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Capítulo 1. História, Memória e Movimentos Sociais: perspectivas teórico-

1.2. Do terreno aos arquivos: caminhos e encruzilhadas

Uma primeira abordagem ao terreno remonta a 2002, tendo por objectivo um trabalho sobre as memórias dos campos de refugiados da herdade da Coitadinha, no âmbito da História Oral (cadeira optativa da licenciatura em Antropologia no ISCTE/UIL). O contacto com Carlos Durão (primeiro presidente da Câmara após o 25 de Abril), resgatado da visita técnica a Barrancos com César Oliveira em 1986, contribuiu para me integrar no terreno e aceder aos primeiros informantes como José Augusto Fialho (proprietário da herdade da Coitadinha) com quem voltei a conversar em 2007, e Manuel Agudo dos Santos (antigo vaqueiro da herdade da Coitadinha), que juntamente com sua esposa e irmã se tornaram na minha família de acolhimento durante o trabalho de campo realizado entre 2006 e 2010. Quando iniciei o projecto de investigação em Outubro de 2006 aceitei o convite irrecusável da senhora Francisca Agudo para ficar alojada na sua casa no Cerro (zona habitacional dos trabalhadores rurais). Aí permaneci ao longo das várias estadias no terreno partilhando o quotidiano com a família e as vizinhas, que ao fim da tarde se reuniam no pátio térreo da casa

18 Disponível em: http://www.h-debate.com/Spanish/historia%20inmediata/memoria/autogarzon.pdf.

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tecendo rendas e conversas, entrelaçando os pequenos dramas domésticos com as memórias colectivas de uma classe subalternizada. A minha estadia foi motivo de curiosidade para familiares ou vizinhas mais distantes, mas após a apresentação pública do livro Barrancos na encruzilhada da guerra Civil de Espanha, em Outubro de 2007, já todos sabiam quem era e ao que vinha, e se dúvidas houvesse a senhora Francisca esclarecia, integrando-me afectuosamente na comunidade e salientando o objectivo do meu trabalho em Barrancos, as memórias da guerra espanhola.

A partir de 2008 as memórias da guerra foram activadas na comunidade pela candidatura de Barrancos à “Medalla de Extremadura”, e as solicitações da comunicação social portuguesa e estremenha junto daqueles que tinham testemunhado os acontecimentos nas herdades da Coitadinha e das Russianas atribuiu protagonismo a um colectivo votado ao esquecimento. A Câmara Municipal contribuiu para a legitimação, convidando Manuel Agudo dos Santos, sua esposa Maria dos Remédios Guerreiro e a irmã Francisca Agudo para participarem em programas televisivos, reportagens e documentários em ambos os lados da fronteira, apresentando-os como os rostos da solidariedade de uma comunidade localmente imaginada. Subitamente as suas vidas transformaram-se, adquirindo novos significados e protagonismo nos ecrãs televisivos e nas páginas de jornais e revistas, comentados e partilhados pelos vizinhos. Barrancos rompia o esquecimento através das palavras e da vida destes idosos, e o país relembrava a diferença cultural dos barranquenhos (o dialecto e os touros de morte), agora ancorada na solidariedade para com os vizinhos espanhóis. A comunidade é iniciada quando os pronomes da solidariedade são repetidamente enunciados, e ao pronunciarem o “nós”, os participantes reúnem-se não só num espaço exteriormente definível, mas também numa espécie de espaço ideal determinado pelos seus actos discursivos (Connerton, 1989:68) O fenómeno mediático esteve presente ao longo do trabalho de campo, problematizando os usos políticos da memória e alterando as formas rotineiras de vida de alguns dos entrevistados.

A estadia no terreno em períodos descontinuados ao longo de quatro anos permitiu-nos aceder a diferentes interlocutores e construir uma rede de relações em ambos os lados da fronteira, fundamental à realização de entrevistas e à interpretação do espaço social das diferentes comunidades fronteiriças.19 Como assinala Sperber (1982),

