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Capítulo 3. A sociedade barranquenha: ricos, pobres e remediados

3.1. Eram donos da terra, do povo e de tudo

Ao longo do século XX o concelho de Barrancos dependeu economicamente da agricultura e da pecuária, complementada por uma actividade mineira descontinuada e pelo comércio de exportação.84 A exploração agrícola assentou essencialmente na produção intensiva do trigo, mas também do olival, e a pecuária incidiu na criação de gado bovino, suíno, caprino e lanígero. Até à década de 1960 a produção do trigo beneficiou de um sistema de crédito e de subsídios, assim como de uma política de comercialização e de preços controlada pelo Estado, privilegiando-a relativamente a outras produções como a pecuária (Baptista, 1980:347). O sistema latifundiário de exploração agrícola limitava o mercado de trabalho a pouco mais de seis meses, transformando o desemprego num flagelo social que acentuou as assimetrias das sociedades rurais do Sul (cf. Pereira, 1983; Godinho, 2001; Cutileiro, 2004; Freire et al.,

84 Até ao inicio da década de 1930 existiu uma diversificada actividade mineira em Minancos e Aparis

(pertencentes a Arthur Clive Harris) e na Malhada dos Barriches e Lyrias (pertencente a José Mira e aos herdeiros de Manuel Ramos Alcario, de José Pão-Duro e de António Serralho Rubio). Na década de 1950 as minas de Aparis são reactivadas, constituindo um importante complexo industrial, que encerrou definitivamente em 1975. O comércio de exportação foi particularmente importante para a economia local durante e após a guerra civil de Espanha, aliado ao contrabando, como veremos no Cap.6 deste trabalho.

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2004; Fonseca, 2006; Fernandes, 2006; Fonseca, 2007; Carmo, 2007). Os responsáveis municipais (na sua maioria proprietários) tentavam menorizar as crises de desemprego, recorrendo durante décadas a pedidos para a comparticipação do Estado em obras públicas, “as estradas da crise” (como hoje são designadas), que geriam em função dos seus interesses agrícolas como recorda António Caeiro:

Quando havia muita crise de trabalho lá iam uma semana ou duas a trabalhar nessa estrada, logo parava, que mandavam os lavradores, quando lhes faziam falta a eles mais pessoal na ceifa, na sementeira ou no corte de poda de azinheira, eles paravam a estrada e então o pessoal tinha de ir trabalhar para ali e assim é que era a vida nesse tempo.

Durante o Estado Novo os proprietários rurais conseguiram contrariar as tentativas de reforma e de desenvolvimento da agricultura, devido à sua relação com o aparelho de Estado, contribuindo para a manutenção dos privilégios que detinham, bem como para a perpetuação do status quo (Fernandes, 2006:61). Neste contexto fazer-se seareiro foi um recurso empreendido por alguns trabalhadores rurais, para superarem a precariedade económica, criando a sua própria autonomia face aos “donos da terra”, apesar de obrigados a aceitarem as condições que estes impunham. Com as parcerias os proprietários rurais maximizaram o rendimento das suas terras, por um lado explorando os solos mais pobres, e por outro pela quota de parceria cobrada ser superior ao rendimento que obteriam se as cultivassem com trabalho assalariado (Baptista, 1980:357). O seareiro empregava toda a sua força de trabalho, assim como o trabalho não remunerado do seu grupo familiar, estando dependente de um bom, ou mau ano agrícola, como recordou Domingos Caiadas:

Eu me lembro, era rapaz novo, foi no 45, um ano de seca má, má, o meu pai tinha uma seara grande, grande e não se colheu nada, nada. Depois o 46 foi um ano frutífero em Portugal, um ano louco mesmo de seara, depende dos anos. Era melhor, mais rentável, mas a gente trabalhava mais do que a pessoa que tivesse à jorna, porque não tinha horário, está a compreender? Mas não estava debaixo dos grandes latifúndios, esta é que era a vantagem, e sempre se vivia melhor de quem estivesse aí só com aquela migalhita, mal pagos.

