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Do universo reificado ao universo consensual: os processos de elaboração das

CAPÍTULO 2 REPRESENTAÇÕES SOCIAIS: CONCEITOS E CONTRIBUIÇÕES

2.2 Do universo reificado ao universo consensual: os processos de elaboração das

As representações sociais são compreendidas por Moscovici como uma teoria do senso comum presentes em “sociedade dos cientistas amadores” (MOSCOVICI, 2012b, p. 48) que produzem conhecimento fora dos espaços acadêmicos e elaboram saberes reconhecidamente não eruditos. Para ele, as representações sociais caminham no sentido oposto ao da ciência, que busca tornar não familiar por meio de suas equações matemáticas, algo que era familiar, cabendo-lhes buscar descobrir as motivações não familiares que as geraram.

Moscovici (2012b, p. 42) considera que a sociedade não é um subproduto de ciência, mas possui uma “textura psicológica autônoma” e faz parte de um movimento de produção de conhecimento a partir do que ele denominou como universo consensual e universo reificado. No universo reificado encontram-se as ciências, o pensamento erudito, com objetividade e rigor metodológico, as teorias elaboradas pelas ciências. No universo consensual estão as atividades de interação social, de conversação, em que se elaboram as teorias do senso comum, as representações sociais. Como bem argumenta Sá (1993), é no universo reificado que o universo consensual busca sua matéria-prima. É nele que os sujeitos se deparam com o não familiar, que uma vez tornado familiar adentra o universo consensual.

Para compreender como essa transformação ocorre se faz necessário conhecer os dois processos que estão na base da origem e funcionamento das representações sociais: a ancoragem e a objetivação. Esses processos costumam ser apresentados de maneira separada muito mais para fins didáticos que por uma real dicotomia entre eles. Villas Bôas (2010) salienta que é difícil apreender quando um termina e outro começa, pois acontecem concomitantemente, entrelaçando-se no processo de elaboração das RS.

A objetivação é um processo que busca transformar algo abstrato em concreto, um conceito em objeto. Ela se incorpora à realidade na medida em que transpõe os limites do pensamento para fazer parte do mundo real. Isso pode ocorrer com conceitos que passam a ser

tão comumente utilizados que se incorporam ao dia a dia das pessoas e se tornam quase palpáveis ainda que em sua essência jamais o possam ser (MOSCOVICI, 2012a).

Moscovici (1978 apud VILLAS BÔAS, 2010) explicita que o processo de objetivação ocorre a partir de três etapas distintas. Na primeira – seleção construtiva ou descontextualização da informação – a informação é retirada de seu contexto original e reorganizada no conjunto teórico já existente e reintegrada ao pensamento do grupo envolvido no processo. A segunda etapa – criação do núcleo ou sistema figurativo – consiste na reorganização das informações selecionadas em grupos figurativos, ou seja, elas começam a adquirir forma a partir de sua vinculação a uma palavra ou ideia. Na terceira e última etapa – naturalização – os elementos do esquema figurativo passam a ser percebidos como expressão do que está sendo representado e tratado como real. Em outras palavras, passam a expressar a realidade, tornando, finalmente, o abstrato em concreto.

Contudo Villas Bôas (2010, p. 58-59) afirma que “a naturalização da novidade, em que o abstrato se transforma em concreto, somente se completa quando esta se inscreve não apenas nas relações intergrupais, mas também nos sistemas de pensamento preexistentes por meio da ancoragem”, outro processo presente na elaboração das representações sociais, cuja função reside naquilo que o próprio nome sugere: ancorar os sistemas de conhecimento na realidade social já conhecida pelos sujeitos.

A ancoragem é um processo que consiste em classificar objetos, fatos, pessoas e categorizá-los a partir de conceitos e concepções preexistentes. Seria uma espécie de inserção de algo não familiar dentro de algo familiar, dando-lhes nomes já existentes ou criando novos.

Esse é um processo que transforma algo estranho e perturbador, que nos intriga, em nosso sistema particular de categorias e o compara com um paradigma de uma categoria que nós pensamos ser apropriada. É quase como ancorar um bote perdido em um dos boxes (pontos sinalizadores) de nosso espaço social (MOSCOVICI, 2012a, p. 61).

É por meio da ancoragem que as representações se inserem nas relações sociais, pois ela integra a representação ao sistema de valores dos sujeitos (VILLAS BÔAS, 2010).

