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Capítulo 3. A sociedade barranquenha: ricos, pobres e remediados

3.2. E logo os do campo chamavam çivinas aos que estavam no povo

Os principais recursos do concelho de Barrancos provinham do campo, onde centenas de famílias de trabalhadores rurais viviam a maior parte do ano afastadas da vida social da vila.116 Os habitantes da vila apreenderam o seu espaço como um espaço

115 AHMB. Correspondência enviada ao Governador Civil (1938-1952). Carta de 19 de Novembro de

1945.

116 Em 1939 o concelho de Barrancos tinha 3.300 habitantes (1.657 varões e 1.643 fêmeas), e no ano de

1938 o número de nascimentos fora de 67 e o número de óbitos de 42. Os habitantes do concelho distribuíam-se pelas seguintes profissões: proprietários 113, agricultores 323, industriais 64, comerciantes 48, funcionários 84, empregados 175, diversos 2.493. Na vila, para além da Câmara Municipal e da Junta de Freguesia, funcionava a Secção de Finanças e a Tesouraria da Fazenda Pública, uma Estação Telégrafo-postal, o Posto de Despacho da Alfândega, o Posto da Guarda Fiscal, o Posto da Guarda Nacional Republicana e da Polícia de Vigilância e Defesa do Estado. A Casa do Povo geria fundos de Assistência e Previdência, e existia uma Delegação da Federação Nacional dos Produtores de Trigo. A Escola Primária tinha quatro salas de aulas, para o sexo masculino e feminino, com uma média de 300

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de cultura, um lugar civilizado, contrariamente ao campo, espaço da natureza, incivilizado, um lugar onde os seus conterrâneos eram criados como bichinhos. Como refere Margarida Fernandes (2006), relativamente aos habitantes de Baleizão, tudo o que estava fora da zona construída era campo, e estava em oposição ao espaço da aldeia, ou da vila, tal como Corbin & Corbin (1987) identificaram no seu trabalho na Andaluzia (Corbin & Corbin cit. em Fernandes, 2006:24). Esta realidade justifica a diferenciação construída entre as gentes da vila e do campo, como um fenómeno transversal às sociedades rurais, alicerçada em recursos económicos, culturais e simbólicos, configuradores de estilos de vida, de atitudes e crenças que legitimam diferentes visões do mundo.

Grupo de amigas trabalhadoras rurais (1940) Grupo de amigos trabalhadores rurais (1940)117

Em Barrancos os trabalhadores que viviam no campo forjaram a sua identidade cultural por oposição aos trabalhadores da vila, identificando-lhes posturas de

alunos inscritos. A nível de transportes existiam duas camionetas de carga e duas de passageiros, com carreiras diárias entre Barrancos e Moura, para além dos veículos particulares de quatro rodas e de tracção animal. Em 1939 construíam-se em média vinte prédios urbanos para habitação, e as obras mais importantes foram: um bairro económico; a canalização de esgotos e o abastecimento de água potável no centro da vila, e a construção de uma ponte sobre o rio Ardila na Estrada Municipal de Barrancos à Amareleja. A vila tinha distribuição de energia eléctrica para iluminação pública e para algumas casas particulares. A igreja localizava-se no centro, e o Cemitério a nascente, no ponto mais alto.

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superioridade e uma certa adequação às práticas sociais das elites, como querendo-se

fazer gente, caracterizando-os de çivinas.118

Antigamente havia os çivinas, chamavam os çivinas que era o pessoal aqui do povo, os outros eram os trabalhadores do campo. Havia uma política entre uns e outros. (José Ângelo)119

Os çivinas eram os carpinteiros, sapateiros, que havia muito deles nesse tempo, os ferreiros, todos esses eram çivinas, porque só estavam no povo, e o outro pessoal todo trabalhava no campo. Os do campo eram mais abrutalhados e logo iam aos bailes e as raparigas gostavam mais dos çivinas, a maior parte delas, e havia garreias a maioria das vezes por isso. Os çivinas era um grupo mais civilizado, às vezes menos, mas davam-se por mais civilizados do que o pessoal do campo. Havia parte deles do campo que só vinham de meses a meses ao povo. (António Caeiro)

E logo os do campo chamavam çivinas aos que estavam no povo, que eram do comércio e estes ofícios assim aqui do povo. E elas (as raparigas do campo) faziam bailes em

casas particulares e eles iam lá, porque havia moças jeitosas, e elas diziam:”Não os deixem entrar que são os çivinas!” Às vezes havia tareias se algum se enfiava lá, os noivos e namorados não queriam. (Maria Alice Torbisco)120

As disputas entre os do campo e os çivinas remetem, num primeiro momento, para uma luta pela conquista das mulheres, considerando o espaço social onde

118 A palavra çivina, proferida em dialecto barranquenho, foi adoptada à escrita com ç, seguindo a lógica

do vocabulário da Filologia Barranquenha recolhido pelo Prof. Leite de Vasconcelos, no qual não existem palavras começadas por s.

