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Capítulo 3. A sociedade barranquenha: ricos, pobres e remediados

3.3. Naquela altura não havia reivindicações, miséria havia!

As crenças religiosas comuns, as relações de parentesco e de vizinhança, o “parentesco espiritual”, o “parentesco instrumental” e outras formas de patrocinato (Cutileiro, 2004:182), criaram uma rede de dependências que manteve ao longo do tempo a “harmonia social” na sociedade barranquenha.125 A maioria dos subordinados

125 Manuel Carlos Silva diz-nos que para além do pároco outros protagonistas do poder local tornam-se

importantes mediadores na relação triádica entre camponeses, patronos e Estado, sendo a principal função do patrono preencher o fosso existente entre o Estado e as comunidades locais. Como estratégia para reforçar o próprio poder redistribuem favores, empregos e demais recursos públicos. “Resistir e Adaptar-

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consentia e obedecia, não por assumirem as normas dos “donos da terra”, mas porque a existência de uma estrutura de controlo social, com recompensas e represálias, determinavam que era mais prudente consentir. Conjuntamente, os organismos corporativos do Estado como a Casa do Povo e o Grémio da Lavoura, tentavam complementar os interesses de grupos sociais antagónicos, impondo o consenso e resolvendo conflitos através do aparelho burocrático.

As casas do povo, organismos corporativos nas áreas rurais, agregavam trabalhadores rurais, seareiros, arrendatários e lavradores, passando em 1938 a compreender uma secção de representação profissional, uma espécie de sucedâneo sindical dos trabalhadores rurais, o que era de todo anómalo em organismos dominados por proprietários rurais (Moreira, 2004:438). A apresentação de listas às eleições da Casa do Povo representou uma das estratégias políticas do Partido Comunista Português (PCP) durante a ditadura, na defesa de melhores condições de trabalho para os trabalhadores rurais, ou de melhores serviços de assistência, apesar das dificuldades de mobilização de uma população analfabeta, dispersa e socialmente controlada (Pereira, 1983:133). Na Casa do Povo de Barrancos acedia-se clandestinamente ao jornal Avante! e a leituras subversivas, incentivadas por homens como Pepe Gomes, António Navarro e João do Sol algumas vezes referidos como simpatizantes do PCP. Por outro lado, o Administrador do Concelho recebia instruções do Governador Civil (provenientes do Ministério do Interior) para “utilizar de preferência sócios da Casa do Povo” nas obras municipais, “contribuindo assim para impulsionar e dar relevo à acção dos organismos corporativos.”126 Ao longo dos anos os trabalhadores rurais

associaram-se à Casa do Povo (actualizando as quotas em períodos de crise) na esperança de conseguirem trabalho, mas nem todos eram escolhidos, gerando

se. Constrangimentos e Estratégias camponesa no Noroeste de Portugal”, Cadernos do Noroeste, Vol.8 (2), 1995, p.147.

126 Arquivo Histórico Municipal de Barrancos, C/D, Correspondência Enviada ao Administrador do

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protestos e descontentamentos.127 Em uníssono, os proprietários rurais e as autoridades locais manipulavam os salários e o emprego nas obras públicas, para que estes trabalhos não impedissem o fluxo de mão-de-obra o mais abundante e barata possível na época das ceifas (Pereira, 1983:145).

Quando havia muita gente sem trabalho, o Presidente da Câmara, que era o António Vasquez Garcia, que era um homem que tinha mão em toda a parte em Portugal e Espanha, e então era essa estrada. (…) Nesse tempo da estrada ganhavam 10$00, e o pessoal por fora, aqueles que vinham buscar, ganhavam sete, oito escudos, ganhavam menos, mas aquilo era pouco tempo que estavam lá na estrada, porque logo faziam falta aí, e então paravam. (António Caeiro)

Viemos para aqui em quarenta e fui trabalhar para a Coitadinha com o meu pai, ganhando sete escudos à jorna, e em se acabando o trabalho íamos embora, e logo fomos a trabalhar na estrada. Na estrada trabalhávamos quinze dias, ao fim dos quinze dias davam-nos uma senha, que não havia dinheiro. E com essa senha tínhamos de ir à loja do senhor Manuel Mendes ou do Borralho, uma qualquer. E a minha mãe, ou a minha irmã Catarina, faziam aquele avio, mas se lhe fazia falta mais qualquer coisa que ele não tivesse, ele dava o dinheiro descontando no avio, e assim era a vida nossa naquele tempo. Logo nos fizemos homens e nos metemos ao contrabando, depois me meti na mina, e da mina fui para a França. (Adolfo)

