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Do princípio da legalidade aos princípios da juridicidade administrativa

No documento URI: DOI: (páginas 51-56)

I. A vinculação da Administração ao direito público

1. Do princípio da legalidade aos princípios da juridicidade administrativa

1.1. A vinculação jurídica da Administração no século XIX

No período liberal, a administração estava limitada pelo.princípio.da.

legalidade.administrativa, entendido nos seguintes termos, formulados a seguir sinteticamente como subprincípios:.

a) o princípio do primado. da. lei (em sentido negativo), segundo o qual toda a actividade administrativa tinha de respeitar estrita‑

mente as determinações legais, sob pena de invalidade (primazia hierárquica da lei);

b) o princípio da reserva.de.lei — uma tripla reserva: orgânico.‑formal (só o Parlamento podia fazer “leis”), funcional (a emissão de leis correspondia a uma função específica, a função legislativa) e material (as leis identificavam ‑se com as normas jurídicas, que eram exclusi‑

vamente as normas relativas.à.esfera.da.liberdade.e.da.propriedade.

dos.cidadãos) – da qual resulta o monopólio parlamentar de emissão de “normas jurídicas” e uma correspondente zona.de.administra‑

ção.estritamente.vinculada à lei (investigação criminal, restrições à liberdade, liquidação e cobrança de impostos, expropriações);

c) o princípio da discricionaridade.livre (reserva de Administração), não estando esta subordinada a normas jurídicas, nem na organiza‑

ção, nem na actividade desenvolvida, normativa ou concreta, fora.

da.zona.reservada.à.lei, isto é, fora das matérias que tocassem a esfera jurídica dos cidadãos (dos cidadãos enquanto tais, já que as “relações especiais de poder” não eram consideradas jurídicas) – reconhecendo ‑se, porém, uma “cláusula geral de polícia”, que conferia à Administração poderes implícitos (de direito natural) para a “defesa do interesse social” e a “manutenção da ordem pública”;

d) o princípio da presunção.da.legalidade.da actuação administrativa e os princípios da “autotutela declarativa” (imperatividade unila‑

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teral) e da “autotutela.executiva” (executoriedade, quando fosse necessário o uso de meios coercivos) dos actos administrativos de autoridade, como privilégios de autoridade da Administração sobre os privados;

e) o princípio do controlo. jurisdicional. limitado (se existente) – o controlo da validade dos actos administrativos estava a cargo de órgãos superiores da Administração ou de órgãos administrativos independentes, e, quando a justiça administrativa operava ou passou a operar através de tribunais, estes dispunham, em regra, apenas de poderes cassatórios (poderes de anulação de actos ad‑

ministrativos, mas não de condenação na prática ou na abstenção de actos ou comportamentos).

1.2. A subordinação da Administração ao Direito no Estado Democrático e Social — o princípio da juridicidade

As mudanças operadas na segunda metade do século XX, já antes re‑

feridas — alteração do sentido e do conceito material de lei; alargamento do domínio juridicamente relevante; desenvolvimento exponencial das esferas de actuação administrativa — têm como consequência a amplia‑

ção e a diversificação das relações entre a Administração e o Direito, gerando um novo paradigma.

Em paralelo com as características evidenciadas para o princípio liberal da legalidade, podemos salientar, quanto à subordinação da Administração ao.princípio.da.juridicidade.(lei.e.Direito), vários subprincípios:

a) o princípio do primado.da.lei em sentido negativo: mantém ‑se a primazia normativa das normas legislativas sobre todas decisões da administração (embora se possa admitir, a título excepcional, a desaplicação pelos órgãos superiores da Administração de leis manifestamente inconstitucionais);

b) o princípio da precedência da lei (ou do primado da lei em sentido positivo), nos termos do qual a lei (agora igual a acto.legislativo,

incluindo o decreto ‑lei e também as normas da União Europeia com valor legislativo) se torna o pressuposto e o fundamento de toda a actividade administrativa, seja no domínio da administração de autoridade (agora alargado aos actos autorizativos e às “relações especiais de poder”), seja quanto à administração social ou de prestações, determinando, no mínimo, os interesses públicos especí‑

ficos (o fim, manifestado na hipótese legal através da definição dos pressupostos específicos das decisões administrativas) e os órgãos encarregados (a competência) da prática de actos administrativos

— princípio que, com a tripla função de instrumento de orientação política, de garantia da racionalidade e de tutela de direitos dos particulares (incluindo a autorização para a actuação administrativa de autoridade), configura uma reserva.de.função.legislativa;

c) o princípio da determinidade.de.conteúdo, como manifestação espe‑

cífica da reserva.de.Parlamento: nas matérias de reserva legislativa parlamentar ou “domínio legislativo por natureza”— onde, além dos direitos fundamentais dos cidadãos, se englobam as decisões sobre as matérias consideradas fundamentais para a vida em so‑

ciedade, segundo um “princípio de essencialidade” —, exige ‑se uma densidade.legal.acrescida e, portanto, uma vinculação.mais.

intensa (substancial, formal e procedimental) da actividade admi‑

nistrativa (regulamentar ou concreta) à.lei, excluindo, em princípio, a concessão de poderes discricionários;

d) o princípio da discricionaridade.condicionada, segundo o qual a existência de poderes.discricionários depende de concessão legisla‑

tiva e o seu exercício, tal como toda a actividade da Administração, está subordinado ao Direito – seja aos preceitos constitucionais relativos aos direitos, liberdades e garantias, com os quais tem de se conformar, seja a princípios jurídicos fundamentais (igualdade, imparcialidade, proporcionalidade, justiça, boa fé, racionalidade), que regulam o modo da sua actuação;

e) o princípio da. imperatividade. atenuada.– não há presunção de legalidade da actividade administrativa (há, pelo contrário, um dever da Administração de fundamentação das suas decisões, de‑

