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DOCÊNCIA E GÊNERO – O FEMININO E A READAPTAÇÃO FUNCIONAL

6. A ESCUTA DOS SUJEITOS DA PESQUISA – Categorias desvendadas

6.9 DOCÊNCIA E GÊNERO – O FEMININO E A READAPTAÇÃO FUNCIONAL

A questão do gênero, dentro da presente abordagem, impõe-se primeiramente pela constatação de que o trabalho docente foi marcado, historicamente, pela predominância do feminino. Diniz (2001) afirma, no Brasil, este quadro começa a se configurar no final do século XIX, consolidando-se nas décadas seguintes, particularmente nas séries iniciais do ensino.

Os motivos que levam a esta predominância, segundo a autora, remontam à inserção da mulher no mundo do trabalho como prolongamento de suas atividades, histórica e culturalmente, relacionadas ao trabalho doméstico, como o cuidar e ensinar as crianças.

A feminização da profissão docente ocorre no momento em que os homens, a partir do movimento da industrialização e urbanização, abandonam o espaço de exercício da profissão para lançarem-se às novas oportunidades de trabalho nas cidades. Assim, o magistério deixou de representar uma forma de ascensão social, pela queda dos salários pagos aos profissionais, fato atrelado à idéia de que as

profissões femininas são desvalorizadas simplesmente por serem desempenhadas por mulheres. (OLIVEIRA 2000)

Em outra linha de raciocínio, a relação estabelecida entre o masculino e o feminino na história da construção da profissão docente remete às reflexões elaboradas por Maturana (2004) que resgata o que o autor denomina de “cultura matrística”, historicamente anterior à sociedade patriarcal.

O termo “matrístico” é utilizado pelo autor com o propósito de “conotar uma situação cultural na qual a mulher tem uma presença mística, que implica a coerência sistêmica acolhedora e libertadora do maternal, fora do autoritário e do hierárquico.” Assim, a palavra “matrístico” é contrária a “matriarcal”, pois esta tem o mesmo valor do termo “patriarcal”, remetendo-se a uma cultura onde as mulheres, em substituição aos homens, tenham papel dominante.

A contribuição da reflexão acerca do “matrístico”, no contexto da ecologia humana da readaptação funcional de professores – tema deste estudo -, se dá na medida em que, considerada a predominância feminina na categoria, assim como a abordagem tradicional que atribui exclusivamente às disputas por espaço no mercado de trabalho entre homens e mulheres, Maturana resgata o valor qualitativo ancestral da atuação feminina, qualificando-a de forma “sistêmica e acolhedora”. Esta percepção converge com a abordagem da ecologia humana e atribui uma dimensão peculiar à atuação feminina na profissão docente.

Assim, o feminino, como representante de uma consciência não-hierárquica presente no mundo natural ao qual todos os seres humanos pertencemos, independente de gênero, resgata a possibilidade de se estabelecer um modo de vida centrado numa relação de participação e confiança (MATURANA 2004), o que se aplica, inclusive, ao campo da educação e ao exercício da profissão docente.

Os dados quantitativos, anteriormente apresentados nesta pesquisa, ratificam a predominância feminina na carreira magistério público do Distrito Federal, com ênfase nas séries iniciais do ensino fundamental, coadunando-se com o quadro descrito por outros autores e considerado o quadro histórico-cultural no qual o exercício da profissão docente se configurou no Brasil.

Diniz (2001) argumenta acerca da escolha da profissão de professora pelas mulheres declarando que esta se dá, em termos conscientes, normalmente em função de razões que remontam às necessidades socioeconômicas das famílias. A falta de opção, o baixo custo da formação, o “ideal de amor” que reveste a profissão e a possibilidade de conciliação com a vida de casada, são algumas das razões apontadas pelo texto.

As mulheres professoras não conseguem explicitar motivos subjetivos para a escolha profissional, excluindo-se de uma posição que

demonstre uma implicação do seu ser com o trabalho pedagógico; conseqüentemente, não constroem uma identidade profissional. [...] Só recentemente, alguns educadores vêm

enfatizando a necessidade de os(as) professores(as) refletirem sobre suas histórias pessoais, de maneira a reconhecer, nas trajetórias individuais, sua configuração profissional. (DINIZ 2001, p.200-201- grifo meu)

Os relatos dos professores readaptados apresentados na pesquisa trazem argumentação semelhante para a escolha da profissão de professor, ressaltando que o argumento da falta de opção, assim como a facilidade de acesso à carreira também aparece no argumento do professor Ricardo, único homem readaptado escutado na pesquisa.

Os dados quantitativos, recolhidos nesta pesquisa, mostram que o afastamento das salas de aula, em função do adoecimento crônico, acomete um número relativamente menor de professores na área de “Atividades”, predominantemente mulheres que atende a crianças das séries iniciais de escolarização, leva a considerar que o exercício de valores relacionados à cultura “matrística” apontada por Maturana (2004), como afeto, intimidade e amorosidade, entre outros, possa preservar estas mulheres-professoras do adoecimento e afastamento das salas de aula.

Já Diniz (2001) recorre à psicanálise para apontar uma relação entre o adoecimento das mulheres-professoras e o fazer pedagógico da escola, na medida em que a idealização do ato educativo e sua conseqüente frustração no cotidiano escolar geram mal-estar que, por sua vez, não podendo ser expresso, levaria ao adoecimento.

Em uma abordagem mais específica sobre a readaptação de mulheres- professoras – designada como “desvio de função” – a autora prossegue sua análise partindo de um aprofundamento do olhar sobre as causas, para além de sua aparente relação com as condições objetivas de trabalho.