119 José Lopes Ângelo (Barrancos, 1920 – Beja, 2008) era o mais novo de sete irmãos. Quando nasceu o

seu pai era mineiro nas minas de Aparis, exploradas por ingleses e após o encerramento da mina foi trabalhador rural. Frequentou a Escola Primária de Barrancos e viveu sempre na vila. Herdou de seu pai a alcunha de “Baralha” (nome do cão da família Ortega). Excerto da entrevista realizada na sua casa, em Barrancos, a 13/6/2006)

120 Maria Alice Rubio Torbisco (Barrancos, 1937) era a mais nova de cinco irmãos. Seus pais eram

espanhóis e fixaram-se em Barrancos em 1927, dedicando-se à panificação. Realizou o exame da 4ª classe em Barrancos e fez a 1ª Comunhão e a Comunhão Solene. Viveu sempre na vila e trabalhou no grupo familiar. Em 1966 casou com Emílio Mendes Domingues, empregado do comércio, filho do secretário da Junta de Freguesia e proprietário do antigo Hotel Hespanhol (actual Casa de Hóspedes Emílio) e tiveram dois filhos. Actualmente Maria Alice é viúva e dirige a casa de hóspedes com a ajuda dos filhos. Excerto da entrevista realizada na sua casa, em Barrancos, a 28/9/2007.

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geralmente os conflitos eclodiam (bailes e locais de convívio). Mas também podem ser compreendidas como lutas entre grupos subordinados, pela construção de uma consciência social hegemónica. Os çivinas representavam um grupo de indivíduos com actividades profissionais que marcavam uma diferença de habitus (Bourdieu, 1994), alguns vivendo dependentes das actividades dos pais (como os filhos dos artesãos) que, independentemente das dificuldades económicas, não queriam trabalhar no campo. Por outro lado os çivinas tinham acesso à escola, participavam em rituais religiosos juntamente com a elite, apropriando-se de práticas distintivas (atitudes, vestuário e alimentação), levando uma vida social que contribuía para dispersar os seus interesses de classe, contrariamente à homogeneidade dos trabalhadores do campo. Como refere James C. Scott (1990), nas sociedades rurais a hierarquia cultural oferecia um modelo de conduta para o “homem civilizado”, que o “homem do campo” não podia imitar com os recursos culturais e materiais que dispunha. Quer se tratasse de conhecer os textos sagrados, de falar, de vestir-se com propriedade, de respeitar os preceitos à mesa, ou reproduzir os modos e as regras de consumo, os trabalhadores rurais encontravam-se impossibilitados de cumprir tais exigências (Scott, 2003:225).

As pessoas que eram criadas no campo não conheciam nem metade das coisas do povo. Ele havia moços, antigamente, que só vinham ao povo quando eram chamados para virem à tropa, e era quando vestiam uma roupa mais jeitosa e sapatinhos. As mães vinham à loja mas logo iam para trás, para que não falhasse nada aos bichos dos patrões. Não iam à escola, não iam à igreja e eram vistos como bichinhos. (…) Um que

lhe chamam “Domingos boieiro”, que o pai era boieiro nas Russianas, guardava vacas e lhe chamavam “boieiro”, era muito jeitoso, ele ainda é vivo o rapaz, era mais ou menos à minha idade. E então era muito bonito quando era novo, mas como vinha do campo sempre se notava, mas arranjava-se. E a Manuela, que ele foi tirar para dançar, lhe disse: “- De onde é o senhor?”. Julgando que era de fora.”- Eu? Sou filho do boieiro das Russianas!” E ela ficou com uma mala (ri-se), julgando que era uma presa boa e era o filho do boieiro. (Maria Alice Torbisco)

A homogeneidade social dos trabalhadores rurais que viviam nas herdades, isolados da vila, marcava a sua estreita dependência, assim como uma relativa falta de diferenciação e de mobilidade social fora da sua actividade profissional. As actividades de vaqueiro, porqueiro, cabreiro e pastor passavam de geração em geração como um

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saber que garantia contratos de trabalho anuais e a possibilidade de uma vida economicamente mais desafogada. Mas todos viviam debaixo da mesma autoridade, a do proprietário da herdade, os ganadeiros correndo os mesmos riscos com a perda dos animais, os trabalhadores à jorna ameaçados pela precariedade do trabalho rural, relacionando-se quase exclusivamente uns com os outros a maior parte do ano, dependendo do sistema de trocas materiais e simbólicas e da ajuda mútua. Este tipo de condição social potenciava a coesão e a unidade de uma subcultura, convertendo-os numa comunidade.

