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TRADIÇÃO DO JUDICIÁRIO BRASILEIRO NA INTERPRETAÇÃO LÓGICO-

PRESTACIONAIS E SUA CONCRETIZAÇÃO

4.1 TRADIÇÃO DO JUDICIÁRIO BRASILEIRO NA INTERPRETAÇÃO LÓGICO-

FORMAL EM DETRIMENTO DA MATERIAL-VALORATIVA356

“A magistratura brasileira tem desprezado o desafio de preencher o fosso entre o sistema jurídico vigente e as condições reais da sociedade, em nome da ´segurança jurídica´ e de uma visão por vezes ingênua do equilíbrio entre os poderes autônomos. Apenas a base da magistratura brasileira, por meio de alguns poucos – porém expressivos – juízes de primeira instância, é que tem tentado promover certas mudanças. Se toda a corporação judicial não renovar sua cultura técnico-profissional, permanecendo atrelada a uma visão- de-mundo liberal-clássica, sem compreender que quanto mais programáticas forem as normas dos direitos sociais, maior é o espaço deixado à discricionariedade nas decisões judiciais, o Judiciário corre o sério risco de ver a ordem jurídico-positiva fragmentada e despedaçada por uma sociedade dividida, contraditória e explosiva”357.

356

É importante ventilar que entendemos como interpretação lógico-formal aquela atrelada às idéias do antigo constitucionalismo liberal, donde o juiz era simplesmente a “boca da lei” e suas decisões eram tomadas com base na subsunção do fato à norma tornando-o um autômato. A interpretação lógico-formal dessa forma engessa o Órgão Judicante que entende não ser legitimado, e nem ser sua função, haja vista ser mister do Executivo e Legislativo, decisões de natureza política ou o adentramento na discricionariedade administrativa; em suma, refuta-se, por impertinente o debate axiológico acerca das normas, bem como o Judiciário se abstém de questionar o conteúdo material da lei, não é um juiz criativo, mas meramente lógico-dedutivo. Tal concepção prevaleceu nas Constituições liberais do final do séc. XVIII até o início do séc. XX, entretanto, inegável verificar que a partir do surgimento dos novos direitos constitucionalmente estabelecidos, quais sejam os direitos sociais, econômicos e culturais (2ª dimensão de direitos fundamentais), necessário seria uma atuação mais direta do Judiciário, haja vista, inclusive, com a superação da teoria da separação de poderes, cujo entendimento atual repousa na concepção da unicidade do poder estatal, este dividido em funções Executiva, Legislativa e Judiciária, donde encontramos funções típicas e atípicas, pois comumente verificamos o Executivo desempenhando função judicante (processos administrativos) ou legiferante (medidas provisórias), o Legislativo atuando como julgador (julgamento de crime de responsabilidade do Presidente da República) ou com função administrativa (quando organiza, seleciona e remunera seus servidores). Nesse contexto, o constitucionalismo social necessita de uma interpretação superadora daquela meramente subsuntiva, eis que surge a interpretação material-valorativa, esta preocupada com a concretização dos direitos e não simplesmente com sua enunciação formal. O Magistrado vê-se como agente de transformação social e suas decisões são dotadas de caráter político, adentrando em áreas não dantes exploradas e não olvidando da questão valorativa em suas decisões, não é mais um autômato, busca interpretar não mais a norma pela norma, em apego excessivo às formas, mas busca uma nova exegese em harmonia com os princípios constitucionais. Não é mais a “boca da lei”, mas a “boca do direito”.

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FARIA, José Eduardo. O Judiciário e os direitos humanos e sociais: notas para uma avaliação da

justiça brasileira. In: Direitos humanos, direitos sociais e justiça, (org.) José Eduardo Faria. São

Recasèns Siches ao acentuar a necessidade da interpretação jurídica discorre que: “sem interpretação não há possibilidade alguma nem de observância nem de funcionamento de nenhuma ordem jurídica”358.

Há no texto constitucional brasileiro conteúdo imodificável, pétreo, donde toda interpretação acerca da Constituição deve estar cingida; são os denominados direitos fundamentais; tais direitos revestem-se de status principiológico, haja vista serem verdadeiros princípios fundamentais. Concorda com essa afirmação Ivo Dantas quando assevera: “A interpretação constitucional há de ser feita levando-se em conta o sentido exposto nos princípios fundamentais consagrados na lei maior”359. Deste modo, o texto constitucional pode contemplar os mais caros direitos e afigurar-se materialmente perfeito, mas estará fadado ao insucesso inevitável caso haja interpretação não concernente com seus preceitos.