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O cultivo da terra assente no trabalho assalariado estabeleceu uma relação capitalista entre o proprietário rural, detentor dos meios de produção, e o trabalhador assalariado que vendia a sua força de trabalho. As relações de produção estabeleciam o carácter das relações sociais entre proprietários e trabalhadores nas atitudes e crenças que desenham as classes sociais (Martínez Alier, 1968:333). Por outro lado, o corporativismo (ideologia anti-individualista e antiliberal, anti-socialista e anti-sindicalista, instrumento de conciliação dos conflitos económico-sociais) representou um dos elementos estruturantes do Estado Novo (Moreira, 2004:434), pretendendo “harmonizar e atenuar” as relações de classe, ao mesmo tempo que se mantinham as divisões sociais e o hiato entre ricos e pobres (Fernandes, 2005:65). Neste sistema verificavam-se algumas formas de diferenciação entre os trabalhadores rurais permanentes, os concertados (contratados ao ano), e os trabalhadores temporários contratados à jorna, ameaçados pela precariedade do trabalho rural (Baptista, 1980:358). O jornaleiro detinha como valor a honestidade (Narotzky & Smith, 2006:108), salvaguardando o seu prestígio de bom trabalhador para garantir melhores possibilidades de emprego, acalentando a esperança de se tornar um concertado nas herdades (Cutileiro, 2004:62).

Havia um núcleo sempre estável, pelo menos na casa do meu pai, e depois aumentava- se mais ou menos pessoal segundo as datas, as ceifas, as debulhas, os cortes, as sementeiras, havia alturas em que se metia pessoal, era chamado “meter pessoal”, mas havia um núcleo da herdade mesmo. Normalmente já vinha de velhos, estava o pai, já estava o filho e às vezes já estava um neto a trabalhar em conjunto, e esses mantinham- se no trabalho diário, e o encarregado, nas maiores fases vinha a Barrancos contratar pessoal ao mês, ou por quinzena, ou à semana, conforme as necessidades do trabalho, além do pessoal da herdade. O núcleo eram os criados da casa, o meu pai tinha dez ou doze sempre, e contratava mais vinte ou trinta porque também tinha mais herdades, outros tinham um ou dois, e eram capazes de contratar três ou quatro mais. O encarregado servia de mediador e de contratador de pessoal, acordava com o patrão o número de pessoal a contratar e normalmente esses homens já vinham de uns anos para os outros, mas ia sempre procurar os mesmos, só no caso de esses não poderem, ou já terem sido contratados contratava outros, mas normalmente eram sempre os mesmos. (Frederico Garcia)

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Em Barrancos existiram grandes propriedades, como a herdade das Russianas (Russianas de Cima, Russianas do Meio e Russianas de Baixo) com 3.123 hectares, e a herdade da Coitadinha com 994 hectares, pertencentes à Casa Fialho, uma empresa agrícola que foi durante décadas a maior empregadora do concelho, conseguindo assegurar uma centena de postos de trabalho permanentes.85 As restantes herdades como Aparis (904 hectares), Butefa (886 hectares), Taipas (798 hectares), Cardador (723 hectares), Taberneira (667 hectares), Mercês (664 hectares), entre outras, deviam a sua dimensão à concentração fundiária de parcelas adquiridas a pequenos proprietários, como o monte do Clemente (nas Mercês), que Clemente Marques recorda ter sido vendido pelo avô por um copo de vinho e um par de botas. Todas as herdades mantinham um número fixo de trabalhadores contratados ao ano e durante décadas, em função das exigências da exploração e das qualidades profissionais dos trabalhadores, mas também das lealdades para com os patrões. A inexistência de alternativas de trabalho e a fraca mobilidade social no mundo rural contribuiu para que os contratos passassem de pais para filhos, reforçando o sistema de subordinação e de dependência face aos “donos da terra”, como recordam alguns trabalhadores concertados:

Nós fomos todos criados nas Russianas. (…) O meu pai tratava os bois que iam a lavrar, e nós ajudávamos, toda a vida foi assim e mortos com fome. Vivíamos numa malhada que hoje a têm melhor os porcos que tínhamos nós. Eles pagavam pouco e nós tínhamos de estar aguentando aquilo, vivemos em malhadas, e quando metíamos as vacas na cabana estavam os bois e estávamos nós também, dormindo ali no chão, e o mijo dos bois correndo debaixo da enxerga da palha, o que havia era isso, uma miséria (…) Davam-lhe meia dúzia de alqueires de trigo e a gente moía a farinha no moinho da ribeira, e a amassava a minha mãe, metendo a lenha no forno e ali fazíamos o pão e o comíamos. (Carlos Caçador)86

85 A Casa Agrícola designava a grande exploração capitalista, que articulava a economia da grande

propriedade com a indústria agrícola, como a debulha de cereais, a moagem, os lagares de azeite, os fornos de pão, ou o fabrico manual de queijos (Guimarães, 2006:203).