Aqui não havia trabalho nenhum, a gente tinha dezanove anos, queria-me casar e não tinha nada. E então íamo-nos apontar ali à Casa do Povo, para irmos trabalhar. Uma vez me tocou ir a trabalhar pela Casa do Povo a uma serra, éramos sessenta e três, a uma serra para ali, para fazermos uma estrada em três meses, por altura daquele caso da morte do Humberto Delgado, que a polícia andava sempre por lá, quase que não

127 No arquivo de correspondência do Governo Civil de Beja, os pedidos de aprovação e apoio

financeiro para obras municipais são uma constante durante décadas, como a terraplanagem da estrada internacional de Barrancos à fronteira (iniciada em Janeiro de 1936), as obras da estrada Municipal de Barrancos à Amareleja (iniciado em 1938), a regularização e calcetamento das ruas da vila, (iniciados em 1938), ou a construção do caminho vicinal de Barrancos à Ribeira do Murtiga, pela Serra Colorada, na década de 1940. Estas iniciativas do poder local permanecem na memória colectiva como “as estradas da crise”.

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nos deixavam trabalhar. Depois houve aquela coisa da França para quem se quisesse apontar e eu me apontei e fui em sessenta e um. Em sessenta já tinham ido daqui de Barrancos uns doze ou treze, mas em sessenta e um fomos mais. (Manuel Cortegano)

O acréscimo da população agrícola entre 1930 e 1950, o sistema de exploração agrária, e a mecanização da agricultura foram algumas das causas do desemprego sazonal que apenas cessou com o inicio da corrente migratória dos anos sessenta. Neste contexto, a luta pelas oito horas de trabalho desencadeada em Maio de 1962 repercutiu-se numa greve que cobriu quase toda a região do Alentejo, à excepção dos concelhos de Portalegre, Mourão, Moura, Barrancos e Almodôvar, que segundo Álvaro Cunhal “representavam zonas tradicionalmente afastadas das lutas rurais” (Cunhal, cit. em Pereira, 1983:152).

Ao longo do processo histórico as classes subordinadas sempre se opuseram ao poder hegemónico das elites, fosse sob diversas formas de acções colectivas, ou por meio de actos isolados de resistência quotidiana, que demonstram igualmente a contestação e o descontentamento face à ordem social dominante. No caso dos trabalhadores rurais, a caça furtiva, os pequenos furtos de cereais, o roubo de lenha ou palha, as pastagens em propriedade alheia ou o contrabando, foram as estratégias mais utilizadas. Thompson (1975) refere como os pequenos proprietários rurais mantinham uma forte tradição relativamente à caça furtiva, alimentada por recordações que tomavam a forma de direitos e costumes como “donos” legítimos dos bosques (Thompson, cit. em Scott, 2003:266). Uma vez estabelecida uma prática, esta pode converter-se num hábito, e um hábito praticado regularmente era entendido como um direito legal. Também o roubo de madeira em meados do século XIX na Alemanha foi considerado por Karl Marx como uma forma de luta de classes, por representar uma estratégia de subsistência em períodos de desemprego, diminuição de salários e aumento do custo de vida (Marx, cit. em Scott, 2003:273).

Os ricos não queriam que fossem buscar lenha nas Russianas, mas os que punham eram os que tinham de feitores e dominavam isso. Punham-se na ponte e quando vinham já com a carguinha de lenha para venderem chegavam à ponte e a tiravam, ou então vinham já acompanhados com a guarda e faziam-lhes ir entregar a lenha, à Casa dos Pobres, onde é o Lar agora. (Maria Alice Torbisco)

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O sistema de dominação aniquilava qualquer possibilidade de uma oposição directa frente ao poder, resultante do conhecimento de que resistir abertamente seria de uma imprudência absurda, perante a severidade das represálias. Neste sistema, a classe dominante, ao concentrar os recursos económicos, culturais e simbólicos constituía-se em classe “para si”, enquanto os trabalhadores rurais pela carência de recursos e dependência económica encontrariam maiores dificuldades em tomar “consciência” dos seus interesses. A “classe para si” relaciona-se com a tomada de consciência dos indivíduos, ao reconhecerem a existência de outros na mesma posição social que a sua, configurando não apenas uma condição económica, mas cultural e social, destacada por E. P. Thompson (1963). Mas considerar os trabalhadores rurais e outros grupos subordinados como eticamente submissos pelos seus protestos respeitarem as normas da classe dominante, também seria um erro analítico grave. Neste sentido podemos introduzir o conceito de “falsa consciência”, porque a classe existe, embora mistificada, não se conhecendo a si mesma, nem os seus próprios e verdadeiros interesses. Além disso, as condições da classe “em si” e “para si” só podem ser adquiridas em função de contextos sociopolíticos concretos num dado processo histórico, como ocorria em Espanha durante a II República, e se veio a manifestar em Portugal com o 25 de Abril de 1974.