Igualmente, Luís Roberto Barroso ventila que “o ponto de partida do intérprete há que ser sempre os princípios constitucionais, que são o conjunto de normas que espelham a ideologia da Constituição, seus postulados básicos e seus fins”360. Evidentemente a interpretação constitucional há de iniciar identificando o princípio maior, partindo do geral para o específico, chegando em última análise “à formulação da regra concreta que vai reger a espécie”361.

É importante ventilar que a interpretação constitucional mesmo possuindo nuances bem particulares que a diferencia da interpretação das demais normas jurídicas, qual seja o forte caráter político-ideológico que possui, não abandona as considerações pertinentes contidas na hermenêutica clássica e contemporânea;

358

SICHES, Luís Recasèns. Introducción al estudio del derecho. México: Editorial Porrua, 1974, p. 210.

359

DANTAS, Ivo. Princípios constitucionais e interpretação constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 1995, p.79.

360

BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição. São Paulo: Saraiva, 2002, p.149.

361

antes, enriquece-a com a visão interpretativa peculiar e específica requerida pelo direito constitucional. Concordando com nosso pensamento encontramos Baracho destacando que a hermenêutica constitucional, embora seguindo princípios próprios do direito constitucional não abandona os fundamentos da interpretação da norma jurídica em geral utilizados pela teoria geral do direito, pelos magistrados ou pela administração362. No mesmo sentido Böckenförde ventila que:

“La particularidad – en modo alguno negada – de la Constitución frente a otras leyes puede ser considerada como un elemento adicional de interpretación, pero esto no permite llegar a una supresión del resto de las reglas de interpretación y a la renuncia a la estricta sujeción de la interpretación a las normas”363.

Logo, uma vez ventilada a importância da hermenêutica jurídica geral (ou clássica) para a interpretação constitucional, recorremos a Savigny que sustentava, ainda no século XIX, a ocorrência dos elementos clássicos da hermenêutica jurídica, quais sejam: gramatical, lógico, histórico e sistemático para interpretação jurídica364.

O elemento gramatical preocupa-se com as questões léxicas partindo do pensamento de que a ordem das palavras e a forma pela qual são conectadas são importantes para se obter o adequado significado normativo365; refere-se também ao significado dos signos normativos e o enfrentamento da problematização estudada pela semiótica, quais sejam a sintaxe, semântica e pragmática.

362

BARACHO, José Alfredo de Oliveira. Hermenêutica constitucional. Revista de Direito Público, nº 14, São Paulo, 1981, p.49.

363

BÖCKENFÖRDE, Ernst Wolfgang. Los derechos fundamentales sociales en la estructura de la

Constitución. In: Escritos sobre derechos fundamentales (trad.) Juan Luis Requejo Pagés. Baden-

Baden: Nomos, 1993, p. 16. 364

Corrobora nossa assertiva BÖCKENFÖRDE, Ernst Wolfgang. Escritos sobre derechos

fundamentales. (trad.) Juan Luis Requejo Pagés. Baden-Baden: Nomos, 1993, p. 16 ao asseverar: “la

interpretación de la ley esta vinculada a las reglas de interpretación de normas de la hermenéutica jurídica-clásica, como ha sido desarrollada ejemplarmente por SAVIGNY. A estas reglas pertenecen (sólo) la interpretación sistemática, la histórica, la lógica y la gramatical”.

365

FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito – técnica, decisão,

O elemento lógico preocupa-se com a conexão dos signos normativos, ou como assevera Carlos Maximiliano, parte do estudo das normas de per si consideradas, ou mesmo em conjunto, utilizando-se do raciocínio dedutivo e alcançando uma adequada interpretação366.

O elemento histórico leva em consideração o conteúdo do enunciado da norma mediante o exame de suas raízes históricas e de sua evolução interpretativa; e por fim, o elemento sistemático referindo-se à unidade do sistema normativo, entendendo que não se pode interpretar a norma jurídica isoladamente, buscando a unidade no ordenamento jurídico, pois as normas devem ser compatíveis sistemicamente.

Vistos os elementos da hermenêutica jurídica clássica, passaremos a discorrer acerca da hermenêutica jurídica contemporânea, quais sejam os elementos axiológico e teleológico; este último encontra assento em não reduzir o ato de interpretação em simples operação matemática. Rudolf Von Jhering quando encetou esse elemento na hermenêutica jurídica objetivava o equilíbrio entre os interesses sociais, individuais, públicos e coletivos, pautados pelo critério da isonomia367.

