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Capítulo 1. História, Memória e Movimentos Sociais: perspectivas teórico-

1.1. Poder, resistência e movimentos sociais

O estudo dos movimentos sociais foi particularmente influenciado por interpretações políticas que vincularam os fenómenos de resistência e de agitação social à actividade partidária e sindical. Nesta perspectiva foram analisados como acções colectivas por melhores condições de vida, ou pela transformação de conjunturas económicas, sociais e políticas numa dada sociedade. A sua mobilização pressupunha a existência de um grupo formal, hierarquizado, legitimado pela subordinação a regras de conduta específicas, segundo uma lógica e um programa de acção política de carácter reivindicativo, de contestação, de reformismo legal ou revolucionário. A partir dos finais da década de 1960 emergiram novas formas de protestos protagonizados por grupos estudantis, grupos de género e minorias étnicas que não se enquadravam no “modelo marxista” de conflito de classe, focalizado no movimento operário. Como consequência desta realidade, e em reacção aos paradigmas marxista e estrutural- funcionalista, surgiram tanto na Europa como nos Estados Unidos quatro novas perspectivas de análise dos movimentos sociais: comportamento colectivo, focado na análise da acção colectiva como actividade com significado; mobilização colectiva, salientando a importância das componentes estratégicas e racionais dos fenómenos; processo político, valorizando os envolvimentos político e institucionais em que os

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movimentos sociais operam, e “novos movimentos sociais” (Della Porta & Diani, 1999).

O surgimento de “novos movimentos sociais”, configurados em formas de protesto e de resistência fundamentadas em paradigmas culturais, cuja complexidade se reforça a nível local e informal bem como ao nível das redes globais, exigiu a reformulação teórica e metodológica do estudo dos movimentos sociais. O protesto passou a ser entendido como uma acção colectiva envolvendo a luta por ideias, identidades, símbolos e estratégias, dentro e fora de fronteiras nacionais e regionais, considerando o emaranhado existente entre “a cultura das políticas e as políticas da cultura na mobilização” (Fox & Starn, 1997:3). Novos autores construíram uma visão com mais nuances das lutas políticas nos finais do séc. XX sublinhando as diversas, e muitas vezes contraditórias, origens da mobilização em massa, focando as raízes da mobilização e da ascensão popular, sugerindo “uma espontânea e mesmo natural iniciativa dos pobres e desafortunados” (Fox & Starn, 1997:11). Enquanto alguns cientistas sociais analisaram os movimentos sociais como consequência da luta de classes ao longo do processo histórico (cf. Marx, 1852; Lefranc, 1957; Hobsbawm, 1958; Thompson, 1963; Moore Jr., 1975), outros imprimiram novas configurações às relações de poder e ao protesto como potencialmente transformadoras e reconstrutivas de uma sociabilidade diferenciada (cf. Castells, 1997; Fox & Starn, 1997; Hall, 1992; Edelman, 2001; Wieviorka, 2001). Neste processo encontramos estudos representativos de vários paradigmas, identificando correntes de pensamento europeias e norte- americanas, a partir das quais se construíram novas teorias e metodologias no estudo dos movimentos sociais que, ao configurarem os seus elementos estruturantes, as suas formas heterogéneas de constituição e organização, e sobretudo a sua base político- ideológica, contribuíram para a diferenciação entre “velhos” e “novos movimentos sociais”.

Ao paradigma marxista sucedem-se novas abordagens sobre os movimentos sociais na Europa desenvolvidas por neo-marxistas, partindo de uma releitura do marxismo e do deslocando do eixo das determinações exclusivamente económicas para outros campos da vida social, como o político e o cultural. A noção de hegemonia de Gramsci é fundamental para conceptualizar as relações de poder, assinalando a sua versatilidade e mutação em função de diferentes contextos históricos (Crehan, 2004:124). Ao tentar definir hegemonia como um tipo de dominação ideológica e