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o principal instrumento de trabalho do etnógrafo é o conjunto de relações pessoais por meio das quais se liga a uma rede social, mas apenas se constroem relações pessoais deixando os outros participar com as suas ideias e sentimentos na respectiva construção. Todavia, não é melhor etnógrafo o que tem melhores relações humanas, mas o que compreende e interpreta melhor as representações sociais, embora nenhuma técnica pareça substituir o trabalho de compreensão intuitiva (Sperber, 1992:55). O grupo de entrevistados (constituído por cinquenta pessoas de ambos os sexos) não foi seleccionado por intuição mas por representar diferentes classes sociais residentes em Barrancos, Encinasola e Oliva de la Frontera e noutros lugares, testemunhas e protagonistas do conflito espanhol.20 Na sua maioria, pertencem a uma geração que Lisón-Tolosana (1983) caracterizou de “geração em declínio”, representativa do grupo de idosos, a geração guardiã da memória da vida local e social. A recuperação da memória da “geração em declínio” serve aos grupos e às sociedades para a reconstrução das suas identidades, e para compreendermos como recordam o impacto de um acontecimento violento. Os estudos na área da psicologia social demonstram que os acontecimentos que produzem grandes transformações nas vidas das pessoas, devido à sua carga emocional, afectam sobretudo aqueles que viveram os acontecimentos nas idades compreendidas entre os 12 e 25 anos. Para além de representar um período de formação da identidade e das primeiras relações afectivas, compreende também um tempo de grande instabilidade emocional e fisiológica, e cada uma destas dimensões está directamente relacionada com a formação da memória e do esquecimento (Pennebaker, 1993:47). mais de 80 anos 31 70 a 80 anos 13 menos de 70 anos 6

Faixas etárias dos entrevistados

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A selecção dos entrevistados de Barrancos sustentou-se em laços de parentesco, de amizade e de vizinhança que os unem num quadro de relações de dependência ou de solidariedade, remetendo para lugares ou acontecimentos específicos passados. Os entrevistados das povoações espanholas foram seleccionados em função de relações de amizade com os vizinhos de Barrancos e também com a colaboração dos membros do Ayuntamiento de Oliva de la Frontera e de Encinasola que se interessaram pelo nosso trabalho.21 Desta forma foi possível analisar o processo de interacção social entre diferentes grupos sociais na fronteira em diferentes níveis e escalas, de forma a compreendermos as rupturas e as continuidades das relações de vizinhança institucionais ou informais.

21 Nas povoações espanholas são raros os sobreviventes da repressão franquista, e os seus descendentes

migraram para as grandes cidades. Aqueles que restam foram sobretudo testemunhas e vítimas de um processo de segregação social, e poucos estão dispostos a dar o seu testemunho. Em Oliva e Encinasola o poder local procurou recuperar as memórias do passado, mas é mais fácil encontrar quem nos fale do contrabando do que da guerra, apesar de se entrelaçarem temporalmente. Para aceder às memórias da guerra começámos algumas entrevistas pelas memórias do contrabando, estabelecendo relações de vizinhança com Barrancos, para posteriormente falarmos sobre fugas e acontecimentos locais ocorridos durante a guerra.

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As histórias de vida justificaram-se como instrumento metodológico, e o seu cruzamento contribuiu não apenas para o conhecimento generalizado dos acontecimentos, mas também por destacarem as vivências comuns dos entrevistados (Davies, 1999), pois todas as representações mentais são concebidas e compreendidas no contexto de um saber partilhado, do qual as pessoas emitem versões periféricas ou transformações idiossincráticas de representações comuns (Sperber, 1992:51). As histórias de vida têm constituído tema de sucessivas reflexões relativamente à sua validade científica numa perspectiva epistemológica das ciências sociais. “Ilusão biográfica” para Bourdieu (1994), “estudo de caso” para Bertaux (1981), ou valorização epistemológica da biografia, legitimada como instrumento de investigação para Ferrarotti (1991), eis algumas das perspectivas levantadas por autores que usavam as histórias de vida como instrumentos empíricos, visando o conhecimento científico (Pujadas, 2000). A utilização de biografias ou histórias de vida constitui uma abordagem metodológica na pesquisa etnográfica como material passível de interpretação sobre determinada realidade social e cultural, considerando que as experiências de um indivíduo não são apenas resultado da sua individualidade mas da sua integração num dado meio social (Halbwachs, 1950). As histórias de vida ao darem a voz aos sem voz (Thompson, 1989) representam um testemunho único, colocando em evidência o valor intrínseco do documento pessoal, atribuindo à “banalidade da vida quotidiana” uma dimensão antropológica (Poirier et al., 1983).