O elemento axiológico é aquele relacionado aos valores que a norma consagra para que seja vislumbrado com clareza o fim pretendido.

Em tempo, vale ressaltar que existe simetria entre os elementos da hermenêutica clássica e contemporânea, todos relevantes para prática do ato interpretativo.

366

MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. Rio de Janeiro: Forense, 1997, p.123.

367

GUERRA FILHO, Wlllis Santiago. Direitos subjetivos, direitos humanos e jurisprudência dos

Com esta breve explicação introdutória, destacando que a interpretação constitucional recorre aos elementos da hermenêutica clássica e contemporânea, ventilamos que por sua peculiaridade vai mais além, haja vista as nuances específicas trazidas na Constituição e que inexistem na interpretação das normas jurídicas inferiores ao texto constitucional. Como exemplo do asseverado, Paulo Bonavides nos adverte da natureza política da norma constitucional368, pelo próprio mister de estruturação do Estado, divisão de competências, estabelecimento (ou resguardo) dos direitos fundamentais que sempre devem ser observados e respeitados nas ações governamentais369.

Deduzimos que o modelo interpretativo liberal (lógico-formal) não resolve a problematização da interpretação constitucional, haja vista este ter caráter político- ideológico muito acentuado pelo seu próprio desiderato; tal situação se apresentou com o surgimento do Estado Social e os direitos fundamentais sociais (2ª dimensão); nas palavras de Chäim Perelman:

“Assim também o Estado, incumbido de proteger esses direitos e fazer que se respeitem as ações correlativas, não só é por sua vez obrigado a abster-se de ofender esses direitos, mas tem também a obrigação positiva da manutenção da ordem. Ele tem também a obrigação de criar as condições favoráveis ao respeito à pessoa por parte de todos os que dependem de sua soberania”370.

Entretanto, a prática em nossos Tribunais Superiores ainda repousa na vetusta visão lógico-formal em detrimento da interpretação material-valorativa, esta plenamente aplicável quando se trata principalmente do ato interpretativo do texto constitucional, “por causa de sua visão-de-mundo rigidamente normativista e

368

Fruto do poder político denominado Poder Constituinte. 369

BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. São Paulo: Malheiros, 1997, p.420. 370

formalista, o Judiciário não exige do executivo o cumprimento de suas funções, nem tenta evitar a degradação de seus serviços essenciais”371.

Existe, pois, uma perniciosa tradição do Judiciário brasileiro na interpretação lógico-formal em detrimento da material-valorativa. Encontraremos nos casos concretos de modo irrefutável o formalismo com o qual o STF interpreta a CF/88, fato observado também em relação à Constituição anterior, e esse dado empírico permeia, com nefastas conseqüências, toda a problemática acerca da interpretação constitucional e do controle judicial372.

Essa realidade é um legado do juspositivismo, cuja interpretação confere prevalência absoluta às formas e às deduções puramente lógicas com prejuízo da realidade social existente por trás de tais formas, bem como dos conflitos de interesse regulados pelo direito e que deveriam orientar o jurista no mister interpretativo.373

Há visivelmente o esposamento da interpretação lógico-formal, sendo refutados por impertinentes, a influência axiológica cujo escopo não é outro senão alcançar o máximo de justiça material. O magistrado – em caráter geral – não costuma questionar o conteúdo material das leis, limitando-se apenas em verificar a “subsunção do fato à norma”, com exegéticas e vetustas posições interpretativas.

Bem observa Andreas Krell quando afirma:

“Enquanto o positivismo jurídico formalista exigia a neutralização política do Judiciário, com juízes racionais, imparciais e neutros, que aplicam o direito legislado de maneira lógico-dedutiva e não criativa, fortalecendo deste modo

371

FARIA, José Eduardo. O Judiciário e os direitos humanos e sociais: notas para uma avaliação da

justiça brasileira. In: Direitos humanos, direitos sociais e justiça, (org.) José Eduardo Faria. São

Paulo: Malheiros, 2002, p. 109. 372

BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 372 destaca que: “O direito constitucional clássico, tão valioso durante o século passado por cimentar o valor político da liberdade, seria hoje em sua dimensão exclusivista e unilateral uma espécie de artefato pré-histórico, inútil, sem préstimo para os combates sociais da atualidade”.