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cultural disseminada pelos segmentos da vida social por meios dissuasivos (podendo ser entendida como cultura dominante), Gramsci articula-a com a partilha do poder, a hierarquia, a dominação de uma classe sobre outra e a cultura subordinada. A hegemonia pressupõe o uso da violência simbólica e a coerção, processos de luta e de confrontação das quais a classe dominante reitera as reivindicações dos opositores, quando desprovidas de ameaças ao sistema. A diferença relativamente a um processo de dominação pela força reside no cariz consensual atribuído por Gramsci, ao defender que a classe dominante impõe um conjunto de ideias por meios essencialmente pacíficos. Na perspectiva de Roseberry (1994), “what hegemony constructs is not a shared ideology but a common material and meaningful framework for living through, talking about, and acting upon social orders characterized by domination” (Roseberry, cit. Smith, 2007:222). Para Gramsci o consentimento das massas subordinadas resultaria do prestígio social do grupo dominante, devido à sua posição e função no mundo da produção (Crehan, 2004:125). O Estado assume neste processo um papel fundamental, por um lado fazendo uso da “violência legítima” (Weber, 1921), e por outro impondo formas de dominação por meio de aparatos ideológicos como a educação, a religião e a comunicação social, e inclusive pelas instituições da democracia parlamentar (Scott, 2003:116).

A noção de hegemonia representou um papel especialmente forte ao ajudar-nos a compreender como o poder trabalha para formar a pessoa social, moldando o modo como as pessoas experienciam o mundo em que vivem. O fundamental do conceito, segundo Gavin Smith (2007), é a rejeição do sujeito social como objecto, receptáculo passivo. Analisando “a economia moral da multidão” (Thompson, 1971), ou as formas “arcaicas” de agitação social (Hobsbawm, 1958) reclamando todo um passado histórico de acções de protesto contra a opressão, concluímos que os movimentos sociais não existem a priori, tornam-se movimentos pela acção humana na História. Como nos diz Marx (1852), os sujeitos fazem a sua história, mas não a fazem segundo a sua livre vontade nem sob circunstâncias de sua escolha, mas sob aquelas com que se defrontam, legadas e transmitidas pelo passado. No caso do movimento operário do séc. XIX, este não surgiu como consequência imediata da Revolução Industrial, mas como resultado de um processo que levou dezenas de anos a organizar-se como movimento de classe por uma elite socialmente consciencializada. Não existindo uma tradição operária mas várias, que se confrontaram, levando o operariado a oscilar entre elas, num processo

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dinâmico de construção e reconstrução de acções e de organizações, estruturadoras do carácter reivindicativo dos conflitos sociais (Lefranc, 1988:235-236). Por outro lado, o movimento operário nunca se reduziu ao confronto entre exploradores e explorados, também assentou em identidades preexistentes dando origem a subculturas próprias, construídas no exterior do trabalho, no habitat ou na vida quotidiana, geradoras de solidariedades e lealdades que não se limitam às relações de produção (Wieviorka, 2002:52). A existência de uma lógica no processo histórico dos movimentos sociais parece consensual, o que não invalida que a realidade social necessite de ferramentas de racionalidade científica para ser entendida, por conter outras explicações para além da sua aparência imediata. Para Michel Wieviorka (2002) as teorias neo-marxistas sustentam-se em questões estruturais como base para o entendimento dos conflitos, mas as desigualdades económicas e a injustiça social também assentam sobre lógicas de discriminação ou de segregação que definem os mais frágeis e os mais vulneráveis em termos culturais como fáceis de naturalizar (Wieviorka, 2002:55).

A diferenciação entre “velhos” e “novos movimentos sociais” pode representar um novo olhar quanto às formas históricas de organização e mobilização da classe trabalhadora, intencionalmente deslocada das análises actuais, embora os “novos movimentos sociais” sejam incorporados por trabalhadores. Como argumenta Alain Touraine (1984), com a passagem para uma sociedade pós industrial os conflitos e outros desníveis sociais tornam-se mais salientes e geram novas identidades, verificando-se que o exercício do poder é menor no mundo do trabalho e maior na criação de modos de vida, tipos de comportamento e necessidades (Touraine, 1996:25). Neste sentido, o aumento das desigualdades, a precarização, a destruturação da relação salarial, o desemprego, mas também “a tomada de consciência dos estragos do progresso inflectiram em profundidade no surto das identidades culturais” (Wieviorka, 2002:49-50). O surto das “identidades culturais” é fundamentado por Manuel Castells (1997) como proveniente de múltiplos campos de conflitualidade, para além das lutas económicas e sociais, representando conflitos sobre a produção de significado, sobre identidade e sobre cultura. O autor entende os movimentos sociais e políticos como resultado da interacção entre a globalização induzida pela tecnologia, e o “poder da identidade” e as instituições do Estado. Para Castells (1997), os movimentos sociais representam acções colectivas com um determinado fim, cujo resultado transforma os valores e as instituições da sociedade. Estas acções compreendem identidades, enquanto