Na recolha das histórias de vida utilizamos como método a entrevista, sendo o seu produto resultado de entrevistas não estruturadas, através da sugestão de tópicos (Davies, 1999). As entrevistas foram complementadas por pesquisa documental, contextualizando a narrativa dos acontecimentos e as experiências de vida. O guião de entrevista teve apenas uma função orientadora, pois em muitos casos nem estabelecemos nenhuma ordem cronológica ao seu desenvolvimento, por considerarmos primordial criar condições de interacção com as pessoas, de forma a reduzir possíveis constrangimentos. O principal objectivo foi tentar recolher a maior quantidade de informações voluntariamente, considerando que o material assim recolhido é particularmente importante por transmitir os valores e a sua forma de cada pessoa pensar sobre si e sobre a sua vida (Watson &Watson-Franke, 1985:16). Seguindo esta linha metodológica as entrevistas foram motivadas por tópicos temáticos impulsionadores da narrativa em função dos entrevistados, influenciando a sua

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sequência mnemónica e a abordagem a aspectos específicos das suas experiências de vida. Como defendem alguns investigadores a memória pode não servir para uma reconstrução fiel dos acontecimentos, mas serve para descobrir o significado social do conflito. O essencial, como assinalou Portelli (1989), é resgatar a interpretação e a leitura que cada sujeito faz do acontecimento histórico a partir das suas próprias vivências. O recurso ao estilo indirecto livre utilizado ao longo do texto, em itálico, serve para destacar as representações conceptuais dos entrevistados.

Para cada entrevistado elaborámos uma ficha de identificação reunindo um conjunto de dados que permitem uma caracterização do grupo relativamente a actividades profissionais ou ao “parentesco espiritual” (Cutileiro, 2004:183).22 Como

complemento das entrevistas construímos genealogias como instrumento de compreensão e análise de grupos de parentesco e suas representações hegemónicas na comunidade, evidenciando o poder em determinados grupos familiares ou a escassa mobilidade social de outros. O método genealógico, que remonta aos primórdios da Antropologia, teve por pioneiro William Rivers (1910) utilizando as genealogias como “documentos históricos” para elaborar sistemas de parentesco e aceder à organização social e política das sociedades ditas primitivas, dos povos sem História. Posteriormente, Malinowski (1922) implementa o trabalho de campo com observação participante, produzindo uma revolução metodológica nas ciências sociais fazendo uso das genealogias, apesar de Stocking Jr. (1997) referir que o trabalho de campo fora anteriormente desenvolvido e defendido por antropólogos americanos como Franz Boas e Rivers. As genealogias tiveram um papel relevante como método para o estudo do parentesco, no qual o sistema linhageiro articulava as várias dimensões da organização social e dos sistemas políticos das sociedades (cf. Evans-Pritchard, 1940; Lévi-Strauss, 1949), mas ultrapassado o paradigma perderam aplicabilidade apesar de manterem ainda a sua funcionalidade instrumental (Lima, 2003). Neste trabalho utilizamo-las como documentos complementares à análise da organização dos grupos familiares, mas também se revelaram importantes no quadro das relações entre investigador e entrevistados, pela diversidade de recordações e emoções que a sua construção suscita.

Na primeira fase do projecto detivemo-nos na pesquisa bibliográfica sobre estudos locais e regionais, assim como em trabalhos teóricos sobre temáticas de

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fronteira; identificações locais, culturas de orla e arquitectura das nações da fronteira entre o Alentejo, a Andaluzia e a Extremadura, fundamentais ao mapeamento do lugar da fronteira num tempo longo. Dos trabalhos publicados sobre Barrancos destacam-se as obras de Leite de Vasconcelos, Filologia Barranquenha (1955) e algumas referências na obra Etnologia Portuguesa. Tentame de Sistematização (1942). Existe também uma diversidade de publicações locais (Matos Coelho, 1997; Barriga, 1999; Cosme, 2001; Fernandes, 2001, 2005; Franco, 2000; Eloy, 1999, 2001 e Piçarra, 2001). Os trabalhos de Matos Coelho, O Castelo de Noudar, Fortaleza Medieval (1997); de João Cosme,

Fontes para a História de Barrancos, Registos Paroquiais 1674-1704 (2001) e de António Eloy, Em Barrancos (1999) e Barrancos Resiste (2001), editados pela Câmara Municipal de Barrancos, testemunham o interesse do poder local na divulgação do seu património histórico e cultural. Os trabalhos de investigação académica como teses de licenciatura e teses de mestrado em Antropologia e Sociologia são maioritariamente de estudantes naturais de Barrancos (Domingues, 1995, 2003; Lopes, 2001; Espírito Santo, 2001), à excepção de Tuleski (2001), incidindo sobre acontecimentos históricos e práticas culturais. Norberto Franco, natural da Amareleja e professor do ensino secundário em Barrancos durante vários anos, publicou O Porquê de Barrancos; a