373

BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico: lições de filosofia do direito. São Paulo: Ícone, 1999, p. 221.

o valor da segurança jurídica o moderno Estado Social requer uma magistratura preparada para realizar as exigências de um direito material, ancorado em normas éticas e políticas, expressão de idéias para além das decorrentes do valor econômico”.374

Entendemos que a CF/88 introduziu no ordenamento jurídico pátrio rol significativo de direitos fundamentais sociais prestacionais nunca antes experimentado em tempos pretéritos, e com essa mudança, há a necessidade do Judiciário rever seus critérios interpretativos, evoluindo para análise conjunta da norma e os princípios constitucionais, sempre vislumbrando alcançar o cerne fundamental contido na mesma e encontrando o valor tutelado por ela, não se esquivando em prolatar decisão que efetivamente contribua para a concretização do direito protegido.

Obstáculo a isso é que o STF, e nos reportamos a esse Tribunal Superior pelo fato de ser sua competência a palavra derradeira em matéria constitucional, decide com posicionamentos vetustos normas novas, contempladoras de direitos cuja amplitude, como já ventilado alhures, não encontra precedentes na história do Brasil, contudo, necessitam que o Judiciário abandone a posição tímida e vacilante que adotara, especialmente no que tange à questão do controle dos atos do poder público pertinentes à implementação de políticas públicas assecuratórias de eficácia social aos direitos fundamentais sociais prestacionais e não continuem utilizando métodos meramente lógico-formais, sistemáticos e dedutivos, pois a experiência advinda nesses 16 anos da CF/88 já demonstrara que dessa maneira não se aplicam tais direitos.

Nesse diapasão, Carvalho leciona:

“Sem descurar do enfoque político-institucional que o intérprete deve fazer valer em seu mister, a exegese constitucional deve mirar, sobremodo, a

374

KRELL, Andreas. Realização dos direitos fundamentais sociais mediante controle judicial da

prestação dos serviços públicos básicos. In: Anuário dos cursos de pós-graduação em direito nº 10

– Recife: Universidade Federal de Pernambuco / CCJ/ João Maurício Adeodato (Coord.), editora universitária da UFPE, 2000, p. 48.

eficácia social encartada na norma. Afinal, a Constituição é meio e fim, em concomitância, do Estado e da cidadania”375.

A importância do controle judicial ao adotar uma interpretação constitucional material-valorativa é vital num Estado democrático e social de direito, pois nele vislumbramos basilarmente a separação das funções que compõe o poder – este tendo como único titular o povo – bem como o efetivo controle judicial dos atos do poder público como verdadeiro sistema de freios e contrapesos (checks and balances) onde deve existir constante e mútua fiscalização no controle da atuação nas funções estatais. Gisele Cittadino ventila:

“(...) a Corte Suprema deve recorrer a procedimentos interpretativos de legitimação de aspirações sociais à luz da constituição e não a procedimentos interpretativos de bloqueio, pretensamente neutros, vinculados a uma concepção de Estado mínimo e adequados a uma legalidade estritamente positivista”376.

Bem observa Mauro Cappelletti quando afirma: “a justiça constitucional, especialmente na forma do controle judiciário da legitimidade constitucional das leis, constitui um aspecto dessa nova responsabilidade dos juízes”.377

Esse mesmo jurista italiano, analisando as “novas responsabilidades” do Judiciário ventila que a ele resta duas alternativas: ou mantém aquela clássica e típica concepção oriunda do séc. XIX ou assume seu novo papel e “eleva-se ao nível dos outros poderes, tornar-se enfim o terceiro gigante, capaz de controlar o legislador mastodonte e o leviatanesco administrador”.378

Logo, uma separação de poderes meramente formal profanaria o princípio idealizado por Montesquieu, pois seu escopo é tão somente a insubsistência do poder absoluto, dessa forma resguardando-se os direitos fundamentais, uma vez

375

CARVALHO, Ivan Lira de. A interpretação da norma jurídica. In: Revista dos Tribunais, vol. 633, jul. de 1993, p. 56.

376

CITTADINO, Gisele. Pluralismo, direito e justiça distributiva. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2000, p. 63.

377

CAPPELLETTI, Mauro. Juízes legisladores? Trad. Carlos Alberto Álvaro de Oliveira. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris editor, 1993, p. 46.

378

que cada um dos “poderes” teria seu escopo definido, mas sujeito ao controle dos demais. Ademais, se na atualidade essa garantia dos direitos fundamentais sociais prestacionais encontra óbices em sua concretização justamente em respeito a esse princípio, então é preciso verificar qual argumento está sendo utilizado para desvirtuá-lo na realidade contemporânea, pois não se admite que, escudados sob o pálio do mesmo, o Judiciário declare sua incompetência.

4.2 ANÁLISE DE JULGADOS ACERCA DA CONCRETIZAÇÃO DOS DIREITOS