à manutenção de sua vida, entretanto, o remédio seria importado da Irlanda e custava, em setembro de 1999, R$1.188,47 (mil, cento e oitenta e oito reais e quarenta e sete centavos) a caixeta com 56 cápsulas e, dada a falta de condições financeiras em adquiri-lo, provocou o Judiciário, por mandado de segurança, suscitando direito público subjetivo diretamente do texto constitucional, quais sejam os preceituados nos arts. 6º e 196 da CF/88, com o intuito de compelir o Estado do Paraná a custear a tratamento. Os procuradores do Estado (na insólita missão de defender o Estado a todo custo) argumentaram que caso fosse concedida a segurança, a autora receberia um privilégio em detrimento do conjunto da sociedade. Entendemos completamente desprovido de amparo legal esse argumento, haja vista que esse pretenso “privilégio” na verdade é direito constitucionalmente assegurado e pela omissão dos demais poderes, ou por ações equivocadas, não é concretizado; se porventura o Judiciário, analisando caso concreto, confere eficácia social ao direito, seria o mesmo transmudado em mero “privilégio”? Neste caso paradigmático em análise (RMS nº 11.183/PR) haveria o “privilégio” de não morrer? Note-se que tal argumento é insubsistente e não resiste sequer a uma análise superficial. Trazemos as ponderações de Ronaldo Simão citado pelo Rel.Min.José Delgado que assim se pronunciou no processo:

“Trata-se do tanto que pertine ao microuniverso dos solicitantes – apenas uns poucos em um universo tão numeroso. Pode-se, sem dúvida, de um lado, cogitar da carência de recursos a resultar a estes um pretenso privilégio assistencial, em detrimento de milhares de outros, igualmente carentes e portadores de mesma infestação (...) por outro lado, não se pode olvidar que o Judiciário constitui o poder cuja ação se faz estritamente mediante provocação, descabendo, assim, inteiramente, invocar os não-exercentes como justificação, aparentemente tíbia, para a negativa do direito dos pleiteantes”;

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logo, entendemos que não existem privilégios quando a questão é inequivocamente concretização de direitos.

A simples conjectura ou projeção de inexeqüibilidade não deve permear as decisões judiciais sob pena de esvaziamento de seu mister precípuo. A crítica em discussão não fere a tese de que a concretização do direito fundamental social prestacional pode ser realizada diretamente pelo Poder Judiciário, haja vista outra paradigmática decisão que no caso concreto obrigou o Estado a custear todo o tratamento para portador do vírus HIV – mesmo sendo de custo elevado – pois não existia política pública nesse sentido (omissão administrativa), nem lei que garantisse esse direito (omissão legislativa infraconstitucional), entretanto, o Judiciário de forma acertada, fundamentou diretamente do texto constitucional sua decisão para garantir o tratamento ao autor da ação e que foi confirmado nas instâncias superiores. Houve, após essa decisão, uma verdadeira “enxurrada” de ações e, pela reiterada procedência das mesmas, nos dias atuais todo e qualquer indivíduo portador de HIV tem o tratamento custeado pelo Estado. Fique claro que nem sempre o final será feliz como nesse caso ventilado, mas se tivéssemos afastado o Judiciário a priori de enfrentar a questão, o índice de óbitos pelo HIV seria bem mais acentuado e o direito à saúde (e conseqüentemente vida) seria letra morta e a Constituição transformar-se-ia em um grande cemitério jurídico, ou melhor, no inferno, sempre repleto de “boas intenções”.

No suso citado RMS nº 11.183/PR258, em contra-razões, o Estado do Paraná argumenta:

“Se é certo que a saúde pública brasileira mais beira às portas dos cemitérios do que a dos hospitais, por descaso, negligência e imperícia dos comandantes governamentais, não menos correto é afirmar da impossibilidade de se transpor as regras constitucionais, sob pena de se decretar a falência institucional e anarquia dos poderes”.

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Interessante perceber que o anunciado caos financeiro nos orçamentos de saúde e conseqüente “quebra” do Estado pelo fato do Judiciário conceder a tutela pleiteada nessas inúmeras demandas não aconteceu! É preciso nos indagarmos até quando haverá reconhecimento de omissão sem previsibilidade de eficácia social? Se o Executivo não concretizou o direito o Judiciário deve fazê-lo, caso contrário haveria anarquia pelo total descumprimento da Constituição Federal.

O Judiciário, em seu labor diário e casuístico na concretização de tais direitos de 2ª dimensão exerce invariavelmente pressão nos demais poderes no sentido dos mesmos procurarem implementar as políticas públicas necessárias. O Judiciário é, portanto, o último recurso que a sociedade dispõe contra os atos danosos ou as omissões perniciosas dos poderes Executivo e Legislativo. A invocação do ferimento ao princípio igualitário pela atuação judicial é sofística e desarrazoada, pois a atuação judicial concretizadora deve surgir quando da ausência de política pública causadora de vilipêndio a direito fundamental social prestacional a quem a ele recorrer. E se todos recorrerem ao Judiciário? Então todos devem ser atendidos! E os recursos? Responde essa questão Andreas Krell: “e se os recursos não são suficientes, deve-se retirá-los de outras áreas (transporte, fomento econômico, serviço de dívida) onde sua aplicação não está tão intimamente ligada aos direitos mais essenciais do homem: sua vida, integridade física e saúde”259; a conseqüência disso encontramos nas palavras de Celso Antonio Bandeira de Mello: “acredito que não sobrariam recursos para muitas mordomias se as decisões judiciais impusessem o cumprimento do que está no texto constitucional”260.

Em conclusão, tolher o Judiciário de decidir casuisticamente acerca da concretização dos direitos fundamentais sociais prestacionais a determinado indivíduo sob o argumento de afronta ao princípio igualitário e democrático haja vista não ser possível atender a todos da mesma forma por causa da escassez de recursos financeiros é afastar da sociedade seu último front de resistência e de

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KRELL, Andreas. Direitos sociais e controle judicial no Brasil e na Alemanha. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2002, p. 53.

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eficácia social do texto constitucional, qual seja o Poder Judiciário, e defendemos que há o fortalecimento do princípio da isonomia com as decisões judiciais concretizadoras, difícil verificar a priori, entretanto sinaliza para a plena concretização no futuro seja pela mora declarada, seja pela pressão popular e reivindicação social.

3.5 O JUDICIÁRIO NÃO POSSUIR A FUNÇÃO DE ATUAR NA IMPOSIÇÀO DE