Algumas questões se apresentaram: as ausências ao trabalho, justificadas por adoecimento físico e mental, estariam funcionando como “saídas” que permitiriam à mulher professora suportar o mal- estar do trabalho pedagógico? Essas “saídas” poderiam ser traduzidas como sintomas, entendendo que estes têm um sentido e se relacionam com as experiências vividas por esses sujeitos? (DINIZ 2001, p. 212).

Considerando os dados apontados pelo levantamento quantitativo, que revelam as doenças psíquicas como as principais causas para a readaptação entre professores no quadro atual da SEDF, alguns relatos dos sujeitos escutados na pesquisa

apresentam argumentos relacionados ao cotidiano feminino e à sobrecarga gerada pelo acúmulo de funções de mulheres que, ao sobreporem sua atuação profissional às atividades cotidianas, “naturalmente” relacionadas ao feminino, acabam por não suportar a pressão.

Chega certo tempo que... eu tive assim uma dor horrível nas costas e que tinha uns relâmpagos assim já na cabeça. Voltava, parecendo um negócio dos “raios”... Quando a jornada de 20 em 20 passou a

ser ampliada. Tinha que fazer fisioterapia, já ia lá chorando, chorava

com o médico, chorava com todo mundo. (DULCE)

[...] E o menino [filho adotado] “enchendo o saco”. E o marido

nervoso, ciumento “enchendo o saco”. Passou 6 meses, um ano e

a dor voltava. Chegou um certo tempo que o marido [disse que] ou fica com o menino ou fica com ele... “Se a gente não dá conta [de criar], uma outra pessoa dá”. Então a gente passou [a criança] pro [outro] filho dele [criar]. (DULCE)

Mais ou menos nessa mesma época eu fiquei doente de novo... eu já

estava batendo nos meninos [alunos] com chinelo, os meninos já estavam jogando papel na minha cara... Na escola.

Quase que eu bati numa menina com chinelo. Eu já estava ficando doida, doida, doida, todo dia só encheção [...].(DULCE)

[...] Eu acho que foram os remédios, os remédios pra emagrecer, aquela assim... ansiedade para ter um filho e nada (voz embargada), e os problemas também da alergia... da mudança do

sistema de ensino, então da vida assim, cobrança muito grande... da sociedade, da família, da escola, tudo. De tudo, tudo, há uma

cobrança. (DULCE)

Todos os trechos acima, retirados da escuta da professora Dulce, revelam uma gama de fatores que, conforme ela própria aponta, seriam conjuntamente responsáveis por sua fragilização psicológica. Entretanto seus argumentos não isentam o ambiente escolar, em diversos de seus aspectos, de ter contribuído para a constituição desse quadro que acabou por levá-la ao afastamento da sala de aula.

A professora Manuela também apresenta relato de fragilização relacionado à sobrecarga de trabalho.

Eu acho que eu passei por altos e baixos. A primeira coisa foi o

cansaço físico, o stress, por não ter tempo de almoçar, por viver na correia. Eu trabalhava na Samambaia, eu trabalhava no Lago,

trabalhava... Porque eu não estava dando conta de tanto trabalho.

Mas eu tinha uma família para sustentar. (MANUELA)

Paralelo a tudo isso [adoecimento] eu tive alguns problemas familiares, filho adolescente, começa a dar problema também. Parecia que a minha vida era cercada de tragédia. Tragédia na vida

profissional, como mãe... dá a sensação de que o mundo inteiro

inteiro. Seu trabalho não funciona, eu me sentia meio escrava, a

minha família não funciona... (MANUELA)

Os profissionais de saúde reconhecem a condição à qual as mulheres- professoras estão submetidas, assim como os efeitos desse conjunto de fatores sobre a saúde das docentes.

[...] a jornada ampliada pesa para ele [professor] devido ele ter uma jornada ampliada na vida dele. Porque na hora que você investiga ali, ele não tem empregada doméstica... Normalmente é mais ‘ela’ do

que ‘ele’. Não tem empregada doméstica, aí faz o serviço em casa,

sai correndo, aí a jornada... Porque ela já chega de uma ‘pancada’

do trabalho do lar e pega uma ‘puxada’ na escola. Então você

percebe que tem um todo ali. É mais mulher. O homem não vem reclamando da jornada ampliada. Isso é...cultural...” (P. S.)

Os relatos apresentados indicam que, conforme apontado por Maturana (2004) a cultura patriarcal, essencialmente centrada na competição e hierarquização, que norteia o modus operandi de nossa sociedade, revela suas mazelas na medida em que a mulher, tendo se lançado no mundo do trabalho em busca de uma suposta igualdade, não teve como desvencilhar-se dos vínculos que, motivados pelo afeto e pelo sentimento ancestral “matrístico”, a prendiam ao cotidiano doméstico, com suas preocupações e afazeres. Assim, tendo que buscar a equiparação, pela competição determinada pela cultura patriarcal, no mundo do trabalho e vendo-se irremediavelmente ligada aos seus, a mulher-professora vê-se assolada pelo sentimento de culpa por não cumprir com sua tarefa hercúlea.

Assim como a sociedade ocidental que fala em cultivar a paz e vive resolvendo os conflitos através do uso do poder, que prega a cooperação e valoriza a competição, também a mulher-professora vive a contradição de, possuindo a natureza da coerência libertadora do maternal (MATURANA 2004), lançar-se no universo patriarcal e nele sofrer as conseqüências da violação de sua própria natureza.

O adoecimento e a readaptação que ainda relega os professores e, neste caso especificamente as professoras, a uma condição marginal, é um preço alto a ser pago por tal ousadia.

Que situação comporá um quadro mais crítico: sucumbir por não poder suportar o peso da impossibilidade de conciliação entre posturas tão antagônicas – o “matrístico” e o patriarcal - ou, resistir e reforçar um modelo que exige o tributo da força e da virilidade para o reconhecimento como um “forte”?