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processos de construção de significado com base num atributo cultural, ou num conjunto de atributos sociais inter-relacionados, definidos por normas estruturadas por instituições e organizações da sociedade. Nesta perspectiva, os “novos movimentos sociais” manifestam um largo espectro de acções colectivas, expressas numa multiplicidade de temáticas reivindicativas, como problemas ecológicos e ambientalistas, conflitos étnicos, conflitos religiosos, movimentos anti-globalização, movimentos pela paz ou movimentos pela memória, por contrapondo às reivindicações de carácter operário e sindical dos “velhos movimentos sociais”, organizados a partir do mundo do trabalho e construídos na luta político-ideológica entre capital e trabalho.

A diferenciação entre “velhos” e “novos movimentos sociais” representa para alguns autores uma construção mal formulada, se considerarmos que os movimentos sociais emergentes não surgem espontaneamente mas do processo histórico em contextos sociopolíticos concretos. Fox & Starn (1997) rectificam a definição de “novos movimentos sociais” assinalando a armadilha de se ver apenas descontinuidade entre o passado e o presente. Para tal, definem a categoria de “novos movimentos sociais” não somente pelas qualidades que possa conter, mas pelas diferenças entre resistência e revolução (1997:5). Nesta perspectiva, parece fundamental entender os “novos movimentos sociais” como inseparáveis dos processos de luta quotidiana, sendo um factor determinante para a sua configuração a consciência que os agentes sociais adquirem sobre os seus interesses comuns. Ou seja, as estratégias de resistência que constroem em função das suas necessidades, bem como a dimensão cultural ou simbólica que manifestam nas suas práticas.

Neste terreno de investigação é particularmente interessante o trabalho de James C. Scott (1985) sobre as formas de resistência quotidianas dos oprimidos em situações de dominação. Partindo do seu trabalho de campo na Malásia, Scott estuda o contínuo da resistência, quando a investigação sobre os movimentos camponeses estava sobretudo focada nos momentos de crises e de convulsões sociais, temporalmente curtos e geralmente marcados por formas de repressão violenta. Partindo desta premissa Scott comprova que a resistência se cria em processos de longa duração, incluindo os momentos de calma social aparente e os de conflitos armados. Ao estudarmos a resistência como um processo contínuo teremos a possibilidade de encontrar explicações mais profundas sobre as rebeliões, considerando que a resistência está imersa no quotidiano das relações sociais da sociedade rural, movendo-se em redes de

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cumplicidade e de solidariedade sob formas ocultas. Estas formas de resistência ocultas são, segundo o autor, as “armas dos fracos”, manifestadas através de actos isolados, individuais, não premeditados, que carecem de bandeira e de liderança organizada, bloqueando o que poderia ser um conflito colectivo aberto (Scott, 1985).

Recorrendo a fontes históricas e a fontes literárias James C. Scott (1990) analisa distintas dimensões e inter-relações entre dominadores e dominados em diferentes contextos históricos. Ao construir um estudo comparativo dos sistemas de dominação elabora uma análise estrutural na qual demonstra que as estruturas de dominação operam de maneira similar quando estão submetidas à influência dos mesmos factores. Neste trabalho direcciona a sua investigação para a construção dos discursos dentro das relações sociais de classe, resultante das contradições entre o discurso dos dominados e dos dominantes, e entre eles. Com este método de triangulação iniciou as suas reflexões em torno do “discurso público” e do “discurso oculto” das classes sociais nas relações de poder. Estas diferentes dimensões discursivas resultam da institucionalização de um sistema de dominação através da apropriação de trabalho, de bens e de serviços sobre uma população subordinada. As posições de inferioridade e de superioridade são reconhecidas em rituais e procedimentos, regulando os contactos públicos entre dominadores e dominados, sendo negados nestas práticas sociais os direitos dos dominados, de tal forma que a humilhação e a ofensa os deixam sem resposta no âmbito público. Desta forma generalizam-se os discursos ocultos dos dominados, como uma crítica aos poderosos, disfarçados por simulação ou sussurros.