Muitas saudades daqueles tempos, trabalhava a gente, não se ganhava, mas havia aquela amizade, aquela coisa dos pais com os filhos, e de todos os ganadeiros que estávamos ali uns com os outros. De noite nos visitávamos, de uma malhada para a outra, o porqueiro estava num lado, o pastor estava noutro, o vaqueiro estava noutro, e de noite visitávamo-nos uns aos outros com aquela amizade, e não se ganhava.

(Francisca Agudo)121

Nesse tempo quando eu fui para o trabalho havia lá vinte, ou vinte e tal homens juntos trabalhando como irmãos. Era ao contrário, não ganhávamos para comer, mas sempre contentes. (…) Os que estavam lá, de ganadeiros, só vinham (à vila) uma vez por outra fazer algum mandado, ou fazer os avios, ou à festa de Agosto que já era uma tradição muito antiga. (José Gaspar)

Os ganadeiros eram assim, os trabalhadores não, os trabalhadores tinham lá uma cozinha, a “cozinha da malta”, no monte da Coitadinha. Era uma chaminé no meio, era mais fumo, e estavam todos com as enxergas à roda, à roda, e nas estacas penduravam os alforges com a comidinha para a semana. Ali é que dormiam, na “cozinha da malta”.Vinham sábado à tarde (depois do pôr do sol) no burro, se a ribeira estava cheia, vinham pela ponte com o burrinho, até segunda-feira (antes do

121 Francisca dos Santos Agudo (Barrancos, 1927) viveu na herdade da Coitadinha dos sete aos vinte e

sete anos de idade, saindo para casar. O seu pai trabalhou como vaqueiro e a mãe como doméstica e trabalhadora rural. Francisca Agudo nunca foi à escola, só há pouco tempo é que me caprichei e aprendi a escrever o meu nome. Mas nós lá da malhada de Noudar como havíamos de vir, se era onde estávamos quase sempre? Os donos da herdade da Coitadinha foram os seus padrinhos de baptismo e toda a vida trabalhou no campo. Em 1954 casou com Manuel Soares Fernandes, trabalhador rural, e tiveram um filho. Actualmente é viúva e vive da reforma. Excerto da entrevista realizada em sua casa, em Barrancos, a 29/9/2007).

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nascer do sol). Na segunda-feira, aí no celeiro, onde está o touro (estátua de bronze na entrada de Barrancos), era a quadrilha da Coitadinha e a quadrilha das Russianas, as

Russianas ainda tinham mais gente trabalhando do que tinha a Coitadinha. (Francisca Agudo)

Os guardas dos montes ou pateiros viviam com a família numa habitação integrada no complexo habitacional do Monte, assim como os guardas florestais. Os almocreves, que cuidavam das juntas de bois da lavoura, comiam e dormiam no Monte, numa dependência anexa ao estábulo dos animais. Os ganadeiros responsáveis pelo gado viviam com as famílias em malhadas dispersas pela herdade, cobertas de rama de azinheira e palha, enquanto as malhadas de porcos e os estábulos dos animais eram cobertos de telha. Todos estes factores contribuíram para as gentes da vila estabelecerem termos de comparação entre a vida das pessoas e dos animais, independentemente de todos os trabalhadores terem as suas casas na vila.

O que a gente passou naquela malhada, quem vê não sabe o que se passou naquela malhada, chegámos a estar ali sete e oito pessoas, hoje, nesta época, nem os bichos dormem assim, mas nós dormíamos, e todos ali tão agasalhadinhos. (…) Meu mano era mais velho queria vir a casa (à vila), se vinha ele eu ficava com o meu pai guardando

as vacas. Se minha mãe vinha a Barrancos eu ficava na malhada, arranjava a malhada, ia à água, cozia o leite, fazia o queijo, aquela coisa toda. Se havia trabalho para ali lá íamos nós aproveitar, ou a azeitona, ou a sacha para ali, mas se os que vinham de Barrancos ganhavam 10$00 por dia, nós, como éramos “filhos da casa” ganhávamos 7$00, era assim. E isso o que me custava a mim, estando eu ao pé de outra pessoa, fazendo o mesmo que a outra pessoa, e porque eu era “filha da casa”. Eu não era “filha da casa”, era filha do meu pai e da minha mãe, como dizia eu. (Francisca