Neste contexto repressivo, as sucessivas informações sobre o desemprego rural e actividades políticas, sobretudo por parte das autoridades locais e regionais das regiões fronteiriças, revelam a necessidade de conter qualquer instabilidade social agravada pelo desenrolar das lutas dos trabalhadores rurais em Espanha. A nível regional essa inquietação surge largamente documentada em relatórios do Governador Civil, sobre a “actividade comunista” no Distrito de Beja, dos quais seleccionamos o seguinte excerto:

“A má situação económica do trabalhador rural, que passa muita fome nos meses de invernia e o mau ano agrícola, e o facto de neste momento já haver muita gente desempregada contribui grandemente para o desenvolvimento do comunismo ou melhor, do sentimento de revolta que se pressente.”128

A propaganda regional ao Estado Novo intensificava-se através de iniciativas doutrinárias junto das casas do povo, associações recreativas e desportivas, ensombradas pela vitória da Frente Popular em Espanha. Posteriormente, a guerra civil espanhola veio

128 IANTT. Ministério do Interior. Correspondência do Gabinete do Ministro. Mç. 479, Cx. 32, Pt - 3/1,

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contribuir para o agravamento da conjuntura económica em Barrancos, conforme relatório do Presidente da Câmara enviado ao Governador Civil de Beja, enunciando as causas da crise de trabalho que atingia uma média de 100 trabalhadores nos meses de Março, Abril, Agosto, Setembro e Dezembro de 1938.

“1º - A guerra no País vizinho, fez regressar ao concelho muitos naturais que em Espanha trabalhavam em minas, em explorações agrícolas, contrabando, etc. 2º - A paralisação da exploração mineira neste concelho. 3º - Os últimos anos péssimos, sob o ponto de vista agrícola, más condições de arrendamento de terras, aumentaram, consideravelmente, o número de trabalhadores rurais, visto terem passado a essa categoria muitos dos pequenos produtores.”129

As elites dominantes extraíam impostos materiais em forma de trabalho, além de extraírem impostos simbólicos em formas de respeito, conduta, atitudes e actos de humildade. Em termos concretos, os dois tipos de tributo são inseparáveis, na medida em que cada acto público de apropriação é figurativamente um rito de subordinação. O vínculo existente entre dominação e subordinação são inseparáveis do processo de exploração material, no mesmo sentido em que a resistência simbólica às ideias dominantes não se podem separar das lutas concretas para impedir o mitigar da exploração (Scott, 2003:263). Por um lado, a abertura de trabalhos municipais e obras públicos representou sempre uma estratégia oficial das autoridades locais para controlar o descontentamento gerado pelas permanentes crises de desemprego rural, mantendo uma massa de mão-de-obra disponível. Por outro, os trabalhadores rurais encontraram sempre na fronteira uma alternativa de sobrevivência, quer em migrações sazonais quer na actividade do contrabando. Apesar das crises, a mendicidade nunca foi uma prática referida em Barrancos, contrariamente ao conteúdo da carta dirigida ao Governador Civil de Beja:

“Poderá V. Ex.ª avaliar da preocupação constante em que este Município se encontra para fazer face a tão grande miséria, que nos dá diariamente o triste espectáculo de homens válidos para o trabalho pedirem de porta em porta como se fossem pobres aleijados.”130

129 Arquivo do Governo Civil de Beja. Concelho de Barrancos. Correspondência recebida 1935/36/37/38.

Relatório. Doc. nº 2, 18-2-938.

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A recolha de alimentos era geralmente efectuada pelas mulheres e crianças semanalmente, em casa dos proprietários rurais, como uma obrigação social dos ricos para mitigar a pobreza e aliviar a consciência cristã. Este fenómeno, gerador de dependência e submissão suscita múltiplas interpretações sobre a condição social dos mais desfavorecidos, alimentando o discurso hegemónico das antigas elites.

