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Capítulo 5 – A regionalização das políticas de desenvolvimento territorial rural e

5.1. Do território à multiterritorialidade: Compreendendo o conceito

O conceito de território é fundamental para a compreensão de qualquer ação ou atividade na esfera agrária brasileira ou mesmo na elaboração e na avaliação de qualquer política pública de desenvolvimento que tenha em sua concepção diferentes escalas de poder estatal.

Ao recuperar aqui este conceito, tem-se o objetivo de resgatar, mesmo que de forma sintética, os fortes traços da dimensão política do espaço e clarear pontos obscuros que, vez por outra, levam a confusões sobre seu entendimento. Nos termos de Milton Santos:

Uma geografia sem território é uma contradição que ajuda a explicar a ausência cada vez maior dessa categoria de análise e debate aprofundado da nação. Isso constitui para o país um retrocesso, e para a disciplina geográfica pode equivaler a uma espécie de suicídio. Se os geógrafos se ausentam do debate sobre o território, há um empobrecimento paralelo das ciências políticas, da sociologia e da interpretação histórica, e, no plano prático, um empobrecimento também da própria vida política da nação. Felizmente, uma forte reação se esboça nos meios acadêmicos, mas igualmente nos meios políticos, e desse modo podemos esperar que o território, essa realidade esquecida, seja retomado, evitando o enfraquecimento de uma das ópticas sem a qual a visão de mundo, dos países, dos lugares, é incompleta e até mesmo irreal (SANTOS, 2004, p. 34).

Além do mais, ao discutir e refletir sobre a implantação dos programas de desenvolvimento territorial rural, norteadas por um “novo” conceito de território, faz-se necessário, inicialmente, revisitar os preceitos fundamentais dessa temática; e em especial, as terminologias territorialidade, desterritorialização, reterritorialização e, finalmente, multiterritorialidade, essenciais ao entendimento das questões que serão debatidas e defendidas nos marcos normativos dos três programas aqui analisados e

fundamentais para a concepção de desenvolvimento local e regional que altera definitivamente a perspectiva outrora relacionada a este conceito.

A compreensão conceitual sobre território tem origem no contexto da unificação alemã, ocorrida no ano de 1871, quando sua abordagem associava-se à institucionalização da Geografia como disciplina nas universidades europeias. Ratzel foi o pensador responsável pela divisão da Geografia em três grandes campos de investigação: Política, Biogeografia e Antropogeografia. Este autor dedicou atenção especial à geografia humana, com o objetivo de compreender as influências das circunstâncias naturais sobre a humanidade, tendo dessa forma, elaborado conceitos- chave como o de território e de espaço vital (RATZEL, 1990).

A partir da década de 1970, o conceito de território volta a ser debatido para incluir a abordagem dos conceitos sobre o controle espacial ou simbólico de determinadas áreas, atribuindo então, um sentido mais amplo ao território. Posteriormente, superado o conceito clássico de território, relacionado estritamente ao nível nacional, limitado a fronteiras e tendo apenas o Estado como única fonte de poder no controle espacial, passa ser correlacionado também às relações sociopolíticas que se estabeleçam na apropriação, configuração e controle do espaço para além da escala nacional.

Ressalta-se que nos estudos da ciência geográfica, o conceito de território foi (e continua sendo) amplamente estudado, especialmente relacionado a sua definição e seus usos, para não gerar interpretações equivocadas ou conflitos com outros conceitos geográficos, ou seja, que envolvam o espaço geográfico. Sendo assim, primeiramente convém diferenciar os conceitos de território e de espaço. Para isso, recorre-se aos estudos de Raffestin (1993), segundo o qual, o território seria posterior ao espaço, se apoiando e se formando a partir da apropriação abstrata ou concreta do espaço.

Além disso, segundo Souza (2007), o território é fundamentalmente delimitado por e a partir de relações de poder, o que também é confirmado por Haesabert (2007), ao afirmar que em qualquer que seja a abordagem a respeito do conceito de território, haverá a presença de relações de poder, seja ele no sentido de dominação simbólica ou de apropriação forçada. Nesse contexto, ressalta-se também a experiência de Sack (2011) sobre o tema de controle do território, na qual, segundo o autor, a delimitação de territórios consiste no resultado de estratégias construídas para afetar, influenciar e controlar pessoas, fenômenos e relações.

Face à multidimensionalidade do poder, o espaço reassume sua força e recupera-se a noção de território. Trata-se, pois, agora de uma geopolítica de relações multidimensionais de poder em diferentes níveis espaciais. [...] o território volta a ser importante, não mais apenas como espaço próprio do Estado-Nação, mas sim dos diferentes atores sociais, manifestação do poder de cada um sobre uma área precisa. O território é um produto “produzido” pela prática social, e também um produto “consumido”, vivido e utilizado como meio, sustentando portanto a prática social (BECKER, 1983, p. 8).