86 Carlos Gonçalves Caçador (Barrancos 1926) viveu na herdade das Russianas, onde seu pai trabalhava

como boieiro, até ir cumprir o serviço militar. Desde pequeno que começou a trabalhar como ajuda de seu pai e posteriormente com outros ganadeiros da herdade, cuidando de vacas e porcos. O primeiro salário foi de 5$00 diários cuidando de gado. A vida na herdade não lhe permitiu frequentar a escola, assim como aos seus seis irmãos, e apenas na tropa concluiu a 2ª classe na Escola de Artilharia de Vendas Novas. Quando regressou da tropa permaneceu na herdade até se casar com Ana Coelho Agudo em 1950, de quem tem dois filhos. Como nos contou: Corri uns poucos de patrões, estive com os Fialhos trabalhando e tudo isso, logo passei para o André Garcia, estive com o Cláudio, logo estive com o Dr. Manuel Agostinho que já morreu e com o Jorge que também já morreu, o irmão do Fialho, tenho corrido.

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O meu pai era ganadeiro, eram 300 cabras que tinha de guardar e recebia 5 alqueires de trigo, 5 litros de grão, por mês, 40 cabras que podia ter dele, e o rendimento daquela coisa das cabras é que era para ele. As do patrão eram do patrão e as deles eram dele. Primeiro trabalhou em Fornilhos e depois passou à Butefa e logo foi às Mercês, era tudo do António Vasquez. Mercês, Cardador, a Butefa tudo isso era do Sr. António Vasquez. Quando eu já tinha os meus 15 ou 16 anos ele vendeu o gado, as cabras, e o meu pai passou para o Fialho, para as Russianas, para o mesmo trabalho, guardar cabras. Nessa altura já o meu irmão e a minha irmã eram grandes, e eu fui trabalhar, fui arrancar moita, fui lavrar, fui já trabalhar para as Russianas. Isso ainda foi assim até sessenta e um, em sessenta e um houve uma emigração para França e eu fui a França. (Manuel Cortegano)

Na Coitadinha o contrato era: ganhava 5 alqueires de trigo, 5 litros de azeite, o meu pai ganhava 6$00, mas eu quando fui parece que já era 10$00 por mês. Depois tinha a manutenção de 6 bichos, que tinha a gente que comprar, e passado seis meses tinha que vender e ficava com outros pequeninos, veja lá o pago, que pago esse, e dizem que hoje a vida está má. (…) Eu tinha pouca sorte, logo num ano que estava melhor se não morriam dois ou três, morriam três ou quatro, ou chegava com um dinheirinho da venda dos bichos e tinha de dar à loja. Tinha comido o grão podre, o feijão picado, o arroz bolorento, a cola de bacalhau, porque a gente comprava fiado tínhamos de aceitar aquilo que nos aviavam, não podíamos dizer: “- Isto não quero!”, porque não tínhamos dinheiro para o comprar. (José Gaspar)87

Actualmente está reformado e ajuda um dos filhos numa pequena exploração de gado. Excerto da entrevista realizada em sua casa, em Barrancos, a 26/1/2007.

87 José Gaspar Guerreiro (Barrancos, 1929) veio nascer em casa da avó materna, mas passadas algumas

semanas regressou com a mãe a Espanha, onde o pai cuidava de ovelhas num monte entre Aroche e Rosal de la Frontera, e aí permaneceu até ao inicio da guerra. No regresso a Barrancos seu pai trabalhou como porqueiro na herdade da Coitadinha, e no contrabando. José nunca foi à escola e teve por padrinhos de baptismo os donos da herdade da Coitadinha. Aí seguiu o mesmo percurso profissional do seu pai, cuidando do gado e trabalhando no contrabando por conta própria. Em 1953 casou com Isabel Soares Branquinho e tiveram três filhos. Em 1960 emigrou para França. E como nos contou: Ganhei uma casa mas não fui a França buscá-la, eu ainda tive uma herança de onze contos da casa que era do meu pai e depois foi do campo como consertado. Eu tenho guardado de tudo um pouco, e tenho feito de tudo um pouco. Guardei porcos, tive dois anos como cabreiro e com gado vacum é que estive sempre, era o que eu mais gostava. Agora passo os meus dias, quando não me dói nada muito bem (gargalhada). Levanto- me de manhã e se preciso de ir ao pão, vou primeiro ao pão, os avios da casa é primeiro, e depois vou até à Sociedade um bocado e depois venho para casa e ai no quintal ando a entreter-me um bocado, tenho aí fava, tenho ervilha, é poucochinho de tudo, mas tenho para me entreter.” Excerto da entrevista realizada na sua casa em Barrancos, a 18/12/2009.