Em Barrancos nunca houve muita fome, e tudo o que lhe venham dizer que é verdade, não é verdade, depois também houve muita influência do Partido Comunista, porque em Barrancos as pessoas não vinham pedir, as pessoas diziam assim:”- Eu venho cá buscar um pedaço de granito, porque tenho de fazer um caldo para o meu marido!” Ou: “- Eu preciso de um pedaço de presunto!” Está a perceber como é que era, a pessoa não vinha pedir. E havia as outras, já mais velhitas, que ao sábado vinham buscar, e a gente já sabia, eu ou a minha irmã já sabíamos o que havíamos de dar, já sabíamos que precisavam disto, daquilo e daqueloutro. Chegava o Natal, as famílias, a minha mãe juntava aqui as pessoas que podiam fazer e faziam-se fatos e calças para dar aos miúdos no Natal, por isso em Barrancos não houve essa fome que as pessoas dizem. (Maria Teresa Garcia)

Morei vinte e dois anos ali na Rua Felipe de Figueiredo, onde tínhamos a padaria, e de ali casei, e davam as traseiras do nosso quintal para as traseiras da Dona Dorinhas que morava ali ao pé de nós, e aos sábados, tinham um feitor, o José Fretes. Davam-lhe uns pães para partir em pedaços e enchiam umas cestas grandes, e os miúdos que tinham fome iam ali aos sábados. Ui! Tanta gente! E ele cortava o pão e repartia como queria, dizendo: “ - Tu não precisas muito. - E tu tens pai!”E um dia um miúdo respondeu-lhe:” - E como o mê pai?”. (Maria Alice Torbisco)

A pobreza e a fome no mundo rural exigiram a intervenção do Estado, criando as comissões da Campanha de Auxílio aos Pobres de Inverno pelo Decreto 26.152 de 24 de Dezembro de 1935, organizadas pelo Governador Civil, pelo Comandante da Polícia, por um representante da Diocese e por um representante da comissão distrital da União Nacional.131 As suas principais atribuições visavam socorrer as populações mais

131 A Comissão Municipal de Assistência em 1945 tinha por presidente José Blanco Fialho, por substituto

Felipe Manuel Pereira de Figueiredo e por representante da Câmara Municipal António Vasquez Garcia. AHMB, Correspondência enviada ao Governador Civil (1938-1962), Ref. 415, de 13/12/1945.

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desfavorecidas na área dos distritos, e a promoção de comissões similares ao nível concelhio para recenseamento dos mais necessitados.

“Em verdade, os ricos protegem muito os pobres, até existindo na vila uma União de Cari da de, dirigida por senhoras, e que ministra cada dia a quem precisa de amparo d u a s r e f e i ç õ e s q u e n t e s : de modo que ninguém, em rigor, deve chamar-se absolutamente necessitado.” (Vasconcelos, 1955:10)

A Associação Beneficente “União de Caridade das Senhoras de Barrancos” (actualmente propriedade do Lar de Nossa Senhora da Conceição) foi uma instituição de caridade fundada em 1924 por iniciativa do Bispo de Beja D. José do Patrocínio Dias, e tinha a sua sede na actual Rua 1º de Dezembro, onde funciona o Lar.132 Segundo o art. 2 dos seus estatutos tinha por objectivo angariar recursos pecuniários, roupas e géneros alimentícios, “para serem distribuídos pelos pobres, e ainda praticar quaisquer outras obras de Caridade.” A associação declarava-se “completamente estranha a assuntos políticos”, e na sua direcção só poderiam entrar senhoras “que professem e pratiquem a religião católica, podendo, no entanto, fazer parte da associação, como sócios benfeitores, as pessoas de quaisquer confissões religiosa, ou mesmo atêas.”133 Os

serviços prestados por esta associação consistiam na distribuição diária de sopa, acrescida do fornecimento mensal de um pedaço de toucinho e de um pão, por cada família necessitada.

A minha mãe esteve sete anos ali, onde é agora o Lar. Primeiro esteve lá em baixo cinco anos, quando eu andava na escola, que foi durante esse tempo da guerra, e depois esteve aqui sete anos. Essa sopa dos pobres era para os mais pobres, uns comiam lá numas mesas assim compridas, outros não, levavam a panelinha onde a