Cultura, a História, os Touros, o Direito (2000) apresentando um trabalho de síntese sobre a História e as tradições do concelho de Barrancos, com particular destaque para as touradas, analisando todo o processo da polémica em torno dos touros de morte. Segundo este autor os primeiros trabalhos publicados sobre Barrancos foram da autoria de Gustavo Matos Sequeira: Noudar; Notícia Histórica (1909) e de Leite de Vasconcelos Filologia Barranquenha (Franco, 2000:131). No conjunto de trabalhos merece particular destaque a tese de licenciatura Da Antropologia ao Antropólogo;

Barrancos de um percurso, assinalando o trabalho pioneiro de dois jovens antropólogos Cristiana Bastos e Pedro Everard: “Preocupa Barrancos, e preocupa-nos em Barrancos, a definição da sua identidade. (…) A afirmação da identidade de Barrancos como noutros lados passa necessariamente pela definição das origens” (Bastos & Everard, 1982:9). Ao elegerem como objecto de estudo a identidade barranquenha contribuíram não apenas para o conhecimento histórico de Noudar e Barrancos, como também desbravaram caminhos para o estudo de alguns aspectos da sociedade local, como o poder das famílias e do município. Na área da História e Arqueologia, Miguel Rego destaca-se com um conjunto de estudos sobre o castelo de Noudar (1994, 1998, 2001, 2003), sobre as relações de vizinhança entre Barrancos e Encinasola (1997, 2002) e

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como coordenador do congresso: A Guerra Civil de Espanha na Raia Portuguesa (1999). Outros trabalhos académicos foram realizados por Casimira (1982), Francisco Ramos (1999 e 2000), Luís Capucha (2002), Paula Godinho (2005ª) e Ema Pires (2006) cujo enfoque destaca a diversidade cultural de Barrancos face a uma cultura homogénea nacional. Em Espanha foram produzidos alguns artigos científicos como o estudo de María Victoria Navas (1992 e 1996) sobre o dialecto barranquenho, e o trabalho de Mónica Cornejo e Ema Pires (2003) “Una fiesta y varias fronteras: los Quintos de Barrancos (Portugal) y Noblejas (España) analisando desde uma perspectiva comparativa a festa dos Quintos.

Com este conjunto de materiais construímos o capítulo “Território, fronteira e relações transfronteiriças” questionando a fronteira como categoria polissémica, susceptível de usos e lógicas diferenciadas e contraditórias. Ao analisarmos a fronteira de Barrancos em diferentes escalas, conjugando o processo histórico da sua delimitação, com o processo social de negociações e conflitos entre a acção estatal e as populações locais, procurámos compreender de que forma o lugar da fronteira contribuiu para a construção de redes sociais transfronteiriças e para a produção do saber local. No capítulo seguinte, “A sociedade barranquenha: ricos, pobres e remediados”, reencontramos o passado no presente a partir do trabalho de campo e das memórias colectivas de diferentes classes sociais, produzindo uma dialéctica entre o espaço público e privado, os lugares e as práticas. A etnografia histórica permite-nos ver o poder na relação entre produção e regulação ao longo de diversas gerações, atribuindo uma configuração social a certos padrões de resistência quotidiana. O enfoque nas relações de produção remete para o passado da sociedade rural, desenhando classes e processos de reprodução cultural numa perspectiva gramsciana, ou seja, na forma como cada classe viveu e construiu a sua visão do mundo. A noção de hegemonia proposta por Gramsci, aliada às estratégias de resistência de James C. Scott (1985 e 1990), incitou-nos à reconstrução do projecto etnográfico de forma mais histórica e realista, para entendermos as relações de poder nas especificidades da produção social e da reprodução, num determinado período de tempo, através da caracterização da inter- relação de práticas instituídas e sensibilidades interpretativas.