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A concentração da propriedade num reduzido número de famílias condicionava as alternativas de trabalho, os patrões eram daqui do povo, e eram todos amigos e parte

deles família, o que significava que qualquer atitude de contestação por parte dos trabalhadores representava o desemprego. Os trabalhadores à jorna representavam o grupo mais carenciado da hierarquia social, por dependerem exclusivamente dos trabalhos sazonais, oferecendo-se num mercado de mão-de-obra disponível ao qual proprietários e arrendatários recorriam em função das suas necessidades. Na obra A

Colonização do Alentejo (1884), J. A. C. de Vasconcellos apresenta-nos uma análise histórica sobre a problemática do latifúndio, enquanto causa do empobrecimento e subdesenvolvimento da agricultura no Alentejo, defendendo a repartição da terra e a diversificação das culturas, salientando as relações sociais entre lavradores e trabalhadores rurais nos seguintes termos:

“Olham para os seus criados com pouca mais consideração do que para cães, e sem se importarem com qualidades que não respeitem ao trabalho; conservando só em todo o ano aqueles que restritamente lhes são indispensáveis, e servindo-se com jornaleiros, que despedem logo que os podem dispensar, muitas vezes nas ocasiões mais críticas para agenciar a vida” (Vasconcellos, 1884:17-18).

O poder dos proprietários rurais na estrutura social reflectia a capacidade de retirarem dividendos dos benefícios que o sistema latifundiário oferecia, assim como a habilidade em estabelecerem dependências e alianças com seareiros, rendeiros ou trabalhadores rurais permanentes, na defesa dos seus interesses. O desemprego rural resultava do sistema de exploração agrícola, mas era geralmente justificado por condições climatéricas desfavoráveis às colheitas.88 Em épocas de escassez de trabalho as autoridades municipais recorriam à intervenção do Estado, ou procediam a iniciativas locais para minorar a crise de desemprego (como trabalhos temporários no município), receando conflitos sociais.89

88 Em carta dirigida ao Governador Civil de Beja, informando sobre o desemprego rural no município, o

Vice-Presidente da Câmara de Barrancos, António Rodrigues Reganha, escrevia: “a lavoura recebe de má vontade a distribuição de homens, alegando o motivo de mau ano agrícola, mas deve também ter influência o facto de estar desabituada destas distribuições, visto haver já dois ou três anos que não se fazem, tendo as crises sido debeladas só com trabalhos públicos”. Arquivo Histórico Municipal de Barrancos (AHMB), Correspondência enviada ao Governador Civil (1938-1952), Oficio nº 312, de 24/9/1949.

89 Os pedidos de comparticipação do Estado são uma constante, mas esta carta (do Presidente da Câmara

de Barrancos ao Governador Civil) regista o maior número de trabalhadores rurais desempregados (130), afirmando: “esta situação é insustentável podendo levar aqueles desempregados à alteração da ordem,

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Na década de 1960 assistiu-se a um acentuado êxodo rural (imigração para a cidade e emigração para a Europa) que diminuiu o espectro do desemprego, contribuindo para a efectivação do contrato de trabalho de oito horas, mas até ao 25 de Abril de 1974 o sistema latifundiário não sofreu qualquer transformação significativa.

Era o sistema que era assim, e no meio desse sistema, que tinha de ser assim, só favorecia esses, não havia mais nada, não havia salário mínimo, nem nada, eram os que tinham o poder. (Clemente Marques)90

Maiores contribuintes de Barrancos do ano de 1936

Contribuição Nome Colecta

Predial rústica José Blanco Fialho 9.959$00 Idem António Blanco Fialho 7.783$00 “ José Garcia Pérez 5.499$00 “ José Jerónimo Vasquez 3.498$00 “ António Garcia Pérez 2.632$00 Industrial – grupo C António Vasquez Garcia 3.150$00 Idem Marcelino Rodrigues Alcario 2.775$00 “ Domingos Elias Garcia 2.115$00 “ António Fernandes Pelicano 1.710$00 “ António Santinho Dourado 1.545$00

Fonte: Arquivo Histórico Municipal de Barrancos, Contribuições e Impostos 1937, L/C, Pasta 2

A riqueza das antigas famílias de proprietários perpetua-se simbolicamente no espaço e no tempo, através do património material no centro das vilas e nos montes, como símbolos de distinção social no mundo rural.91 As casas da vila insinuam-se pela

venho rogar a V. Ex.ª se digne a interceder junto de Sua Excelência o Senhor Ministro das Obras Públicas…” AHMB, Correspondência enviada ao Governador Civil (1938-1952), Oficio nº 74-6-1948.