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signadamente das desfavoráveis para os destinatários) e, embora se preserve a autoridade (“autotutela declarativa”) e, de algum modo, a estabilidade (“caso decidido”) dos actos administrativos, limita ‑se a executoriedade (“autotutela executiva”) dos actos de autoridade aos casos previstos na lei e às situações de urgência;

f ) o princípio da tutela. judicial. plena. e. efectiva – o poder judicial, actualmente dotado de poderes de plena jurisdição (apreciação, anulação e condenação), pode e deve controlar, quer a legalidade (em sentido estrito, de conformidade às normas escritas de valor legislativo ou regulamentar), quer a juridicidade (no sentido de conformidade ao Direito, incluindo os princípios jurídicos funda‑

mentais) da actividade administrativa.

1.3. As dificuldades e as compressões ao princípio da legalidade e ao correlato princípio da tutela judicial efectiva no âmbito da concretização actual das políticas públicas em contexto transnacional

Acentua ‑se nos últimos tempos uma crise. da. legalidade. estrita, que decorre de vários factores:

a) da relevância primacial das normas constitucionais, das normas internacionais e das normas de direito europeu directamente apli‑

cáveis, que são hierarquicamente superiores ou têm preferência aplicativa sobre os actos legislativos nacionais e os conformam ou substituem na vinculação da Administração;

b) da importância acrescida e decisiva dos princípios.jurídicos como padrões jurídicos autónomos, na aplicação (interpretação, con‑

cretização, adaptação, correcção e controlo da legitimidade) das disposições normativas (incluindo as legislativas), utilizados para resolução ponderada dos “casos difíceis”, designadamente pelo poder judicial;

c) da proliferação, sobretudo em áreas económicas e sociais, de di‑

rectivas político ‑estratégicas de conteúdo aberto – ainda que sob forma legal (de decreto ‑lei) e regulamentar (resoluções do Conselho de Ministros) – e de standards científicos e técnicos, por vezes de

origem privada, europeia e internacional, que, a vários títulos e em diversos níveis, adquirem força vinculativa e regulam a actividade administrativa – ou seja, de normas que constituem programas.

finais (e não condicionais), com prejuízo para a intensidade da vinculação administrativa;

d) do desenvolvimento, nas áreas económicas de interesse geral, da regulamentação.independente.por parte das “autoridades regula‑

doras”, nacionais, europeias e internacionais, com escassa sujeição à legalidade material interna;

e) da tendência, em diversas áreas, para a redução das formas e procedimentos de controlo administrativo prévio das actividades privadas (“licenciamento zero”) e também uma desvalorização de preceitos substanciais de menor relevo, em homenagem a uma eficiência de resultados na realização do interesse público – em‑

bora a par da (e em contraposição à) consagração de direitos à informação, à audiência prévia, à participação procedimental e à fundamentação das decisões (na formulação europeia, de um

“direito a uma boa administração”);

f ) da difusão, nos procedimentos administrativos, de actuações.infor‑

mais, com relevo jurídico atenuado.

1.4. Os princípios jurídicos fundamentais materiais (substanciais ou valorativos), como concretizações do princípio da juridicidade, passam a reger directamente a actividade administrativa – seja autonomamente, como padrões de validade, seja influenciando a interpretação e aplicação administrativa e judicial das disposições legais (interpretação da lei em conformidade com os princípios).

São exemplos destes princípios substantivos fundamentais (aos quais se somam diversos princípios jurídicos instrumentais, funcionais e procedimentais), os seguintes princípios, quase todos consagrados na Constituição (artigo 266.º, n.ºs 1 e 2) e na lei (artigos 3.º e ss do CPA):

a) Princípio da prossecução.do.interesse.público.no.respeito.dos.direitos.

dos.cidadãos.(princípio ‑quadro);

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b) Princípio da imparcialidade, nas suas vertentes subjectiva ou formal (imparcialidade do agente decisor) e objectiva ou material (impar‑

cialidade da decisão, por consideração de todas as circunstâncias e interesses relevantes);

c) Princípio da igualdade, nas suas diversas dimensões: não discrimi‑

nação e proibição.do.arbítrio, incluindo o tratamento igual (equal treatment).e o tratamento como igual (treatment.as.an.equal);

d) Princípio da proporcionalidade, na tripla dimensão de adequação, necessidade e equilíbrio (proporcionalidade, em sentido estrito), designadamente nas actuações que impliquem restrições ou com‑

pressões de posições jurídicas subjectivas e na aplicação de sanções;

e) Princípio da razoabilidade, como critério de ponderação (ba‑

lanceamento) de valores, direitos e interesses conflituantes (reasonableness);

f ) Princípio da boa.‑fé, incluindo a proibição do abuso de direito;

g) Princípios da segurança. jurídica e, do lado dos particulares, da protecção.da.confiança.legítima;

h) Princípio da justiça – embora este princípio seja pouco operacional, por ter uma formulação vaga e potencialmente muito abrangente;

i) Princípios da racionalidade e da veracidade como imperativos não escritos de toda a actuação administrativa;

j) Princípio.da.boa.administração, a Administração Pública deve pautar‑

‑se por critérios de eficiência, de economicidade e de celeridade (na sequência da consagração, na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, do direito à boa administração).

k) Princípio do estado. de. necessidade. administrativo – um “contra‑

‑princípio”, que fundamenta a dispensa da aplicação das disposições legais, sobretudo formais, em situações de excepção.

No documento URI: DOI: (páginas 51-56)