A investigação histórica versa várias ligações entre espaços que concebemos como “o terreno” e outras que não imaginámos desta forma. No percurso de descobrir essas relações foi importante não acrescentar apenas locais ao mapa antropológico mas

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repensarmos fundamentalmente as relações entre espaços e fontes de conhecimento (Des Chene, 1997:81). Se por um lado questionámos os nossos informantes na tarefa de investigar “documentos humanos” (Griaule, 1969:19), também procurámos questionar os documentos, “testemunhas que só falam quando as interrogamos” (Marc Bloch, 1997:231). Mas a metáfora de conversação com os documentos não foi levada muito longe, por ser através da conversação com as pessoas que encontrámos as respostas às nossas questões. O recurso a arquivos nacionais e municipais nas suas inúmeras significações, como arquivos de enunciados, lugares de poder e autoridade do Estado, representa um “arquivo do mal” (Derrida, 2001) ao encontrar o seu lugar na falta originária e estrutural da memória (Derrida, 2001:22). Os documentos remetem sempre a alguma coisa que foi visível, mas já não o é, adquirindo uma referência ao passado, ao invisível, preservando a sua qualidade de documento ou tornando-se monumentos (Pomian, 1992). Os arquivos são sobretudo depósitos de registos do passado repletos de lacunas, mas é sempre possível questionar ou descobrir os documentos que respondam às nossas questões, sem exigir que os arquivos preencham silêncios ou que comentem o próprio silêncio (Des Chene, 1997:77).

A pesquisa documental pretendeu reconstruir alguns acontecimentos a partir de diferentes escalas, resultando no cruzamento de fontes procedentes de arquivos nacionais, regionais, locais e particulares que em alguns casos se complementam por meio de exercícios de bricolage, plasmados sobretudo nos capítulos: “Política do Estado Novo e acção dos seus representantes na fronteira” e “A guerra na fronteira, e os fluxos de refugiados”. Pomian (1992) assinala que os documentos de arquivos formam uma memória objectivada, independente da sua origem e dos agentes envolvidos, e quando colocados ao serviço da pesquisa são objecto da História, reencontrando a dimensão memorial na identificação do investigador com a escrita. Para Halbwachs (1950) as fontes escritas não são mais autênticas do que as fontes orais e ambas devem ser analisadas criticamente, sendo este o critério indispensável àqueles que concebem a prática historiográfica como científica. Em termos epistemológicos não encontramos diferença fundamental entre fonte escrita e fonte oral, considerando que tanto a memória como os documentos são socialmente construídos (Pollack, 1992) e interpretados em função das perspectivas teórico-metodológicas a partir das quais construímos o nosso projecto, tratando os documentos e as narrativas dos entrevistados como interlocutores.

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Neste estudo reunimos materiais de arquivo de forma complementar, resultados de investigação histórica oral e de investigação etnográfica no presente. Nesta encruzilhada, realizámos pesquisa documental no Instituto dos Arquivos Nacionais Torre do Tombo (IANTT) em vários períodos, focalizados primeiramente na correspondência do Gabinete do ministro do Interior, no Arquivo Salazar (Guarda Fiscal e Guerra de Espanha), no arquivo da União Nacional (correspondência com a Comissão Concelhia de Barrancos) e no Arquivo da PIDE/DGS (ordens de serviço, registo de presos, relatório 1932-1938) durante os anos de 1936 a 1939, apesar de algumas questões surgidas no terreno exigirem o enfoque noutras datações e materiais. O Arquivo Histórico Militar constituiu uma das maiores fontes de documentação relativamente aos procedimentos e acções de controlo e vigilância da fronteira durante o conflito espanhol (envolvendo a correspondência entre o exército com as restantes forças militares no terreno), colmatando a inexistência de materiais no Arquivo da Guarda Nacional Republicana e no Arquivo do Comando Geral da Guarda Fiscal, consultados em 2007. A nível regional, consultámos o Arquivo do Governo Civil de Beja (correspondência com o concelho de Barrancos 1935-1938) de forma a preencher os vazios da documentação do Arquivo Histórico Municipal de Barrancos. A consulta do Arquivo Histórico da Câmara Municipal de Moura incidiu na troca de correspondência para dar resposta a questões concretas. A consulta no Arquivo Contemporâneo do Ministério das Finança teve por objectivo os registos de apreensão de mercadorias pelo Batalhão nº 2 da Guarda Fiscal, 3ª Companhia, Secção de Safara (1941-1951), desconhecendo-se os fluxos anteriores a este período por escassez de documentação (Rovisco, 2009:91). De qualquer forma foram úteis para o capítulo “Processos de dominação e estratégias de resistência” construído com bibliografia histórica cruzada com documentação de arquivos de várias procedências. No caso dos arquivos espanhóis do Ministerio Del Interior, Archivo General, Madrid, Archivo Histórico Nacional, Archivo Histórico Provincial de Huelva e Archivo Histórico Provincial de Cádiz os pedidos de documentação, pela sua especificidade, foram formulados via internet ou consultados online como o caso da Causa General, cuja