Para Michel Foucault (1976) o discurso pode ser simultaneamente instrumento e efeito de poder, mas também ponto de resistência e de partida para uma estratégia oposta, assim, podemos considerar que o discurso transmite e produz poder, reforçando- o, mas também o pode desgastar e fragilizar. No mesmo sentido em que o silêncio e o segredo acolhem o poder, fixando as suas interdições, também debilita a sua influência, proporcionando tolerâncias que podem ser mais ou menos obscuras.

“Trata-se em suma, de nos orientarmos para uma concepção do poder que substitui o privilégio da lei pelo ponto de vista do objectivo, o privilégio da interdição pelo ponto de vista da eficácia táctica, o privilégio da soberania pela análise de um campo múltiplo e mutável de relações de força em que se produzem efeitos globais, mas nunca totalmente estáveis, de dominação” (Foucault, 1994:105).

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Em termos ideológicos o “discurso público” reforça convincentemente a hegemonia dos valores do discurso dominante, considerando que é no domínio público que os resultados das relações de poder são mais representativos, verificando-se na análise do “discurso público” que os grupos subordinados se apropriam voluntariamente dos termos da subordinação. Nesta perspectiva, as relações de poder não se apresentam como estáticas, permitindo-nos comprovar a veracidade ou falsidade daquilo que é dito nos terrenos do poder. O “discurso escondido” é produzido em função de uma audiência diferente e sob diferentes constrangimentos que o “discurso público”. Em qualquer sistema de dominação estabelecido, a questão central não se baseia apenas no dissimular de sentimentos, discursos e atitudes perante o poder, mas em controlar aquilo que seria um impulso natural de raiva, angústia e violência que as situações de desigualdade provocam. Por outro lado, se os “mais fracos” possuem razões óbvias e estruturantes para a procura de refúgio numa máscara, na presença do poder, os detentores do poder também possuem as suas razões para adoptarem uma máscara, quando estão na presença dos subordinados.

As teorias resultantes do trabalho de investigação de James Scott permitem-nos compreender a diversidade de estratégias de resistências existentes no quadro das relações de poder, evidenciando a capacidade dos agentes sociais em adequarem os processos de luta em função dos seus interesses e na satisfação das suas necessidades imediatas. Estas estratégias revelam uma luta permanente contra as desigualdades sociais, que constitui o cerne dos movimentos sociais. Desta forma as desigualdades sociais estão presentes a todos os níveis da vida social dos indivíduos, fazendo parte da banalidade do quotidiano, no qual constroem os mecanismos de resistência e de protesto conformes aos seus interesses. Neste sentido, os movimentos sociais representativos de identidades culturais, de fenómenos de conflito e violência, de dominação e resistências quotidianas, permitem analisar novas formas de protesto conformes ao devir histórico da humanidade, como diria Marx. Contudo, parece-nos fundamental compreender as terminologias do discurso hegemónico que pretende deliberadamente atenuar o conflito social global, deslocando o eixo da acção de protesto das desigualdades sociais para identidades múltiplas, caracterizadoras de uma “pós-modernidade”, acentuando a figura do indivíduo isolado, exilado ou alienado, colocado contra o pano de fundo da multidão, ou da metrópole anónima e impessoal (Hall, 1994:35).

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Um dos fenómenos culturais e políticos dos últimos anos consistiu no surgimento de movimentos sociais pela memória como preocupação central das sociedades ocidentais, por oposição a uma cultura modernista, impulsionada pelo que Reinhart Koselleck denominou de “futuro presente” (Koselleck, cit. em Huyssen, 2000:1). No início dos anos oitenta os discursos da memória intensificaram-se na Europa e nos Estados Unidos impulsionados pelo debate sobre o Holocausto, e um surto de comemorações, de inaugurações de museus, de “lugares de memória” (Nora, 1984), de publicações autobiográficas, de produções cinematográficas e televisivas contribuíram para a proliferação da “cultura da memória” à escala global. As culturas da memória relacionam-se estreitamente em diversos lugares do mundo, com processos democratizadores e com lutas pelos direitos humanos, que buscam expandir e fortalecer as esferas públicas da sociedade civil (Huyssen, 2000:19). Ao fenómeno de “aceleração da história”, em que o passado cede lugar à ideia do “eterno presente”, preservar vestígios do passado ou recuperar a memória, representam formas de resistência à “hegemonia do efémero” (Nora, 1984), ou ao “presentismo” (Hartog, 2003).