90 Clemente Pires Marques (Barrancos, 1927) nasceu numa família de trabalhadores rurais, arrendatários e

seareiros, e tinha uma irmã mais velha. Realizou o exame da 4ª classe em Barrancos. Não realizou os votos religiosos com os seus colegas por decisão própria. Começou a trabalhar com o pai, num pequeno comércio de correeiro, e após a morte do pai estabeleceu-se por conta própria no comércio a retalho expandindo o negócio para Moura. Casou com Helena Tereno (filha de um alfaiate) em 1957, e tiveram quatro filhos. Na década de 1970 adquiriu o imóvel, onde vive actualmente no primeiro piso, mantendo no piso térreo o estabelecimento de comércio. Aquando do 25 de Abril integrou a Comissão Administrativa de Barrancos, gestora do município até às primeiras eleições autárquicas. A vida política nunca o seduziu, e o tempo na comissão foi sobretudo uma experiência legitimadora do seu prestígio numa nova ordem social. Excerto da entrevista realizada na sua casa, em Barrancos, a 23/1/2008.

91 As elites rurais, classificadas como “burguesia agrária” ou “oligarquia rural”, formaram-se no processo

histórico do liberalismo português, e mobilizaram-se (desde finais do século XIX) em torno do proteccionismo cerealífero, bloqueando projectos de reorganização agrária, e integrando as forças conservadoras católicas e anti-liberais que apoiaram o salazarismo (Guimarães, 2006:14).

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sumptuosidade, e as dos montes “davam a impressão de grande desafogo, quase de luxo” (Silbert, cit. em Fernandes, 2006:29). Também Vasconcelos (1955), aquando da sua visita à herdade da Coitadinha, utiliza a expressão de “sumptuoso monte” (1955:XIV), actualmente reconvertido em complexo turístico como grande parte dos montes alentejanos. Em Barrancos, as casas das famílias Pulido, Vasquez e Fialho destacam-se no centro da vila pela grandiosidade da sua construção, diferenciando-se das habitações circundantes, propriedade de abastados lavradores e comerciantes que constituíam a elite local. Mas todas contrastam com as habitações de piso térreo (algumas com apenas duas divisões) dos casarios do Cerro, das Fontainhas e de S. Bento, onde viviam e vivem as famílias dos trabalhadores rurais, apesar da maioria das casas terem beneficiado de obras de remodelação.

A casa da família Vasquez, “espaçosa e fresca” (Vasconcelos, 1955:XII) como refere Leite de Vasconcelos92, conserva as amplas divisões de tectos abobadados, assemelhando-se a um “santuário do passado familiar” (Lima, 2003:137), preservando as peças de mobiliário, os livros, os quadros e as fotografias de família que relatam um passado memorável. Com a fachada principal virada para o Largo da Liberdade, com contrafortes laterais para a rua da Boavista e as traseiras para a rua Jerónimo Vasquez, em homenagem a um dos seus proprietários, preserva o traçado das residências andaluzas, com gradeados de ferro nas janelas do piso térreo, comuns a algumas habitações da burguesia local. Cármen Figueiredo mantém inalterável o piso térreo onde vive, e o seu primo Frederico Garcia remodelou o primeiro andar aquando do seu casamento, partilhando duas áreas independentes do mesmo edifício dividido por herança.

92 Em 1938 o professor José Leite de Vasconcelos realizou uma aspiração de longa data, visitar a vila de

Barrancos com o objectivo de prosseguir os seus estudos filológicos. A concretização dessa visita, e a sua permanência na vila, deveu-se à amizade com o então pároco de Barrancos, cónego Alfredo Augusto de Almeida, amigo de José Jerónimo Vázquez, abastado proprietário rural que acolheu o professor em sua casa, entre 20 de Junho e 15 de Julho de 1938 (Vasconcelos, 1955:XII). Durante a primeira visita de estudo em 1938 o professor reuniu um conjunto de materiais e em Agosto de 1939 regressou para redigir o trabalho, mas foi bruscamente impossibilitado por uma bronquite. Em Barrancos foi assistido pelo Delegado de Saúde local, Dr. Felipe de Figueiredo, casado com Cesária Vasquez Marquês (avós de Cármen Figueiredo), aos quais o professor Leite de Vasconcelos agradece na sua obra os cuidados prestados no acompanhamento da sua doença e na colaboração inestimável ao seu trabalho de investigação, nomeadamente na elaboração de um esboço do vocabulário barranquenho. Agradece igualmente ao Dr. António Marquês de Figueiredo, filho do casal, a revisão gramatical do vocabulário barranquenho impresso (Vasconcelos, 1955:XV). Como recorda Cármen Figueiredo: A minha avó (Cesária) não tinha estudos mas era muito inteligente e tinha um dom que apanhava os termos e imitava as pessoas lindamente, e então captava as expressões. O dicionário que existe, não digo todo, mas foi a