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CAPÍTULO 1 ESTUDOS DA INFÂNCIA: DISCUTINDO A SOCIALIZAÇÃO INFANTIL

1.3 Socialização e culturas infantis

No contexto contemporâneo o estudo das culturas infantis se faz mister para a compreensão da infância e das relações construídas entre crianças e adultos, assim como para os estudos relacionados à pedagogia da infância e às práticas direcionadas às crianças, conforme aponta Barbosa (2014). A autora sustenta ainda que a expressão “culturas infantis” compreende dois tipos de produção cultural: a cultura elaborada pelo adulto para e sobre a criança e a cultura elaborada pela própria criança. Essa compreensão sobre a cultura desenvolvida pelas crianças norteia os trabalhos de pesquisadores como Gilles Brougère (2012) e Manuel Sarmento (2004), importantes influenciadores nos estudos sobre as culturas infantis no Brasil.

O debate sobre as culturas infantis apresenta-se não apenas a partir da compreensão da autonomia das crianças em relação aos adultos ou de suas produções, mas em como se incorpora ao mundo adulto e com ele se relaciona, como também “em saber se essas significações se estruturam e se consolidam em sistemas simbólicos padronizados, ainda que dinâmicos e heterogêneos em culturas” (MÜLLER, 2006, p. 557).

As discussões sobre o conceito de cultura ocorridas ao longo do século XX colocaram em xeque a ideia de que essa seria algo estático, transmissível, sem espaço para o pensamento criativo e a inovação. Elas serviriam ao propósito de descrever os hábitos, crenças e valores

de uma sociedade em um processo de transmissão geracional, numa “visão funcionalista” (CORSARO, 2011). De Certau (1995, apud BARBOSA, 2014) é quem apresenta a necessidade de usar o termo “cultura” no plural, defendendo a existência de culturas, defendendo que elas são construídas no cotidiano, modificam-se e são reconstruídas por todos que constituem determinado grupo.

Se na perspectiva funcionalista à criança cabia apenas receber as informações acumuladas sobre sua cultura (adulta), a partir dessa ampliação do conceito de cultura, ela passa a ser vista como mais um grupo social, entre outros como a cultura negra, a cultura feminina, com sua própria cultura, pois estando esta relacionada à vivência cotidiana não se podem mais excluir as crianças desse processo (BARBOSA, 2014). Coadunando com essa ideia, Corsaro (2011) afirma que:

As crianças produzem uma série de culturas locais que se integram e contribuem para as culturas mais amplas de outras crianças e adultos e a cujo contexto elas são integradas. Esses processos variam ao longo do tempo e entre culturas, e a documentação e a compreensão dessas variantes devem ser um tema central na nova sociologia da infância (CORSARO, 2011, p. 127).

Na reprodução interpretativa proposta por Corsaro (1993; 2009; 2011, 2012), uma visão mais tradicional de cultura perde espaço em uma linha teórica na qual a criança é vista em seu protagonismo e capacidade produtora e reprodutora de cultura. Corroborando essa perspectiva Sarmento (2004; 2015) também apresenta em seus trabalhos um reconhecimento da cultura em sua pluralidade e da possibilidade de a criança ser vista como ator social e produtora de cultura.

Além disso, Sarmento (2004) faz uma diferenciação entre o conceito de infância e o de criança. As crianças sempre existiram enquanto ser biológico pertencente a uma categoria geracional e ao grupo jovem das populações. Sua presença esteve sempre associada à das mulheres tal qual um apêndice, ficando associada a elas até que pudesse ser integrada à sociedade. As representações sociais de criança foram e estão sendo elaboradas a partir de todos os elementos que organizam os cotidianos e os modos de vida e as culturas dos próprios adultos.

Sobre a institucionalização da infância, Sarmento (2004) aponta que ela ocorreu inicialmente com a criação de espaços de socialização para as crianças, especialmente espaços escolares que se ampliaram com a universalização da educação. Nesses espaços, afirma o autor, o trabalho organizado a leva uma homogeneização das crianças. Nesse contexto, às famílias caberia a prestação de cuidados às crianças e o estímulo ao desenvolvimento no

horário em que não estivessem em uma instituição escolar. Abrem-se espaços para o desenvolvimento de saberes sobre as crianças ao mesmo tempo que se criam padrões de “normalidade” que objetivam discipliná-las a partir de “procedimentos de inculcação comportamental” (SARMENTO, 2004, p. 12).

Sarmento (2004) aponta a necessidade de compreender a epistemologia das culturas infantis e sugere que isso seja feito ouvindo a voz das crianças. Ele apresenta ainda alguns possíveis eixos estruturadores dessas culturas:

 Interatividade: as crianças relacionam-se com seus pares nos espaços que frequentam o que permite que inventem e reinventem esses espaços. Essa interação permite que mesmo com o crescimento de uma criança a cultura infantil produzida continue sendo partilhada por outras crianças.

 Ludicidade: o brincar é parte essencial da infância, sendo o que de mais sério a criança realiza. Esse brincar não diz respeito apenas à criança, posto que se apresenta como inerente ao homem.

 Fantasia do real: diz respeito ao faz de conta presente no universo infantil que auxilia a criança na compreensão do mundo que a rodeia. O faz de conta é processual e permite à criança permanecer no “jogo da vida” de “forma aceitável”.  Reiteração: é capacidade infantil de reinventar os tempos, ações e espaços. “Nesses fluxos estruturam-se as rotinas de ação, estabelecem-se os protocolos de comunicação reforçam-se as regras ritualizadas das brincadeiras e jogos, adquire- se a competência da interação” (SARMENTO, 2004, p.17).

Gilles Brougère (1997 apud BARBOSA, 2014) tem como ponto de partida para seus estudos a importância cultural dos brinquedos e das brincadeiras e suas relações com a socialização das crianças (BARBOSA, 2014). Inicialmente, o autor não aborda questões sobre a cultura infantil, ainda que utilize termos recorrentes no discurso dos pesquisadores interessados nessa área. Em seu trabalho a relação entre “cotidiano, socialização, cultura e aprendizagem” são desenvolvidos, “a cultura é concebida, principalmente, tendo como referência as práticas locais, os saberes cotidianos, os saberes incorporados” (BARBOSA, 2014, p. 661).

Nos espaços escolares, reconhecer a produção cultural infantil pode contribuir para uma mudança na organização do trabalho pedagógico e na hierarquização entre professor e aluno, gerando mais autonomia da criança em relação ao adulto.

1.4 A Socialização no Currículo em Movimento da Educação Básica do Distrito