Para além da definição do conceito de território, alguns autores, a exemplo de Corrêa (1994), o consideram a partir de algumas dimensões, como política, afetiva, social. Assim, o território ganha outros significados, expandindo-se em sua definição e proporcionando, por sua vez, o entendimento do conceito de territorialidade, especialmente a partir da abordagem afetiva do território. Segundo Raffestin (1993), pode-se dizer que a territorialidade é estabelecida a partir da relação entre seres humanos mediatizada no território, ou seja, a partir de relacionamentos sociais construídos territorialmente.

Dessa forma, o entendimento do conceito de territorialidade torna-se importante, na medida em que permite a compreensão do relacionamento que pode existir entre o homem e o espaço por ele ocupado. Esse espaço geográfico, apropriado pelo homem (território) admite processos sociais e afetivos de pertencimento a essa área geográfica (territorialidade) e, como consequência, pode desencadear processos de desterritorialização e reterritorialização.

Por sua vez, esses processos de desterritorialização e reterritorialização ocorrem especificamente quando os indivíduos são retirados de seus espaços habituais de moradia e realocados em outros espaços. No entanto, esses processos frequentemente ocorrem quando existe uma condição de afetividade com o espaço geográfico ocupado, entendido então como território e refletindo a territorialidade envolvida, ou seja, quando há relações sociais construídas no território33. Assim, no momento em que o indivíduo é retirado desse território ocorre a dinâmica da desterritorialização e, quando começa a estabelecer um relacionamento afetivo com o novo território para o qual foi realocado, ocorre a dinâmica da reterritorialização (sendo o indíviduo protagonista e/ou coadjuvante dos processos de modificações sociais).

Ainda sobre esse tema, segundo Haesbaert (2007), os dois processos em discussão não podem ocorrer de maneira isolada, ou seja, a desterritorialização é um

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Ressalta-se, entretanto, que o Estado e as relações capitalistas podem também desterritorializar e reterritorializar o espaço, sem estabelecer qualquer relação de afetividade, o que amplia a interpretação sobre as relações sociais constrúidas no território.

processo indissociável da reterritorialização, sendo este dialético. E é por esse motivo que o autor trata a desterritorialização como um “mito”, não pelo fato de não existir, mas por existir somente de forma associada à reterritorialização. Para defender essa ideia, o autor afirma que o homem é um “animal territorial” e, portanto, todos esses processos são inerentes as suas ações, formando um movimento complexo de territorialização, que incluiria a vivência de diversos territórios ao mesmo tempo, ou, finalmente, da multiterritorialidade.

Desse modo, a multiterritorialidade surge como uma alternativa conceitual ao processo chamado até então de desterritorialização (HAESBAERT, 2007). Isso porque, o autor acredita que a dinâmica que ocorre consiste mais fortemente na intensificação e na complexificação de um processo que é muito mais múltiplo ou referente a múltiplos territórios; na verdade, segundo o autor, não ocorre essa “perda” ou destruição de um território ou do processo de territorialização, quando da desterritorialização, na medida em que o território não é constituído somente de uma dimensão; muito pelo contrário, o território é sempre múltiplo, diverso e complexo (HAESBAERT, 2007). Portanto, todos esses processos não devem ser abordados de maneira setorizada, mas sim, conjuntamente, na multiplicidade de suas manifestações.

Neste sentido, a multiterritorialidade contemporânea, de acordo com Haesbaert (2007), inclui não somente a incorporação de uma visão quantitativa, na ideia de agrupar uma maior quantidade de territórios, como também qualitativa, já que existe a possibilidade de levar em consideração a vivência (pelos atores e ações realizadas) inerente a esses territórios ou suas manifestações de territorialidade. Ou seja, essa concepção múltipla de território leva em consideração também a existência não só de vários processos coexistindo, como também, de variados atores e poderes convivendo no mesmo espaço geográfico.

Assim, o caráter multidimensional do território dá o tônus da política de desenvolvimento territorial que encontra-se presente em todos os programas que aqui são analisados – Pronaf, Pronat e PTC – , que consideram concomitantemente as várias expressões de poder que a sociedade pode expressar: econômica, sociocultural, político- institucional e ambiental. Ou seja, a ampliação desse conceito leva ao entendimento de uma maximização do aproveitamento do território, através de sua ocupação, de seu uso e/ou do controle pelos grupos sociais envolvidos.

Associando as questões referentes à dinâmica de desenvolvimento territorial do governo brasileiro, com o pensamento de Haesbaert (2007), portanto, ratifica-se a ideia

do autor de que toda ação que deseja ser transformadora na sociedade atual precisa necessariamente incorporar a multiplicidade de territorializações. Sendo assim, tal idealização implica pensar em múltiplos poderes, múltiplas identidades e múltiplas funções que, ao trabalharem em conjunto, defendem seus interesses e passam a dar um novo “tom” para as reflexões sobre desenvolvimento territorial; que a partir de agora dependem da participação engajada e capacitada da sociedade que, atrelados a uma identidade com o local, tentam atuar ativamente nas decisões e ações do poder público, mesmo que a prática demonstre uma permanência do poder em minorias organizadas e uma forte concentração do poder de escolha vinculada a uma elite política.

5.2. O que é gestão social? Um importante conceito das políticas de