132 A Comissão fundadora era presidida por Maria das Dores Blanco Fialho Garcia e constituída por

Cesária Marquês Vasquez de Figueiredo, Dolores Ortega Pérez, Maria de los Remédios Ortega Pérez Macias, Domingas Ramos Pinto, Maria Bella Pulido Vasquez de Ortega, Maria Piedras Albas Ortega Pérez, Luísa Félix e Silva Fialho, Maria das Dores Garcia Fialho, Teresa Vasquez de Garcia, Maria das Dores Garcia Ramírez de Vasquez Garcia, Maria das Dores Vasquez Pérez Blanco, Maria José Lopes Bossa, Maria Pulido Vasquez, Isabel Gomes Pinto, Maria Bella Pulido y Pulido, Maria da Conceição Pulido Vasquez, Teodora Augusta Grave, Antónia Pelicano Fernandes, Filomena Pelicano Fernandes, Libania Chamorro Lema Marques, Ema Lopes Gomes Escoval e Maria das Dores Garcia Barroso. Estatutos da União de Caridade das Senhoras de Barrancos, gentilmente cedidos por Jacinto Saramago, membro da actual direcção do Lar de Nossa senhora da Conceição.

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minha mãe deitava o comer, e eles a levavam para casa e o café era mesma coisa.

(Antónia)

Antes os senhores ricos ajudavam muito. Essas senhoras eram muito católicas e

ajudavam muito, Dona Dorinhas (Maria das Dores Blanco Fialho), Dona Belita (Maria

Bella Pulido) ajudavam muito os pobres, davam roupinha às crianças. (…) A vida foi muito difícil aqui em Barrancos, passou-se um bocadinho, eu nunca passei, graças a Deus. (Maria Bárbara Rato)

Os pobres andavam descalcinhos no Inverno, era uma miséria, e então lhe davam umas roupinhas. Era a Dona Belita, da família dos Pulidos, era uma senhora solteira, mas era boa, na casa dela criou várias crianças (…) e tudo entrava na casa dela que a porta estava aberta, e tinha duas raparigas empregadas que punham tudo no meio, mas ela o que queria era que entrassem, não queria que houvesse necessidades, do que ela tivesse. Ela vestia muito simples. Era católica mas fazia, dava demonstração de que era verdade. (Maria Alice Torbisco)

Era a Sopa, como se chamava. (…) Essa senhora era a Dona Dorinhas, irmã do senhor Fialho, eram mais, mas com grande diferença. (…) Havia ricos com coração e havia ricos só com o porta-moedas, e isso era uma grande diferença. Ela era uma senhora

que não olhava a gastar. (Maria dos Remédios Ramos)

Mas nem todos partilham do mesmo sentimento de gratidão que consolida o discurso hegemónico sobre a generosidade das senhoras ricas, como recorda Maria dos Remédios Guerreiro:

A Dona Dorinhas para alguma gente seria muito boa, mas uma das pessoas que passou miséria em Barrancos foi a minha irmã. As minhas sobrinhas chegavam aí a uma rua adiante e ver cascas de batata e comerem cascas de batatas por não terem que comer. Foi das pessoas que entrou em miséria aqui em Barrancos. (…) E depois logo as minhas sobrinhas iam a pedir e ela deva um bocado de pão se calhava, se não calhava não. A mulher do senhor José Augusto a senhora Cristina é que as mandava ir lá buscar o almocinho. (…) Na União deram à minha irmã um pão por mês, e meio quilo de toucinho, e se matava trabalhando. O meu cunhado se afogou dia 21 de Agosto,

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porque se meteu na ribeira a pescar, e no dia 30 devia receber o pão e o toucinho, e tiveram o descaramento de não lhe dar, isto é que é a verdade. Por isso, digo eu muitas vezes, não tenho nada que agradecer-lhe.

No mesmo sentido, Maria Alice Torbisco identifica as contradições entre as práticas privadas de algumas senhoras, em relação aos valores morais e religiosos que publicamente professavam:

A sogra do Doutor Pelicano Fernandes, todos os dias ia à missa e passava na nossa rua e naquele sábado minha mãe estava a limpar a porta por baixo, e eu ainda era pequinalha. Então havia uns vales e uma caderneta onde minha mãe assentava o pão mole que levantavam para eles todos os dias, e os vinte pães juntos que levantavam um vez por semana para os criados (assim comiam menos). Porque eles além das empregadas domésticas tinham os criados que iam a buscar as águas para trazer para casa, essas coisas, certos mandados e ao pão. E chegou naquele manhã e pediu à minha mãe para que fizesse o pão um bocadinho mais negro e lhe desse um pãozinho mais, porque o pão era para os criados. E vinha da missa! E a minha mãe levantou-se e disse-lhe que o pão que fazia era igual para os senhores e para os criados, e quantas vezes nos repetia esta história.