Agudo)

Ser “filho da casa” representava um privilégio na hierarquia do mundo rural, designando um “parentesco instrumental” forjado na dependência, na submissão e na fidelidade para com os patrões, servindo para eliminar qualquer tendência ao conflito na estrutura social. Os “filhos da casa” beneficiavam de estabilidade no trabalho, de uma eventual protecção (em casos de prática de contrabando), ou de favores para os seus descendentes encontrarem alternativas profissionais ao trabalho rural. Todavia, a

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maioria dos filhos dos ganadeiros começavam ainda crianças como ajuda do pai, cuidando do gado, como recorda Manuel dos Santos:

Fui para a Coitadinha com nove anos para ajudar no gado com meu pai que era vaqueiro, e era assim, levava meses e meses sem vir a Barrancos. Quando fui mais grandinho é que o meu pai me deixava vir num dia santo a Barrancos. Minha mãe é que vinha fazer os avios com o burrinho e nós ficávamos lá. Quando eu era ajuda de meu pai, minha mãe fazia a lida da malhada, tinha umas cabrinhas, fazia queijinhos, ia à água, meu pai também semeava umas searinhas e ela ia a mondar a seara. Ali, os criados todos ganhavam uma seara, o patrão dava um bocado de terra de quatro ou cinco alqueires e logo eles iam fazendo quando podiam, e eu ia com o gado para lavrar a seara. Quando eu já era grande já fazia aquela coisa, o meu pai ia com o gado e eu ia aprendendo a trabalhar e a lavrar com o burrinho a seara. Aquela seara a ganhava o meu pai, tinha um pionhal de vacas, tinhas umas cabrinhas e ganhava azeite, grão e essas coisas, e ganhava, parece que era dois tostões. Tinha quatro vacas e sete cabras, quando pariam vendia os bezerros, ou os chibinhos. No tempo de Paco Garcia trabalhavam vinte ou trinta homens na casa, mas havia muita gente parada naquela altura, aqui em Barrancos chegou a haver cem homens pedindo na rua, cem homens trabalhadores, porque os lavradores só queriam aqueles homens não queriam mais ninguém.

As filhas dos trabalhadores rurais tinham como alternativa à vida do campo servir nas casas das famílias dos proprietários rurais, onde comiam e dormiam, sujeitando-se às regras da casa e aos caprichos dos patrões ou patroas, como recorda Antónia122:

Estive a servir em muitas casas desses senhores ricos, estive a servir em casa do senhor Fialho, fui ao Estoril, da primeira vez estive lá quatro meses com as patroas, depois viemos outra vez e estávamos aqui quinze dias e depois íamos para o campo, ficávamos no campo. Depois fui outra vez para o Estoril quando casou um filho do senhor Fialho,

122 Antónia (pseudónimo) nasceu em Barrancos em 1925 e era filha de trabalhadores rurais. Tinha um

irmão mais velho que morreu ainda jovem. Frequentou a 3º ano do ensino primário em Barrancos, foi criada de casa, trabalhadora rural e doméstica. Casou em 1952 com um trabalhador rural, mineiro e contrabandista, que emigrou para França em 1962, onde trabalhou 12 anos na agricultura. Tiveram quatro filhos. Excerto da entrevista realizada em sua casa, em Barrancos, a 10/6/2008.

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que já morreu, o Carlos Fialho, e estive lá um mês com eles, depois estive em várias casas servindo, a minha vida era assim. A melhor patroa era uma senhora que era solteira, a Dona Maria Pulido, o Vasco Pulido Valente que fala na televisão é sobrinho dessa senhora onde estive a servir. Essa senhora sim, de comer também não era lá muito boa, mas logo não era má para a gente, estávamos a gosto com ela. Era boa pessoa para a gente, tocava música no rádio e eu gostava muito de ouvir, e às vezes punha-me assim a ouvir as músicas, e ela logo viu, e eu fugi, porque não queria que se zangasse, e como já sabia que eu gostava às vezes me chamava para ouvir músicas. “- Catarina, escucha la música que es muy bonita, y tu gustas mucho.” Esta senhora sim, as outras não quer dizer que fossem más, más, mas ralhavam mais com a gente e zangavam-se às vezes sem motivo nem razão, e a gente também se aborrecia, mas não tínhamos outro remédio senão aguentá-las.