Para Jodelet (2001, p. 30), a articulação entre os dois processos explica “a interdependência entre a atividade cognitiva e suas condições sociais de exercício, nos planos da organização dos conteúdos e das significações e da utilidade que lhe são conferidas”. Moscovici (2012a) sintetiza de forma a tornar clara a relação entre os dois processos, enfatizando que [...]

[...] a primeira mantém a memória em movimento e a memória é dirigida para dentro, está sempre colocando e tirando objetos, pessoas e acontecimentos, que ela classifica de acordo com um tipo e os rotula com um nome. A segunda, sendo mais ou menos direcionada para fora (para outros), tira daí conceitos e imagens para juntá-los e reproduzi-los no mundo exterior para fazer as coisas conhecidas a partir do que já é conhecido (MOSCOVICI, 2012a, p. 78).

Os fenômenos observáveis de que se valem as representações sociais vêm se tornando tema central das ciências humanas em diversas disciplinas, constituindo um campo de pesquisa com conceitos e metodologias próprias no qual as representações sociais têm ganhado cada vez mais espaço, incluindo aí os estudos sobre a infância e a criança.

A sociedade assume o papel de “cientistas amadores” na medida em que os termos presentes no discurso acadêmico ou erudito passam a interessar e ser apropriados pelos sujeitos ainda que nem sempre carreguem toda sua significação original. O interesse por essa apropriação reside na necessidade de preencher as lacunas que emergem diante do novo e desconhecido ou como diria o próprio Moscovici (2012b, p. 52): “Completar ‘casas vazias’ de um saber por ‘casas cheias’”.

Sá (1993) apresenta inúmeros assuntos e objetos sociais que poderiam suscitar interesse e discussão em grupos de pessoas, seja por estarem associados de maneira direta às suas vidas, seja por serem assuntos da atualidade diante dos quais as pessoas sentem necessidade de estar “engajadas” (política, economia, preservação ambiental, desigualdades sociais, questões relacionas a gênero, raça, orientação sexual, história, medicina, etc.).

O autor assinala que em situações de conversação as pessoas sempre têm algo a dizer e retoma o alerta feito por Jodelet (1984 apud SÁ, 1993) sobre o risco de confundir o que seria representação social do que seriam as opiniões: “Trata-se de conhecimentos inerentes à própria sociedade ou de pensamentos elaborados individualmente?” Sá (1993) busca responder a essa questão dizendo que essas respostas dadas pelos sujeitos são uma compreensão alcançada por indivíduos que pensam, mas não sozinhos. Ainda que as ideias expostas não sejam as mesmas do grupo atual de discussão, diz o autor, esse conhecimento tem origem em discussões anteriores ou acesso a informações sobre o assunto adquiridas em outro momento.

Sá (1993) pontua que isso é o que Moscovici chama de sociedade pensante. Esse modo de ver a sociedade se distancia de uma concepção sociológica em que um grupo está sempre submetido ao controle de um grupo dominante, reproduzindo suas ideias e

considerando o homem como uma caixa preta que recebe informações, sem fazer julgamentos ou expressar opiniões.

A TRS pode ser observada a partir de quatro importantes abordagens assumidas desde sua inauguração com a obra de Moscovici, La Psychanlyse, son image et son public, e que se distinguem pelas escolhas metodológicas realizadas pelos pesquisadores que se dedicaram a cada uma delas.

A primeira, pautada nos estudos de Denise Jodelet, encaminha-se para uma orientação processual, em que se examina o papel regulador das representações sobre as interações sociais; a segunda, que tem em Jean-Claude Abric um de seus expoentes, preocupa-se em analisar a dinâmica representacional por meio de suas características estruturais relacionadas, sobretudo, às práticas sociais; a terceira, de cunho mais sociológico, é representada por Willem Doise e tem como foco investigar a atuação da estrutura social na elaboração das representações; e, por fim, a quarta, atualmente desenvolvida por Ivana Marková, preocupa-se com o processo de comunicação, explorando o conceito de dialogicidade (VILLAS BÔAS, 2010, p. 77).

Conforme Sá (1998) essas abordagens não são incompatíveis, porquanto possuem uma mesma raiz: os estudos de Moscovici. Elas assumem caminhos distintos que contribuem para o avanço da proposta original sem, no entanto, desautorizá-la, tendo-a, assim, como referência. Para este trabalho, a abordagem estrutural será a mais visitada, sendo, por isso, o que apresentaremos a seguir.