O movimento social pela recuperação da memória histórica em Espanha, representa um processo de construção de significado e de confrontação política entre vencedores e vencidos da História, cuja estrutura de diferenciação se objectiva na luta contra o silêncio e o olvido. Insere-se num processo de luta pela dignificação, reparação, direito à justiça e reconhecimento social e político dos “vencidos da guerra”, assim como pelo questionamento de uma historiografia oficial que durante anos os olvidou. Os seus objectivos inserem-se nas políticas de memória, verdade e justiça na transição para a democracia dos movimentos sociais da América Latina, onde os regimes democráticos reduziram ao silêncio e ao esquecimento milhares de cidadãos aniquilados durante as ditaduras militares (Brito et al, 2004). Com as leis da amnistia e do perdão os novos regimes democráticos reabilitaram antigos opositores políticos, e evitaram o julgamento dos responsáveis por crimes e torturas. Foi a América Latina que deu origem às denominadas Comissões de Verdade, na Argentina (1984) e no Chile (1990), que elaboraram relatórios sobre a repressão (Brito, 2004:33). Na Argentina, apesar da acção do movimento das “Mães da Praça de Maio”, somente em 2005 se revogaram as “leis do perdão” que impediam os processos contra os responsáveis por violação dos direitos humanos. Em 2006, a justiça considerou inconstitucional o indulto ao ex- presidente Jorge Rafael Videla, condenando à prisão perpétua Miguel Etchecolatz por

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crimes cometidos durante a ditadura militar. Em 2006, no Uruguai, vinte e um anos após a instauração da democracia, o Ministério Público pediu a abertura dos processos contra os militares responsáveis por crimes políticos. No Brasil, somente em 2006 algumas vítimas de sequestro e tortura durante o regime militar questionaram pela primeira vez a lei da Amnistia, decretada em 1979 (Araújo & Santos, 2007:99-100).

Para José Gil (2004) “a revolução dos cravos” em Portugal dissipou os 48 anos da ditadura salazarista, “não houve julgamento de pides nem de responsáveis do antigo regime. Pelo contrário, um imenso perdão recobriu com um véu a realidade repressiva, castradora, humilhante de onde provínhamos” (2004:16). O processo de saneamentos (1974-1975) afectou alguns dirigentes da ditadura de Salazar durante o PREC (Processo

Revolucionário em Curso), mas o regime democrático impediu o surgimento de um movimento social pela reparação das vítimas do salazarismo, sustentado num “pacto de estabilidade política” ratificado pelos partidos com representação parlamentar. Costa Pinto (2004) justifica a “singularidade do caso português” na existência de elites alternativas, com laços a vários segmentos da sociedade civil e com legitimidade política no combate à ditadura (Pinto, 2004:87). Esta perspectiva histórica de continuidade e não de ruptura do regime, absorvendo “o marcelismo como a origem remota da democracia” (Godinho, 2011:33), revela as tendências revisionistas na historiografia portuguesa pós 25 de Abril (Soutelo, 2009) e “uma visão banalizadora da natureza e das políticas do regime” (Rosas, cit. em Godinho 2010:33). Neste contexto, o movimento popular que se seguiu ao golpe militar de 25 de Abril perde legitimidade como processo revolucionário, para se converter numa “espécie de prelúdio antidemocrático da verdadeira democracia” (Godinho, 2011:33), sobre o qual se fixou “um discurso ideológico de crítica global, maxime de demonização, da Revolução portuguesa de 1974/75” (Rosas, cit. em Godinho, 2011:33).

A criação da União de Resistentes Antifascistas Portugueses (UPAP) após o 25 de Abril de 1974 surge na continuidade de outras associações clandestinas “de luta unitária pela liberdade” durante a ditadura. O art.º 5º dos estatutos estipula que os seus membros são cidadãos portugueses “que tenham participado de forma activa e