As senhoras também impunham aos seus criados e trabalhadores as práticas religiosas (apadrinhando as crianças no baptismo e o casamento pela igreja), demonstrando considerações idênticas aos dos seus semelhantes, ao zelarem pela sua educação moral e religiosa, como “as fontes dos melhores sentimentos” (Vasconcellos, 1884:17). O “parentesco espiritual” reforçava as relações de dependência moral dos afilhados para com os padrinhos, e apresenta-se como um fenómeno transversal aos filhos dos trabalhadores do campo e da vila, como nos testemunha José Ângelo:

Estávamos para ali a brincar na praça, frente à sociedade, uma data de miúdos, e então chegaram eles, dali da igreja, uma senhora, que foi a minha madrinha e um senhor que foi o meu padrinho e disseram: “- Anda cá, vocês estão baptizados? – Não! - Querem-se baptizar? - Sim senhora!” E fomos uma data deles, e ali nos baptizaram e pronto. O padrinho foi o pai do José Adrião e a minha madrinha foi uma senhora que também já morreu, Dona Lola, que morava aqui no Alto Sano. Quando cheguei ao meu pai e à minha mãe disse: “- Olhem já estou baptizado!”.

Em algumas herdades existiam pequenas capelas para as senhoras realizarem as suas orações diárias, às quais o padre de Barrancos se deslocava para proferir cerimónias religiosas, ou acompanhar o “retiro espiritual”, que Francisca Agudo ainda recorda:

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A Dona Dorinhas fez uma igreja lá no monte, no quarto dela. Ia o senhor padre, o Cónego Almeida, dormia lá e tudo, no monte, mas o marido não queria, o senhor Paco Garcia não queria, estavam de quartos à parte. Chamavam-lhe o “Retiro”, elas não falavam, estavam quinze dias sem falar, as senhoras que iam daqui, fazer ali aquela coisa.

A proprietária do Monte da Coitadinha improvisou uma capela que serviu de local a uma das cerimónias que melhor testemunha e preocupação dos patrões pela vida religiosa e moral dos “filhos da casa”. A 25 de Maio de 1938 os contratados do monte que não eram casados pela igreja, assim como os seus filhos que não eram baptizados, reuniram-se numa cerimónia religiosa proferida pelo Cónego Alfredo Almeida na capela do monte, apadrinhados por Francisco Garcia Pérez, proprietário, e sua esposa Maria das Dores Blanco Fialho Garcia, doméstica, tendo por testemunha Manuel Fretes, solteiro, motorista da casa.123 Os registos dos oito casamentos e dos nove baptizados em nada diferem dos que foram realizados na Igreja de Barrancos, não fosse a memória de dois dos eleitos:

Aquele dia foi muito engraçado, porque veja lá, a gente fomos baptizados primeiro, éramos nove, e o mais novo de todos era eu, não, era o Zé Manuel „Mata Burros”, que Deus tem. O Zé Manuel era filho de um moirado de porcos que estava lá. E então, puseram-nos ali todos, em torno (gesto de semicírculo), e estava para ali um primo

irmão meu que estava para ir à tropa, veja lá (ri-se), e o tio Zé Guerreiro. Éramos

nove, puseram-nos a todos (gesto de uma fila de cada lado) e o senhor padre começou a

123 Arquivo Paroquial de Barrancos, Livro de Casamentos de 1938, registos nº 6 a nº 13. Livro de

Baptismos de 1938, registos nº 16 a nº 24. Os matrimónios religiosos uniram Manuel dos Santos Rita, vaqueiro, de quarenta anos de idade, que vivia há quinze anos com Francisca Porta Agudo e tinham dois filhos. Francisco Cristino Delgado, porqueiro, de quarenta e quatro anos, que vivia com Rosa Soares Rodrigues há dezanove anos. José Escoval Castueiro de quarenta e dois anos de idade, que vivia há dezanove anos com Tomazia Domingues. Domingos Rodrigues Ruivo, vaqueiro, de quarenta e quatro anos, que vivia com Izidra Branquinho Gonçalves há dezasseis anos. Domingos Abade Branquinho, capataz, de quarenta e cinco anos de idade, que vivia há vinte e um anos com Isabel Escoval dos Santos. Manuel da Silva Rico, feitor, de quarenta e três anos de idade, que vivia com Maria Borralho Basílio há dezassete anos. José Manuel Mendes Pica, almocreve, de trinta e oito anos, que vivia há catorze anos com Isabel Lopes Ângelo e tinham quatro filhos que também foram baptizados: Isabel Ângelo Pica de doze